Klaus Wiegrefe
Nos dias em torno de 9 de novembro de 1938, os nazistas cometeram o pior massacre da Alemanha desde a Idade Média. Para marcar o 75º aniversário do acontecimento, uma exposição em Berlim reúne relatos até então desconhecidos de diplomatas estrangeiros, revelando como esses eventos chocantes não causaram nada além de reprimendas vazias.
O cônsul-geral Robert Townsend Smallbones já tinha visto muito do mundo. Ele havia estado em Angola, na Noruega e na Croácia, e havia passado oito anos na Alemanha com o corpo diplomático britânico. Apesar da ditadura nazista, o homem de 54 anos tinha grande estima pelos alemães. Eles eram "costumeiramente gentis com os animais, as crianças, os idosos e enfermos. Eles me pareciam não ter nenhuma crueldade em sua formação", escreveu Smallbones num relatório para o Ministério das Relações Exteriores britânico.
Dada a sua impressão sobre os alemães, o representante do Império Britânico ficou ainda mais perplexo com o que vivenciou no início de novembro de 1938. Em Paris, Herschel Grünspan, um refugiado judeu de 17 anos da cidade alemã de Hanover, havia atirado no diplomata alemão Ernst vom Rath num ato de protesto contra as políticas de Hitler para os judeus. No início, os nazistas só caçavam judeus na região de Hesse, na Alemanha, em torno de Frankfurt. Mas, após a morte de Rath em 9 de novembro, os pogroms [massacres] se espalharam por todo o Reich alemão, onde sinagogas foram queimadas, vitrines de lojas foram estilhaçadas e milhares de judeus foram levados para campos de concentração e maltratados.
Em Frankfurt, Smallbones relatou que judeus tinham sido levados para um prédio grande e lá obrigados a se ajoelhar e colocar a cabeça no chão. Depois que um deles vomitou, escreve Smallbones, os "guardas limparam o chão pegando o culpado pela nuca e esfregando seu rosto e cabelo sobre o vômito". Segundo o relato Smallbones, depois de algumas horas, as vítimas foram levadas para o campo de concentração de Buchenwald, onde muitos foram torturados e alguns espancados até a morte. Os presos foram até mesmo obrigados a urinar na boca uns dos outros. Este foi um dos detalhes contados a Smallbones por um parceiro de golfe, um judeu alemão, depois que este foi libertado de Buchenwald.
"Eu me gabei de ter compreendido o caráter alemão", escreveu o cônsul-geral, mas acrescentou que não esperava este "surto de crueldade sádica".
Os massacres de novembro de 1938 duraram vários dias, embora os livros de história muitas vezes se refiram ao evento simplesmente como a "Noite dos Cristais" (Kristallnacht), porque o chefe da propaganda nazista Joseph Goebbels anunciou no rádio em 10 de novembro que os excessos tinham acabado. Especialistas estimam que até 1.500 pessoas morreram nos dias em torno de 9 de novembro. Foi o pior massacre na Alemanha desde a Idade Média.
Reunindo relatos diplomáticos contemporâneos
Esta semana marca o 75º aniversário do que o historiador de Leipzig Dan Diner chamou de "catástrofe antes da catástrofe". Isso levou o Ministério das Relações Exteriores alemão a tomar a medida incomum de pedir a 48 países que tinham missões diplomáticas na Alemanha em 1938 para procurarem em seus arquivos relatos sobre o pogrom de novembro.
Há meses, o Ministério de Relações Exteriores tem recebido cópias de documentos históricos até então desconhecidos pelos especialistas. A partir de próxima segunda-feira, o Ministério e o Berlin Centrum Judaicum exibirão uma seleção desses documentos na Nova Sinagoga na Oranienburger Strasse, numa exposição intitulada "De Dentro para Fora: Os Pogroms de Novembro de 1938 em Relatos Diplomáticos na Alemanha."
Apesar da forma muitas vezes truncada dos relatórios e da linguagem fria dos diplomatas, tratam-se de documentos impressionantes com valor histórico. Eles atestam o destino do orfanato judeu em Esslingen, perto de Stuttgart, onde uma multidão de simpatizantes do nazismo expulsou as crianças para as ruas; de judeus que foram obrigados a marchar em duplas por Kehl, no sudoeste da Alemanha, gritando "Nós somos traidores da Alemanha"; e de pessoas aterrorizadas escondidas nas florestas perto de Berlim.
