quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Resposta de Caetano é só uma 'desconversa', diz Benjamin Moser

folha de são paulo
PAULO WERNECKCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA"Uma desconversa": assim o escritor Benjamin Moser, definiu a resposta de Caetano Veloso a sua carta aberta, que a Folha publicou em 9/10. Na carta, Moser pediu ao músico que reconsiderasse seu apoio à legislação que restringe a publicação de biografias não autorizadas.
Caetano respondeu em sua coluna no jornal "O Globo", no último domingo, sem se dirigir diretamente a Moser.
"Há um intraduzível verbo brasileiro, 'desconversar'. Foi uma desconversa", disse Moser à Folha, por e-mail.
Questionado sobre a frase com que Caetano recusa a pecha de censor ("Censor, eu? Nem morta!"), Moser afirma que os atos contradizem as aparências: "Ninguém sai por aí dizendo que quer restabelecer a Santa Inquisição. Na Feira de Frankfurt, o escritor Bernardo Carvalho falou que todo mundo [no Brasil] está contra a corrupção'. É tão fácil. Não significa nada. Com a censura é a mesma coisa."
Segundo ele, a divulgação da campanha do grupo Procure Saber na época da Feira de Frankfurt, "um dos mais importantes símbolos do livre intercâmbio de ideias, justamente no ano em que todos os olhos estavam no Brasil, deu uma impressão de, no mínimo, mau gosto".
Na Alemanha, onde participou de lançamentos de livros de Clarice Lispector e de sua biografia da escritora brasileira, Moser diz ter recebido amplo apoio.
"Todos os escritores, jornalistas, editores, professores, artistas e diplomatas ficaram chocados [com a legislação restritiva]. Eu diria a Caetano, Chico e Gil que nem a biografia mais brega é uma ameaça tão séria a seu legado quanto a decepção --o desprezo, até --da intelectualidade."
Moser ainda criticou o artigo de Chico Buarque, publicado ontem no jornal "O Globo": "E o Chico Buarque apoiando a censura pelo bem do país? Ah, é porque uma vez uma citação dele foi inventada ou tirada do contexto [segundo Chico, no livro "Eu Não sou Cachorro Não", de Paulo Cesar de Araujo]".
"E Chico confessa que nem sabe por que a própria editora [Companhia das Letras] teve que pagar uma indenização à família de Garrincha [pela biografia escrita por Ruy Castro], mas diz que acha uma boa."

