segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Governo de Marina seria similar aos de FHC e Lula,diz Giannetti na Entrevista da 2ª

folha de são paulo
ENTREVISTA DA 2ª - EDUARDO GIANNETTI
Marina Silva faria governo menos estatizante que Dilma
CONSELHEIRO DA EX-SENADORA, ECONOMISTA DEFENDE 'TRIPÉ' EM POLÍTICA AUSTERA E CONDENA CRESCIMENTO A QUALQUER PREÇO
ELEONORA DE LUCENADE SÃO PAULOUm governo similar à segunda gestão de FHC e à primeira de Lula. Menos estatizante do que Dilma. Assim seria uma eventual administração Marina Silva na visão de um dos seus principais conselheiros, o economista Eduardo Giannetti da Fonseca, 56.
Defensor da austeridade, ele faz eco às palavras da ex-senadora que tem defendido o chamado "tripé" (superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação). Na sua opinião, essas ideias estão longe de significar que Marina virou uma candidata do mercado financeiro.
Em entrevista concedida em São Paulo na última quinta-feira, Giannetti critica o governo e advoga que o crescimento não deve ser feito a qualquer preço: "Crescer 7% destruindo patrimônio ambiental é muito pior do que se crescer 3% preservando".
Ex-professor da USP, de Cambridge e do Insper, Giannetti conversa duas ou três vezes por semana com Marina. Para ele, há dificuldade na fusão com o PSB e obstáculos para atrair empresários para o grupo. "A elite empresarial está no bolso do governo", diz.
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Folha - Como a economia vai estar no ano eleitoral?
Eduardo Giannetti da Fonseca - Não tem perspectiva de crescimento mais forte. Entramos numa fase de baixo crescimento crônico, com uma inflação teimosamente na vizinhança do teto da meta e num caminho de vulnerabilidade externa. A conjuntura internacional mudou. Há um componente estrutural que é a deterioração fiscal desde 1988. E tem um componente conjuntural que é piora da qualidade da política econômica a partir do segundo governo Lula e, de forma acentuada, durante Dilma. O Brasil tinha uma carga tributária bruta de 24% do PIB em 1988 e o Estado investia 3% do PIB. Hoje temos uma carga de 36% do PIB e investimento de 2,4% do PIB.
Mas o maior aumento da carga tributária foi com FHC.
FHC abriu a frente das contribuições, que hoje representam mais para o governo federal. O que era para ser exceção virou regra e gerou um estrago fiscal que está asfixiando o Brasil.
Mas a taxa de juros elevada não é responsável por isso?
Isso foi o caso no primeiro mandato do FHC, quando havia câmbio fixo e valorizado e a política monetária tinha que ser aquela para manter o câmbio fixo. O governo FHC errou muito ao manter a âncora cambial. A partir do momento que flutuou o câmbio, o juro começou a baixar.
Mas ainda é muito alto.
É alto, mas não é o que explica esse estrago fiscal. O Brasil vinha de um bom momento, que foi o segundo mandato de FHC e o primeiro de Lula, quando prevaleceu o tripé: austeridade fiscal, superávit primário para valer, câmbio flutuando, autonomia do BC para cumprir o centro da meta de inflação. Isso começou a se fragilizar com a expansão fiscal do segundo mandato de Lula, até certo ponto justificável pela crise de 2009. Só que a partir de 2009, e do governo Dilma, as três pernas do tripé fraquejaram.
O empresariado pode desembarcar do apoio à presidente Dilma e apoiar Marina?
Esses movimentos não são nunca em bloco. O que me entristece é ver boa parte do empresariado brasileiro tutelado pelo governo e neutralizado na sua capacidade de crítica pelo fato de depender de obséquios, favores, subsídios e proteção que o governo oferece. O empresariado brasileiro em boa parte se comporta como súdito e não como cidadão. O governo abriu esse balcão de negócios. Começou a negociar caso a caso tarifa de proteção para setor, a abrir os cofres dos bancos estatais para os empresários. Como é que um empresário que está dependendo de um crédito de um banco estatal vai poder aparecer publicamente criticando o governo? Ele fica tolhido. A elite empresarial está no bolso do governo.