O que também vale notar sobre os documentos é o que eles não contêm. Nesse sentido, eles apontam para o fracasso da comunidade internacional e as suas consequências mais amplas. Os diplomatas quase unanimemente condenaram os assassinatos e atos de violência e destruição. O britânico descreveu o pogrom como uma "barbárie medieval", os brasileiros chamaram-no de "espetáculo repulsivo", e diplomatas franceses escreveram que o "escopo de brutalidade" só foi "excedido pelos massacres dos armênios", referindo-se ao genocídio turco de 1915-1916.
Entretanto, nenhum país rompeu relações diplomáticas com Berlim ou impôs sanções, e apenas Washington retirou seu embaixador. E mais que isso, as fronteiras de quase todos os países permaneceram praticamente fechadas para os cerca de 400 mil judeus alemães.
Muitas missões diplomáticas já estavam em contato com vítimas porque os homens da SS e as SA, funcionários do Partido Nazista e membros da Juventude Hitlerista também estavam assediando os judeus estrangeiros que viviam na Alemanha. No início de novembro, mais de mil judeus que fugiam dos nazistas se refugiaram no consulado polonês em Leipzig. Num relato sobre o destino da família Sperling, o cônsul local escreveu que eles haviam sido praticamente espancados até a morte, e que "muitos objetos valiosos" tinham sido roubado de seu apartamento, "incluindo um rádio, um cheque de 3.600 Reichsmarks, 3400 Reichsmarks em dinheiro e outras coisas de valor. "Os bandidos, aparentemente, despiram a mulher e tentaram 'estuprá-la'".
Os judeus alemães também buscaram proteção em consulados estrangeiros, especialmente nos norte-americanos. "Judeus de toda parte da Alemanha se aglomeraram no escritório até que ele estivesse transbordando de gente, implorando por um visto imediato ou algum tipo de carta relativa à imigração, que pudesse convencer a polícia a não prendê-los nem molestá-los", relatou Samuel W. Honaker, cônsul-geral dos EUA em Stuttgart.
Buscando os motivos
A maioria dos diplomatas estavam bem informados sobre a extensão das atrocidades através de relatos que ouviam de pessoas desesperadas que descreviam suas experiências. Além disso, as janelas quebradas e os recintos saqueados dos estabelecimentos judaicos eram claramente visíveis.
Nesse ponto, pelo menos de acordo com um enviado finlandês, Hitler estava menos interessado em assassinar judeus na Alemanha do que em mandá-los para fora. "A posição do Estado alemão para com os judeus é tão conhecidaque não há razão para escrever muito sobre isso", escreveu num relatório ao seu governo. "Medidas cada vez mais duras estão sendo tomadas contra eles, com o objetivo de expulsá-los do Reich alemão de uma forma ou de outra."
Mas os diplomatas estavam intrigados com o motivo pelo qual os nazistas estavam agindo com tanta violência, especialmente considerando o prejuízo resultante disso à sua reputação internacional. Representantes da França acreditavam que tinha a ver com uma disputa pelo poder dentro da liderança nazista. O enviado suíço assumiu que era a maneira de Hitler demonstrar seu poder. O diplomata britânico Smallbones suspeitava que a explosão de violência havia sido desencadeada por "aquela perversidade sexual... muito presente na Alemanha".
Mas, como os historiadores descobriram após a Segunda Guerra Mundial, Hitler apenas tirou proveito de uma oportunidade. Ele estava em Munique na tarde de 9 de novembro, quando chegou a notícia da morte do diplomata Rath. Nesse mesmo dia, a alta liderança do partido se reunia anualmente para comemorar o fracassado golpe Beer Hall Putsch de Hitler em 1923. Depois de consultar Hitler, o ministro da propaganda Joseph Goebbels incitou outros funcionários na reunião, até que, de acordo com seu diário, eles "correram imediatamente para os telefones". Eles deram instruções aos soldados nazistas, que já estavam ansiosos para maltratar os judeus. Os excessos começaram naquela noite.
1.406 sinagogas destruídas
Muitas sinagogas nas regiões de Württemberg, Baden e Hohenzollern foram "incendiadas por jovens bem disciplinados e aparentemente bem equipados usando trajes civis", relatou Honaker, cônsul-geral dos EUA, observando que o processo foi "praticamente o mesmo" em todas as cidades. "As portas das sinagogas foram arrombadas. Algumas partes do prédio e do mobiliário foram encharcadas de gasolina e incendiadas. Bíblias, livros de oração e outros objetos sagrados foram atirados às chamas", escreveu ele. Um total de 1.406 sinagogas foram incendiadas.
