terça-feira, 5 de novembro de 2013

João Pereira Coutinho

folha de são paulo
Atrações de feira
Os filmes 'mainstream' que dominam as salas querem ser romances no espaço de um conto
Espero escrever um dia sobre "The Wire", a série da HBO que me acompanha há vários meses.
Digo "há vários meses" porque, apesar de ter apenas cinco temporadas, é a primeira vez na vida que assisto a uma série que exige repetição contínua do mesmo episódio. Só para saborear a carpintaria literária do produto; a complexidade de cada personagem; e os diálogos, meu Deus, capazes de transformar o calão rasteiro das ruas em duelos verbais dignos de um Edmond Rostand.
O mundo imundo de Baltimore ganha em "The Wire" o mesmo estatuto épico que Victor Hugo concedeu a Paris; e Dickens, a Londres; e Dostoiévski, a São Petersburgo. Não estou a delirar.
Mas estou a lamentar. Quando a TV surgiu em meados do século 20, alguns luditas modernos decretaram a morte do cinema. Enganaram-se, claro. Mas enganaram-se apenas por meio século. Como escreveu Michel Laub em excelente texto para a Folha("O ponto final do cinema", 25/10/2013), as séries de TV americanas sugaram o talento audiovisual que existe.
Só discordo de Laub no otimismo dele: para o colunista, ainda há esperança para a sétima arte se ela conseguir superar o desafio do "ponto final" --contar em duas horas o que as séries contam em dois meses, dois anos, quem sabe duas décadas.
Infelizmente, e para mim, o "ponto final" do cinema "mainstream" começa a ganhar contornos mais literais.
Um bom exemplo é o filme do momento, "Gravidade", de Alfonso Cuarón. Acompanho as críticas. Confesso pasmo com tanto pasmo. Que o filme é um prodígio visual, ninguém nega: os primeiros 15 minutos em plano-sequência, quando a trilha sonora não arruína a beleza do silêncio, valem como experiência estética.
Mas é a pobreza narrativa do filme que deprime, sobretudo para quem esteve nas ruas de Baltimore horas antes.
No filme, um acidente sideral condena uma astronauta a ficar sozinha no espaço. Imaginar Sandra Bullock como astronauta já é abusar da nossa "suspensão da descrença".
Mas o pior vem depois: precisamente para comprimir uma história plausível em menos de duas horas, "Gravidade" oferece todos os clichês em sucessão contínua.
Sabemos que a astronauta perdeu uma filha na "mãe" Terra. E para quem tem esse prejuízo na biografia, surge o dilema: é melhor desistir e entregar-se ao esquecimento do espaço? Ou, apesar de todas as mágoas com o mundo "cá em baixo", tentar ainda regressar para ele e reaprender --literalmente-- a seguir em frente?
Não sei como classificar esta simplificação adolescente que é apresentada com "gravitas" cósmica pelos roteiristas do filme. Sei apenas que em nenhum momento acreditamos no luto daquela mãe --um luto que surge do nada e se dissolve no nada. Sem falar do óbvio: uma mãe com semelhante cicatriz no cardápio dificilmente estaria em missão espacial.
Para Michel Laub, o fato de o cinema exigir maior brevidade que uma série de TV pode ser um desafio criativo. Sim, pode e admito que nas mãos certas ainda seja. E também admito que o cinema de hoje poderia estar para o conto como as séries de TV para o romance.
Que o mesmo é dizer: abandonando o desejo de "totalidade" que o romance (e a série de TV) encerra, o cinema ganharia em aprofundar os "fragmentos de realidade" que fizeram a grandeza de Tchékhov, Carver ou Pritchett.
O problema é que os filmes "mainstream" que dominam as salas querem ser romances no espaço de um conto. Esquemáticos, nunca passam de esqueletos. Ou nem isso: apenas pretendem usar o texto como pretexto para qualquer prodígio formal.
A redescoberta recente do 3D parece apontar esse caminho e "Gravidade" é novamente um exemplo: se a TV é narrativamente mais poderosa, pensam os estúdios, o cinema pode deslumbrar as plateias com a "experiência" visual só possível na grande tela.
É uma forma de ver as coisas. Mas é também uma forma regressiva de ver o cinema: de "atração de feira" a expressão artística, o cinema estaria novamente condenado a ser "atração de feira" com a ambição explícita de maravilhar as plateias. Seria, no fundo, um retorno aos ilusionismos primitivos de Georges Méliès. Exagero?
Acredito que sim e desejo que sim. Mas não deixa de ser melancólico que, nos alvores do século 21, exista mais grandeza na baixeza de Baltimore do que no espaço infinito de Sandra Bullock.

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