Cavalheirismo e espionagem
SÃO PAULO - Os escândalos de espionagem vão de vento em popa. Da última vez que comentei o assunto, dois meses atrás, descobrira-se que a presidente Dilma Rousseff havia sido pessoalmente alvo da bisbilhotice dos EUA. De lá para cá, dezenas de líderes mundiais, incluindo Angela Merkel, vieram fazer companhia a Dilma.Essa não é, contudo, só uma história de heróis contra vilões. O Brasil não tem competência técnica para monitorar os telefonemas de Obama, mas, como mostrou Lucas Ferraz, a Abin costuma vigiar diplomatas estrangeiros que atuam no país.
Não há muita dúvida de que, na medida de suas capacidades, todo mundo espiona todo mundo. A questão que se coloca é se não dá para tentar mudar esse estado.
As relações internacionais, por não serem mediadas por nenhum poder central equiparável aos de um soberano, já foram comparadas ao estado de natureza hobbesiano, no qual impera "a guerra de todos contra todos". Embora hiperbólica, a imagem tem lá seu apelo. Mas será que, da mesma forma que seres humanos foram capazes de transcender esse suposto estado de natureza e estabelecer formas mais harmoniosas e regradas de convívio, países não conseguiriam fazer algo parecido?
O antropólogo Christopher Boehm sustenta que a consciência moral, pré-requisito da civilização, foi precedida por um processo de autodomesticação social, no qual até machos dominantes aprenderam a exercer autocontrole. No começo, evitavam recorrer à força por temer retaliações do grupo, mas, com o tempo, isso se tornou uma segunda natureza.
Se esse modelo é aplicável às relações internacionais, devemos reclamar cada vez que um país é apanhado espionando mais do que devia. Fazê-lo sentir-se desconfortável é o primeiro passo para que um dia consigamos tornar real a máxima segundo a qual cavalheiros não devem ler a correspondência uns dos outros.
helio@uol.com.br
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