Em seguida, eles começaram a quebrar vitrines. As lojas eram fáceis de identificar, especialmente em Berlim. Alguns meses antes, os nazistas haviam obrigado os lojistas judeus na capital a escreverem seus nomes em tinta branca e letras grandes sobre as vitrines.
A segunda onda aconteceu no decorrer do dia seguinte, conforme relatou o diplomata húngaro a partir da capital alemã: "Na parte da tarde, depois das aulas, adolescentes de 14 a 18 anos, na maioria membros da Juventude Hitlerista, foram soltos nas lojas. Eles invadiram os negócios, onde reviraram tudo de cabeça para baixo, destruíram móveis e tudo que era feito de vidro, bagunçaram toda a mercadoria e depois, enquanto davam vivas a Hitler, deixavam o local para buscar outros lugares para vandalizar. Nos distritos do leste da cidade, a população local também saqueou as lojas devastadas."
Conforme as instruções, os autores não usaram uniformes do partido. Goebbels queria que o público a acreditasse que o massacre era um reflexo da "indignação justificada e compreensível do povo alemão" com a morte do diplomata Rath – e que a polícia estava impotente.
Mas nenhum dos diplomatas acredita nesta versão dos acontecimentos, especialmente, como observou ironicamente um conselheiro da embaixada brasileira, num país com a "polícia mais poderosa, bem organizada, perfeitamente equipada e mais brutal do mundo, na melhor posição possível para reprimir prontamente qualquer tumulto entre a população".
O 'inimaginável' prestes a se tornar realidade
A uniformidade da abordagem em centenas de cidades e aldeias foi suficiente para expor a mentira. Mas acima de tudo, a maioria dos alemães não se comportou da forma como o regime esperava.
Embora tenha havido alguns saques, muitos diplomatas, como o representante finlandês Aarne Wuorimaa, relataram a "crítica devastadora" de membros da população. De acordo com Wuorimaa, "como alemão, estou envergonhado" foi uma "observação ouvida com muita frequência". No entanto, os relatórios geralmente não se aprofundam em se os críticos rejeitavam fundamentalmente a privação de direitos dos judeus em geral ou apenas os métodos brutais nazistas.
O cônsul-geral dos EUA Honaker estimou que cerca de 20% dos alemães apoiaram o pogrom. Há um paralelo surpreendente entre este número e o resultado de uma pesquisa que as autoridades norte-americanas fizeram em 1945, após o Holocausto, em sua zona de ocupação. Na época, um quinto de todos os entrevistados ainda "concordavam com Hitler sobre o tratamento aos judeus". Em outras palavras, eles admitiam ser antissemitas assassinos.
Para muitos dos responsáveis tardios pelo Holocausto, a Noite dos Cristais marcou um ponto de virada. De repente, tudo parecia possível, escreve o historiador Raphael Gross, aludindo ao clima emergente. Os nazistas se sentiam "como pioneiros que tinham acabado de entrar com sucesso em novo território", diz Gross.
Nas semanas seguintes, o regime decretou um grande número de medidas destinadas a perseguir e expropriar os judeus. Crianças judias já não podiam mais frequentar as escolas comuns, e os adultos judeus foram proibidos de ter negócios artesanais ou entrar em universidades. Numa ironia cruel, as vítimas foram obrigadas a pagar um enorme "imposto de reparação" de um bilhão de marcos. "Eu não gostaria de ser judeu na Alemanha", disse Hermann Göring, um dos principais membros do partido nazista.
Infelizmente para os judeus alemães, muitos observadores internacionais não perceberam o radicalismo do sentimento nazista para com suas vítimas. Se tivessem percebido, talvez alguns países de exílio, como os Estados Unidos ou o Brasil, pudessem ter relaxado suas exigências rígidas de imigração, que se tornaram um dos principais obstáculos para os judeus que tentavam emigrar.
Mesmo os diplomatas da aliada mais próxima de Hitler, a Itália, ainda escreviam em novembro de 1938 que era "inimaginável" que os judeus na Alemanha "fossem um dia enfileirados diante de um muro ou condenados a cometer suicídio, ou serem presos em campos de concentração gigantes".
Contudo, esta coisa "inimaginável" – o assassinato sistemático de judeus europeus – começaria aproximadamente três anos mais tarde.
Tradutor: Eloise De Vylder
Nenhum comentário:
Postar um comentário