    Contardo Calligaris

    folha de são paulo
    Qual romance você está lendo?
    Se eu for chamado a sabatinar um candidato, perguntarei sem falta: qual romance você está lendo?
    Sempre pensei que fosse sábio desconfiar de quem não lê literatura. Ler ou não ler romances é para mim um critério. Quer saber se tal político merece seu voto? Verifique se ele lê literatura. Quer escolher um psicanalista ou um psicoterapeuta? Mesma sugestão.
    E, cuidado, o hábito de ler, em geral, pode ser melhor do que o de não ler, mas não me basta: o critério que vale para mim é ler especificamente literatura --ficção literária.
    Você dirá que estou apenas exigindo dos outros que eles sejam parecidos comigo. E eu teria que concordar, salvo que acabo de aprender que minha confiança nos leitores de ficção literária é justificada.
    Algo que eu acreditava intuitivamente foi confirmado em pesquisa que acaba de ser publicada pela revista "Science" (migre.me/gkK9J), "Reading Literary Fiction Improves Theory of Mind" (ler ficção literária melhora a teoria da mente), de David C. Kidd e Emanuele Castano.
    Uma explicação. Na expressão "teoria da mente", "teoria" significa "visão" (esse é o sentido originário da palavra). Em psicologia, a "teoria da mente" é nossa capacidade de enxergar os outros e de lhes atribuir de maneira correta crenças, ideias, intenções, afetos e sentimentos.
    A teoria da mente emocional é a capacidade de reconhecer o que os outros sentem e, portanto, de experimentar empatia e compaixão por eles; a teoria da mente cognitiva é a capacidade de reconhecer o que os outros pensam e sabem e, portanto, de dialogar e de negociar soluções racionais. Obviamente, enxergar o que os outros sentem e pensam é uma condição para ter uma vida social ativa e interessante.
    Existem vários testes para medir nossa "teoria da mente" --os mais conhecidos são o RMET ou o DANVA, testes de interpretação da mente do outro pelo seu olhar ou pela sua expressão facial. Em geral, esses testes são usados no diagnóstico de transtornos que vão desde o isolamento autista até a inquietante indiferença ao destino dos outros da qual dão prova psicopatas e sociopatas.
    Kidd e Castano aplicaram esses testes em diferentes grupos, criados a partir de uma amostra homogênea: 1) um grupo que acabava de ler trechos de ficção literária, 2) um grupo que acabava de ler trechos de não ficção, 3) um grupo que acabava de ler trechos de ficção popular, 4) um grupo que não lera nada.
    Conclusão: os leitores de ficção literária enxergam melhor a complexidade do outro e, com isso, podem aumentar sua empatia e seu respeito pela diferença de seus semelhantes. Com um pouco de otimismo, seria possível apostar que ler literatura seja um jeito de se precaver contra sociopatia e psicopatia. Mais duas observações.
    1) A pesquisa mede o efeito imediato da leitura de trechos literários. Não sabemos se existem efeitos cumulativos da leitura passada (hoje não tenho tempo, mas "já li muito na adolescência"): o que importa não é se você leu, mas se está lendo.
    2) A pesquisa constata que a ficção popular não tem o mesmo efeito da literária. A diferença é explicada assim: a leitura de ficção literária nos mobiliza para entender a experiência das personagens.
    "Como na vida real, os mundos da ficção literária são povoados por indivíduos complexos cujas vidas interiores devem ser investigadas, pois são raramente de fácil acesso." "Contrariamente à ficção literária, a ficção popular (...) tende a retratar o mundo e as personagens como internamente consistentes e previsíveis. Ela pode confirmar as expectativas do leitor em vez de promover o trabalho de sua teoria da mente."
    Em suma, o texto literário é aquele que pede esforços de interpretação por aquelas caraterísticas que foram notadas pelos melhores leitores do século 20: por ser ambíguo (William Empson), aberto (Umberto Eco) e repleto de significações secundárias (Roland Barthes).
    Na hora de fechar esta coluna, na terça-feira, encontro a mesma pesquisa comentada na seleção do "New York Times" oferecida semanalmente pela Folha. A jornalista do "Times" pensou que a leitura literária, ajudando-nos a enxergar e entender os outros, facilitaria nossas entrevistas de emprego ou nossos encontros românticos.
    Quanto a mim, imaginei que, na próxima vez em que eu for chamado a sabatinar um candidato, não esquecerei de perguntar: qual é o romance que você está lendo? E espero que o candidato mencione um livro que conheço, para verificar se está falando a verdade.

