Avalie meu trabalho
A atendente queria arruinar o meu plano de destilar todo o ódio contra a 'coisa pública' na tecla ruim
Logo que estacionei no guichê, bati o olho no aparelho cinza onde se lia: "Avalie o meu trabalho". Aquilo me instigou. Senti que havia chegado a hora de me vingar de todo o serviço público porco com que tive de me enlamear para conseguir ser cidadão ao longo da vida.
Meu pensamento era fixo e perverso. Apertaria a tecla ruim, por maior que fosse o esforço da atendente.
Era questão de honra firmar ali a minha revolta com o policial que deu carteirada na blitz e saiu todo pimpão, com o fiscal da receita que me mandou preencher documentos sem pé nem cabeça e também com o taxista debochado que não parou para mim naquele dia de chuva.
O botão do ruim, com uma carinha simulando um descontentamento parecido com o de quem sofre pela morte da bezerra, seduzia meus dedos. Era nele que eu botaria o indicador com gosto, ao mesmo tempo em que levantaria os lábios com satisfação.
Mas a moça deixou claro, desde as primeiras palavras, que seria jogo duro. Ao contrário daquelas famosas feições blasés de alguns caixas de bancos do governo, ela tascou em mim um olhar de atenção e um sorriso natural.
Nem para fazer aquele forçado, de atendente de lanchonete que pede a você que deixe o troco para as crianças pobres de Papua Nova Guiné.
"O senhor não trouxe a cópia do comprovante de residência?"
Pronto, estava ali o meu argumento para acabar com aquela patifaria. Era uma burocrata sem coração.
"Não tem problema, mas terei de ficar com o original. Pode ser?"
Tudo estava sendo rápido e bem explicado. Olhei ao redor com atenção para ter certeza de que não estava em uma daquelas pegadinhas sem graça do Silvio Santos.
O atendimento estava chegando ao fim e ainda não havia acontecido um entrave que me faria ir até o protocolo, esperar um mês e receber o documento errado.
E a danada da atendente não estava mesmo de brincadeira e foi para cima de mim na tentativa desesperada de arrancar pelo menos um bom, que se daria apertando o botão do meio do equipamento, ao lado da simulação de um rosto com uma risadinha contida.
"Por que o senhor já não faz todo o procedimento aqui mesmo? Vai evitar ter de se deslocar pela cidade, ter de pagar um despachante..."
Encarei a atitude como um abuso! Ela queria, de fato, arruinar o meu plano maligno de destilar todo o meu ódio contra a "coisa pública" no desabafo íntimo e protegido (o aparelho é isolado do olhar do atendente) da tecla ruim.
Naquele momento, meu coraçãozinho já se afrouxava. Pensei o quanto seria útil ter avaliações para os deputados. Talvez, diante uma saraivada de "carinhas aborrecidas", alguém resolvesse reagir com fervor.
Olhei para o guichê do lado e o rapaz que tirava dúvidas de uma moça bem confusa entre fazer um novo RG e renovar a carteira de motorista também agia de maneira sagaz em busca de aprovação.
Onde estaria aquela pessoa dos tele atendimentos que jamais resolve os dramas com a TV? Aquela que dá vontade de apertar o ruim no primeiro "vou estar verificando se o senhor vai estar podendo cancelar"?
Acabara o procedimento e eu tinha de acionar o botão. Disfarcei, fechei a cara e tasquei "ótimo" na geringonça. Talvez o mundo esteja mudado, talvez.
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