Fazendo um discurso de austeridade, Marina atrai o mercado financeiro. Ela virou a candidata das finanças?
Longe disso. O primeiro governo Lula foi um governo do mercado financeiro? Foi um governo bom para o Brasil. E sendo bom para o Brasil foi bom para parte do mercado financeiro. Mas não foi feito para o mercado financeiro. Foi feito para o Brasil consolidar uma conquista que é da sociedade.
Então um eventual governo Marina seria mais parecido com o segundo mandato FHC e o primeiro de Lula?
Sim. No tocante à política macroeconômica, não vamos reinventar a roda. Vamos continuar o que estava funcionando muito bem no Brasil, que é o tripé.
O sr. elogia esses períodos, mas eles foram de baixo crescimento, ruins, certo?
Foi quando se plantaram as bases de um crescimento melhor no Brasil. FHC privatizou, quebrou monopólios, acabou com a discriminação do capital estrangeiro, fez a lei de responsabilidade fiscal. No primeiro governo Lula, a agenda microeconômica foi formidável, porque melhorou o ambiente de negócios: nova lei de falências, alienação fiduciária, crédito consignado. Estava indo bem.
O sr. concorda que Eduardo Campos tem um discurso mais desenvolvimentista, enquanto Marina se posiciona para o lado neoliberal?
Temos que nos posicionar em torno do valor central que é a sustentabilidade. Mais Estado ou mais mercado? Em algumas coisas, mais Estado; em outras, mais mercado.
O grupo de Marina está à direita ou à esquerda de FHC?
Não sei dizer. Essa tentativa de categorizar numa relação binária toda uma proposta complexa me parece muito precária.
Em relação a Lula e Dilma, como o sr. situa Marina?
Menos estatizante que Dilma.
Um governo Marina reduziria o tamanho do Estado?
Não dá para colocar tudo num pacote. Para algumas coisas precisa de mais Estado e, para outras, menos Estado. O Estado deveria estar mais atuante na saúde pública, no ensino fundamental, no saneamento básico. Não entendo um governo que coloca tanta ênfase num trem bala e deixa esquecida a questão do saneamento básico.
Desenvolvimento sustentável significa um ritmo menor de crescimento?
Não, mas não é crescimento a qualquer preço. O que interessa é o crescimento da renda com qualidade de vida.
Muitos dizem que esse raciocínio implica dizer: não dá para crescer no ritmo que os outros cresceram; o melhor é se contentar com pouco.
Se tudo der certo no Brasil, a gente vira um EUA? Acho que não faz o menor sentido.
Mas o Brasil não precisa se preocupar em gerar empregos e riqueza? Essa sinalização de que não se poderá crescer muito é boa?
Não colocaria que não pode crescer muito. Precisamos encontrar um caminho de crescimento adequado às nossas necessidades e sustentável ambientalmente.
Isso significa ritmo menor?
Ritmo é menos importante do que a qualidade. Crescer 7% destruindo patrimônio ambiental é muito pior do que se crescer 3% preservando patrimônio ambiental e, na medida do possível, melhorando as condições de vida. O crescimento em si não é o objetivo. Nenhum governo pode prometer crescimento. Crescimento é uma escolha que a sociedade faz. O governo não tem uma alavanca. Pode oferecer um ambiente mais amigável ou não.
O sr. acha que a Marina ofereceria um ambiente mais amigável com essas restrições ambientais?
Temos que separar duas coisas. Uma é o grau de exigência ambiental para um país como o nosso. Outra é como vai ser o processo de seleção de investimentos. Vamos ter um nível de exigência alto, mas os processos podem ser mais ágeis e confiáveis.
Quais são as maiores dificuldades dessa fusão PSB-Rede?
Vai ser muito trabalhoso construir um programa e ter a garantia de que ele reflita de fato um compromisso de governo. Não tem nenhuma garantia prévia de que esse processo resulte num entendimento enraizado e profundo dos valores que justificam a colocação de uma alternativa para o país. Não sei qual é a proposta e o programa do PSB na área econômica.