    Janio de Freitas

    folha de são paulo
    No andar das passeatas
    Por que a Polícia Militar do Rio não se empenha em prender os ativos da violência, não se sabe
    A sucessão de passeatas de professores seguidas de violência caótica no Rio tem muito de estranho.
    A frequência das manifestações desses professores já as tornou sem efeito e sem sentido. Continuam, no entanto. Essa movimentação e sua liderança nem enfraquecem o governo municipal nem levam a negociações com perspectiva de acordo.
    A liderança desse segmento de professores municipais é exercida pelo Sepe, que já teve posta em dúvida, além da sua dimensão representativa, a condição de plena validade como Sindicato Estadual de Professores de Ensino. Há outro sindicato, não comprometido com a sucessão de passeatas. Por mais de uma vez, o comando dessa movimentação declarou apoio à ação "black bloc". Nas vésperas da passeata de anteontem, o Sepe conferiu à turma do "black bloc" a condição de vanguarda do professorado municipal em greve há dois meses.
    Mais do que o aproveitamento circunstancial de tais passeatas pela violência "black bloc", portanto, há uma identificação que permite a suspeita de ser, de fato, coordenação. E, sendo assim, a possibilidade de ser um motivo a mais para a exacerbação da resistência a negociações promissoras para o fim da greve.
    O capítulo das reivindicações e ofertas não é menos sugestivo. O pedido inicial do Sepe levaria os professores a um vencimento mensal, no fim da carreira, que hoje seria superior a R$ 124 mil. A leviandade da proposta ficou reconhecida pelo próprio Sepe, ao admitir o erro de suas contas. Mas a irresponsabilidade só encolheu, não desapareceu, porque a nova tabela leva a R$ 62 mil.
    O plano de carreira e vencimentos proposto pelo município, aprovado pelos vereadores e posto em suspenso pelo Judiciário, está longe de empolgante. Mas não é ruim. Só o fato de reconhecer uma carreira aos professores, com a escalada por tempo de serviço e atrações para o regime de 40 horas semanais, já é um avanço importante. Mas o Sepe exige que, em vez de chegar a R$ 9 mil e tanto, entre vencimento e benefícios no último grau da escala, chegue a R$ 24 mil e tanto, irrealidade útil só como obstáculo atual.
    No outro extremo do observável está a conduta da polícia. Quando a baderna arrefeceu, a PM enfim dispôs-se a usar soldados em número suficiente para fazer um cerco e prisões, dadas como seis dezenas. Mas de pessoas que há dias estavam acampadas diante da Câmara Municipal, em cujas escadas sentavam-se ao serem detidas. Não era gente da ação "black bloc". Dessa, se houve prisão, foi em número insignificante.
    Por que a PM não se empenha em prender os ativos da violência, não se sabe. A eles é que interessaria prender para saber de quem se trata, de onde veem, a quem seguem e por que a sanha de destruir sinalizações urbanas, monumentos, partes de prédios públicos, portanto, bens da cidade. Presos foram os acampados que emporcalham, eles mesmos emporcalhados, mas lá estavam por dias e dias de tolerável passividade.
    Não para completar, que faltam muitas, mas, para apimentar as estranhezas, apareceu agora a primeira referência a tiros na agitação, anteontem no Rio. Os disparos vistos na imagem são dirigidos, não contra o nível de pessoas na rua, nem para o alto propriamente, mas para o que poderia ser a altura da copa de árvore urbana. Dois atiradores agitados, na imagem fugaz, em lugar não reconhecível. E, depois, um jovem com braços quebrados, dizendo-se vítima de tiro às 8 da noite na manifestação, mas só se apresentando a um hospital às 11 da noite.

      quarta-feira, 16 de outubro de 2013

      José Simão

      folha de são paulo
      Marina e Dilma! Vai dar jacaré!
      Sabe o que o Lula falou quando viu o Ninho de Pássaro? 'Olha, inauguraram ainda com andaimes'
      Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Piada pronta: "Mulher de Carlinhos Cachoeira quer se candidatar a deputada". E os projetos? Legalizar os jogos de azar e combater a corrupção! Rarará!
      E outra piada pronta: "Pinto Feliz: projeto quer distribuir remédio contra impotência em Cuiabá!". Pinto Feliz em Cuiabá!
      E o predestinado do dia: promotor que pediu a dissolução da torcida do São Paulo: Roberto SENISE! Rarará.
      E Brasil x Zâmbia em Pequim! Pequim é bom porque você pode comprar aquele monte de bugiganga tudo original! E adorei a linha de Zâmbia: Kabaso e Mulenga. E o Brasil suou pra ganhar de Kabaso e Mulenga. Aliás, o Brasil só fez gol quando tiraram o Kabaso! É verdade! No estádio Ninho de Pássaro.
      Aliás, sabe o que o Lula falou quando viu o Ninho de Pássaro? "Olha, inauguraram ainda com os andaimes." Rarará!
      E o Galvão mais rouco que a foca da Disney! Galvanização: corrosão do ouvido humano quando exposto aos comentários do Galvão!
      E a Dilma e a Marina batendo boca? Parecem aquelas vizinhas que ficam batendo boca no muro: "Sua porca". "Melhor porca que corna." "Seu marido não vale nada." Briga de muié! Vai dar jacaré! Muié com muié dá jacaré! "Hoje! Luta no gel! Hipopótamo x Ema!" Rarará!
      E tá na cara que aí tem perrenga pessoal. E a Marina pra viajar pro exterior tem que pedir permissão pro Ibama? Tráfico de animais silvestres! Rarará!
      E o Ceni? O meu anti-herói! E o povo continua zoando com o Ceni! Manchete do Sensacionalista: "Torcedor consegue liminar e impede Ceni de bater novos pênaltis".
      E a manchete do Piauí Herald: "Rogério pede marcha fúnebre no Fantástico'". Pior, diz que o Ceni foi pro "Soletrando" do Luciano Huck e errou a palavra pênalti. "Rogério, soletra a palavra pênalti". E o Ceni: "P-E-N-A-U-T-E! PENAUTE!". Rarará. E o tuiteiro Leandro Batas: "Se pênalti é loteria, a do Rogério tá acumulada". Rarará!
      É mole? É mole, mas sobe!
      O Brasil é Lúdico! Olha essa placa: "Bem-vindos a Osasco! Temos problemas, mas Carapicuíba tem mais". Rarará. Tipo aquele que come banana e joga a casca no vizinho. Tipo aquele que bota o saco do lixo na porta do vizinho!
      Nóis sofre, mas nóis goza!
      Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

