De barca para o PS1
São perfeitos os dias azuis de outono, quando o frio se aproxima, mas ainda espera pela hora impiedosa de começar o seu reinado. Foi num desses sábados que subi a pé na direção da rua 34 para pegar o "ferry", atravessar o East River e visitar o PS1, espaço de arte contemporânea que o Museu de Arte Moderna de Nova York mantém no Queens.
O "ferry" é uma lanchona esperta, com dois andares, janelões envidraçados e uma irresistível área a céu aberto na popa. "Cinematográfico" deve ser a palavra mais recorrente para adjetivar o skyline de Manhattan visto de fora da ilha. Mas foi o que me veio à cabeça, não só por ser uma imagem vista à exaustão no cinema, mas pela atmosfera de irrealidade que --também por isso-- a envolve. Alguém deve ter montado aquele cenário ali só para as pessoas sacarem seus smartphones e fotografarem.
O PS1 foi inventado por uma mulher chamada Alanna Heiss. Em 1971, ela fundou um instituto que se dedicava à ocupação criativa de construções subutilizadas ou abandonadas em Nova York --caso da Escola Pública nº 1 ("Public School nº 1", daí a sigla), em Long Island City. Eram tempos de contracultura. Artistas emergentes desenvolviam novas linguagens e estavam interessados em espaços alternativos, à margem do circuito codificado de museus e galerias, para mostrar performances, instalações ou "site specifics"1.
Em 1976, o PS1 organizou sua primeira grande mostra, intitulada "Rooms", uma apropriação artística das instalações da escola, que Alanna transformou em sede de seu instituto. Depois de anos e uma reforma, o MoMA assumiu o lugar, em 2000.
Do cais do "ferry" até lá seria uma boa caminhada, que cortei de metrô. O espaço inteiro --com exceção das salas permanentes-- está ocupado pela retrospectiva de Mike Kelley, um artista cultuado, que deu fim à sua vida em 2012. Ele nasceu em Detroit, em 1954, e começou com um grupo de punk-rock chamado Destroy All Monsters. Suas apresentações se destacavam pela pegada agressiva e performática. O escritor Glenn O'Brien2 definiu a estética de Kelley como "Marcel Duchamp3 encontra The Contortions4" --a banda de punk-- jazz do saxofonista James Chance.
A retrospectiva, que vai até o dia 2 de fevereiro, revela a impressionante variedade de linguagens experimentadas pelo artista. É irregular, como se pode imaginar --mas cheia de coisas imaginosas, sujas, surpreendentes e divertidas.
Na saída, comprei um famoso livro de entrevistas com Duchamp, feitas por seu biógrafo, Calvin Tomkins5, em 1964. Quem sabe eu leia ouvindo The Contortions.
Marcos Augusto Gonçalves, 55, é editorialista e repórter da Folha. Escreveu o livro "1922 - A Semana Que Não Terminou" (Companhia das Letras).
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