    domingo, 20 de outubro de 2013

    Para coronel Íbis Pereira,do Rio, livros podem evitar a violência da PM

    folha de são paulo
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    MARCO ANTÔNIO MARTINS
    DO RIO

    Diante da correria do quartel central da Polícia Militar do Rio, o coronel Íbis Pereira, 50, desce de um carro particular em trajes civis.
    Sua figura de pouco mais de 1,60 m, voz pausada e ar professoral nem parece ser o expoente de uma geração que busca novos rumos para a corporação, envolvida em uma série de denúncias nos últimos três meses -de truculência em manifestações à tortura e morte do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, 43, na Rocinha.
    Crítico do que chama de "Bopelatria", a veneração de jovens pelo Bope, o Batalhão de Operações Especiais famoso após o filme Tropa de Elite (de 2007), o coronel cita filósofos e pensadores modernos para defender que as manifestações têm tudo para transformar não apenas a sociedade, mas também a própria polícia.
    "Só o pensamento pode enfrentar essa barbárie. Vivemos um ódio que explode dos dois lados", diz o diretor de ensino da PM. "A polícia precisa aprender a lidar com isso. Acertar mais a mão."
    Esta é uma das teses do coronel, para quem o pensamento evita a violência policial. "Pensar dói", diz, apelando a Fernando Pessoa.
    O coronel levanta uma série de "poréns" a práticas atuais da polícia.
    Não esconde, por exemplo, seu incômodo com o símbolo do Bope, a caveira. Se pudesse, acabaria com a imagem, garante ele.
    "É impressionante como uma crítica à violência se tornou um glamour. Uma Bopelatria", analisa Pereira.
    O coronel sugere: "Trocaria por algo que representasse a agilidade, a destreza. O símbolo traz a ideia da transcendência. É associado à guerra. Não pode ser da polícia."
    LIBERTAÇÃO
    Filho de uma dona de casa e de um pai ferroviário, que não chegou a conhecer, o coronel foi criado no bairro de Anchieta, subúrbio na zona norte da capital fluminense.
    Influenciado pelas ideias da Teologia da Libertação, diz adorar a "militância cristã". Até hoje, usa um anel de tucumã num dedo da mão direita, adereço comum a católicos praticantes.
    O coronel Pereira ingressou na PM em 1983, influenciado pelas ideias do antropólogo Darcy Ribeiro e do então comandante-geral Carlos Nazareth Cerqueira, um dos primeiros oficiais no país a defender uma "polícia próxima ao cidadão".
    Formou-se em direito e filosofia. Agora, faz um mestrado em história na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
    "A dignidade da pessoa não é valor no Brasil. É apenas retórica, discurso. A pessoa vomita isso, mas não acredita. Os direitos humanos são um conceito em crise", avalia o policial.
    As ideias do coronel são compartilhadas por um grupo fiel de cerca de 50 seguidores. Um deles é o também coronel Antônio Carlos Carballo, com quem divide o ideal de que a literatura pode convencer a corporação da polícia dos benefícios de se evitar a violência.
    "Isso humaniza todos eles, cria um pensamento", diz, citando os escritores Machado de Assis, Guimarães Rosa e o russo Dostoievski.