        Elio Gaspari

        folha de são paulo
        A escolinha da doutora Dilma
        Desqualificando os outros, ela pode acabar colocando Ismael Silva no lugar de patrono de sua campanha
        A doutora Dilma entrou pela borda no debate da própria sucessão, mandando um recado às pessoas que pretendem ocupar sua cadeira: "Elas têm que estudar muito".
        É o velho discurso da competência. Quem está no governo desqualifica quem não está sob o argumento do eu-sei-do-que-estou-falando. Foi usado à exaustão para desqualificar um torneiro mecânico monoglota, mal relacionado com a gramática, cuja biblioteca cabia numa mochila escolar. É a ele que a doutora deve a Presidência.
        Todos os governos prometem coisas que não cumprem ou metem-se em projetos fracassados. Até aí, tudo bem. O que a doutora não precisa é recorrer à desqualificação como alavanca mistificadora. Se é assim, conviria arrolar dois temas que os candidatos deveriam estudar. Tendo sido insuficiente o estudo da doutora, poderiam desatar os seguintes nós.
        1) Trem-bala
        Trata-se de um projeto que desde 2007 está debaixo da asa da então chefe do Gabinete Civil. Já torrou R$ 65 milhões em planos, leilões adiados e modelagens arquivadas. A primeira estatal a tratar do projeto foi a Valec. Seu presidente, Doutor Juquinha, deixou o cargo e passou pelo cárcere por conta de outros malfeitos.
        2) Enem
        Em 2009, quando o ministro da Educação, Fernando Haddad, anunciou a criação de um exame federal que substituiria o vestibular, o coração da iniciativa estava em oferecer aos jovens dois exames anuais. Isso acabaria com uma seleção selvagem que obriga um garoto de 18 anos a jogar um ano de sua vida numa manhã de prova. A cada ano a promessa foi descumprida e renovada, inclusive pela doutora Dilma. Haddad foi ser poste em São Paulo, Lula elegeu-o prefeito, e seu substituto, Aloizio Mercadante, disse que prefere fazer creches. Tem até o ano que vem para dizer quantas creches fez e explicar por que dois presidentes da República prometeram algo que não entregaram.
        Nos dois casos, a questão é de estudo, mas quem não estudou foi a doutora. No do trem-bala, se tivesse estudado, não teria perfilhado a proposta da Valec, que era uma maluquice em estado puro. O trem-bala sairia do Rio e chegaria a São Paulo sem parar em lugar algum. Já no caso do Enem, deu-se o contrário. Prometeu-se algo factível, mas não se cumpriu por falta de estudo e, sobretudo, de trabalho.
        A essa lista de incapacidades poderiam ser somados os leilões das concessões de portos, estradas e aeroportos. Isso para não falar da promiscuidade que resulta no financiamento público da medicina privada. Em todos os casos, paira sobre as nomeações para as agências reguladoras o espírito da porta giratória condenada pelo comissariado quando estava na oposição e estimulada quando chegou ao governo.
        Desse jeito, a campanha pela reeleição da doutora pode ter um samba de Ismael Silva como fundo musical:
        "Foi tanto bis que eu já não podia atender.
        No entretanto, o que a plateia queria
        era que eu cantasse, cantasse até aprender."

          Alice Munro - Marcelo Coelho

          Alice Munro
          Os contos da escritora prêmio Nobel são como piadas de humor negro, só que sem humor nenhum
          Coisas horríveis podem acontecer na vida de qualquer pessoa, como sabemos. Sabemos também que, depois de um tempo, uma tragédia termina sendo "metabolizada" (para usar um termo da moda), ainda que nunca se supere de fato.
          Parece ser esta a matéria-prima dos contos de Alice Munro, que acaba de receber o Prêmio Nobel de Literatura. Vou lendo seu livro mais recente, "Dear Life", a ser lançado em português pela Companhia das Letras.
          É preciso ter bons nervos. Uma jovem mãe cede ao impulso de fazer amor durante uma viagem de trem. Deixa a filhinha num vagão, dormindo, bem quietinha, claro, e vai ao encontro do rapaz em outro vagão. Quando ela volta para ver a filha... xiii... O leitor já sabia, é claro, que boa coisa não iria acontecer.
          Em outro conto, a personagem principal é uma menina pequena. Ah, ela tem uma irmã mais velha. A mãe se separou há pouco do marido, e vive num trailer, a meio caminho entre a cidade e o mato. Estamos no Canadá. Há lobos no lugar. Também faz frio. O degelo cobre de água uma cratera, de onde se extraem pedregulhos de construção.
          Uns 20 pés de profundidade, especifica Alice Munro. A cachorrinha da família parece que entrou na água; não sabe nadar direito. A menina mais velha acha que sabe. Vai tirar a cachorrinha do poço. Hum, a menina está com roupas de inverno. Xiii...
          Não estrago as surpresas da história, se é que existem, porque de qualquer modo outras coisas acontecerão, e nem todas acabam acontecendo. Mas com isso já se tem ideia do tipo de visão que Alice Munro pretende transmitir.
          A ideia é explorar o passado como trauma. Para evitar a violência extrema das situações narradas, a autora recorre a uma estratégia de velamento. Ou seja, as pessoas não se lembram direito do que aconteceu, as coisas são contadas muito aos poucos, a aparente "ininteligência" do narrador infantil é reproduzida na escrita.
          Evita-se, corretamente, que o leitor receba o impacto direto de uma revelação trágica; vai deduzindo por si mesmo tudo o que aconteceu.
          Com isso, embora a narrativa se estenda por poucas páginas, o tempo subjetivo da história se torna lentíssimo, angustiante.
          É uma espécie de câmera lenta emocional. Enquanto a dona de casa vai de um vagão a outro, cenas de seu casamento anterior, problemas profissionais ou domésticos vão sendo rememorados --como se a autora estivesse pronta a escrever um romance inteiro.
          Só que, debaixo da largueza, da ociosidade desse fluxo de associações e memórias, os fatos reais estão acontecendo, e a tragédia se tece para os personagens.
          São em geral mulheres a caminho da meia-idade, vivendo a vida sem graça de alguma cidadezinha canadense depois da Segunda Guerra Mundial, vagamente a par das tensões entre Estados Unidos e Rússia.
          A ameaça nuclear já sumiu do horizonte contemporâneo, sem dúvida, mas o trauma dos atentados de 11 de Setembro justifica mal ou bem o clima sinistro.
          Para este leitor brasileiro, entretanto, saltam aos olhos os sinais de artificialidade na escrita. Parece aqueles filmes baseados em histórias de Stephen King: num agradável bairro suburbano, com suas calçadas limpíssimas e gramados perfeitos, uma criança passeia de bicicleta.
          Sol, primavera, "tudo normal". A trilha sonora, entretanto, já está produzindo seus zumbidos graves e inquietantes. Estamos avisados.
          O sentido do trágico se perde, e é substituído por outra coisa: o aziago, o agourento, o ominoso. Os contos de Alice Munro são como piadas de humor negro, só que sem humor nenhum. Assume-se, para efeito de profundidade e desencanto, que tudo ocorre num universo sem Deus. Várias denominações religiosas protestantes voejam, como moscas, em volta dos personagens mais mortos do que vivos.
          A falta do Pai, do Filho e do Espírito Santo não ganha muito, todavia, quando a autora apela ao simples Espírito de Porco. "Naquela época nós morávamos perto de um buraco de pedregulhos..."
          Depois de meia dúzia de mortes e acidentes, o leitor sabe que essa descrição não está ali por acaso, e a suposta inocência de quem narra a história se compromete duplamente.
          Tem de ser criança para que o horror apareça de forma velada. Tem de ser bastante adulta para reorganizar a experiência. O resultado é que muitas vezes os personagens de Alice Munro parecem pouquíssimo inteligentes; propostas de casamento, ameaças de chantagem, negócios imobiliários se sucedem com o óbvio intuito de produzir sofrimento. E de dar ao leitor a imagem de uma escritora desencantada e profunda.
          Alice Munro ganhou o Prêmio Nobel. Bem, não é caso para maiores alarmes. Coisas bem piores podem acontecer.

          terça-feira, 15 de outubro de 2013

          Rosely Sayão

          Casa perfeita. Com crianças?
          A palavra lar -- que evoca família, uso da casa, afetividade-- caiu em desuso: foi substituída por casa
          Você já reparou, caro leitor, que em cenas de novelas e filmes em que há a presença de personagens infantis, nunca há vestígios da presença de crianças nas casas? Sofás claros sem nenhuma mancha, vasos com plantas lindas e viçosas, enfeites delicados feitos com material muito vulnerável, como cristal ou vidro, por exemplo. Tudo intacto. Diferentemente das casas em que moramos, em que crianças fazem a maior bagunça, não é verdade?
          Assim tem sido já há um bom tempo. Talvez, desde que o mundo do espetáculo tomou conta de nossas vidas e que famosos mostram, com orgulho, fotos de suas casas. Impecáveis, por sinal.
          O corpo e a casa dos famosos têm sido uma pedra no sapato de quem vive a vida como ela é. A aparência é tudo, não é? Por isso, queremos, a todo custo, uma casa semelhante às fotos que vemos em revistas.
          O problema que nos impede: temos crianças em casa. E crianças querem ver o que há embaixo da planta que a sustenta firme e forte em pé no vaso, querem saber o que acontece quando um enfeite cai no chão, desabam no sofá quando querem assistir à televisão ou, apenas, descansar. Aliás, como nós, quando chegamos em casa. A diferença é que eles não sabem controlar o corpo, ainda.
          Não é à toa que a palavra lar caiu em desuso. Lar --que evoca família, uso da casa, convivência, afetividade-- foi substituída por casa. Queremos uma casa bonita, perfeita. Ou quase.
          Drummond já antevia esse movimento e, em seu poema "Casa Arrumada", diz: "...casa, para mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um cenário de novela.... Sofá sem mancha? Tapete sem fio puxado? Mesa sem marca de copo? Tá na cara que é casa sem festa". Sem criança, acrescento.
          Por conta desse anseio do mundo contemporâneo, muitas mães e pais estão às voltas com a questão de como ensinar o filho a arrumar as suas coisas. Ensinar talvez não seja a palavra certa. Exigir cai melhor.
          Em uma rede social da qual participo, um post fez sucesso nos últimos dias. Uma tabela, feita por um pai, mostra os descontos de mesada que o filho sofre ao deixar de fazer o que ele considera necessário. Além das questões escolares, prioridade dos pais na atualidade, a mesada será descontada se o filho deixar a casa desarrumada.
          Então, vamos lembrar: crianças com menos de cinco anos, mais ou menos, não são capazes de organizar suas coisas. Aprendem ajudando --ajudando!-- seus pais, que são os responsáveis pela arrumação. Dos brinquedos, inclusive.
          Elas também não conseguem se conter quando querem explorar o mundo. E a casa em que moram é seu mundo! Por isso, com criança pequena em casa, é melhor recolher enfeites preciosos e plantas. E esquecer do sofá claro todo limpo.
          Depois dos cinco anos, ela já consegue se organizar, mas com a ajuda de seus pais, e não com tabelas punitivas. Ela arruma, e seus pais ajudam.
          Finalmente, na adolescência: os filhos podem ser responsabilizados pela própria organização e pelo respeito aos ambientes comuns da casa, mas ainda com a tutela dos pais. Não adianta querer que eles se comportem como adultos!
          Você já tinha se dado conta, caro leitor, de como nosso estilo de vida afeta a educação que damos aos filhos e a convivência com eles?