    Evento com filósofo traz alternativa ao 'pé na porta'



    DO RIO
    Ouvir o texto

    Discutir a "violência interior" em um evento organizado junto com o jornalista e filósofo Adauto Novaes e a FLUPP (Festa Literária das UPPs) foi a forma encontrada pelo coronel Íbis Pereira para levar aos futuros policiais uma alternativa de pensamento contrário à cultura do "pé na porta" ainda amplamente vigente no país.
    "É muito difícil mudar essa cultura. A nossa PM não é muito atrativa, ainda é formada por jovens de classe média baixa. Precisamos ter gente que não se deixa contaminar pela violência", diz.
    Rony Maltz/Folhapress
    PMs assistem palestra do filósofo francês Frédéric Gros, na Academia Dom João VI, na zona oeste do Rio de Janeiro
    PMs assistem palestra do filósofo francês Frédéric Gros, na Academia Dom João VI, na zona oeste do Rio de Janeiro
    Folha assistiu a duas das 12 aulas ministradas aos soldados e futuros oficiais. Numa, o filósofo francês Frédéric Gros reconheceu, a uma plateia de 450 jovens: "É sempre assustador estar diante de jovens com uma função tão difícil. Falar em violência policial é sempre insuportável", afirma.
    Gros lembrou em 1 h 30 de conversa que as raízes internas da violência passam pela desconfiança, pelo medo, pela paixão e pela glória.
    Na plateia, os jovens querem saber como agir, por exemplo, diante das manifestações. Íbis entra no debate. Diz que a grande dificuldade, nesse caso, é que ela é praticada por dois lados -policiais e mascarados.
    "Se fosse só a violência policial era fácil de resolver: acabava-se com a polícia. Mas é muito mais complexo que isso. Precisamos buscar estratégias, não apenas o Batalhão de Choque", afirma.
    A iniciativa de juntar policiais e filósofos em um mesmo ambiente não foi fácil, mas acabou elogiada.
    "A aceitação é difícil, ainda mais com uma garotada que sonha em ser o capitão Nascimento", diz o filósofo e jornalista Adauto Novaes.
    "Tomara que a prática se repita e assim criarmos uma cultura na corporação", diz o historiador Julio Ludemir.
    O secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, é um dos entusiastas da linha do coronel Pereira. "O coronel Pereira e o Antônio Carlos Carballo são excelentes cabeças. São vários como eles numa corporação de 50 mil pessoas. Esse é o problema: uma coisa combinada no gabinete, às vezes, não chega às ruas", reconhece.
    Hoje diretor de ensino da PM, o coronel Íbis chegou a coordenar a Escola de Formação de PMs. Em 22 meses, fez da biblioteca da escola uma referência na zona oeste do Rio. "Ninguém entende mais do lado sombrio da alma humana que Dostoievski. O policial precisa saber disso para se entender", afirma.

    Biografias sobre trilhos - Rubens Figueiredo

    Folha de São Paulo
    Biografias sobre trilhos
    Paralelismos e desencontros em "Anna Kariênina"
    RUBENS FIGUEIREDO
    RESUMO A presença dos trens no romance de Tolstói (1828-1910) aponta para uma trama subjacente à obra, a das pretensões modernizadoras da Rússia. Mas a imagem ferroviária reflete também o princípio ordenador da trama, em que pares de personagens e situações se desdobram sem se encontrarem, como as paralelas dos trilhos.
    O leitor dificilmente deixará de notar o peso da presença dos trens em "Anna Kariênina".
    É numa estação ferroviária, por exemplo, que Anna conhece Vrónski, seu futuro amante. Na ocasião, para horror da protagonista, um homem morre esmagado por um trem --ela própria, como se sabe, se suicidará jogando-se sob as rodas de um vagão. As últimas cenas do romance também se passam numa estação, quando Vrónski parte para a guerra como voluntário. Seu intuito é antes morrer do que alcançar um triunfo militar. E o trem é o veículo para obter o que deseja.
    Na mesma passagem, primeiro na estação e depois dentro de um vagão, os personagens põem à prova suas visões a respeito da guerra. São inúmeras, no romance, escrito entre 1873 e 1877, as situações em que o trem é fator da ação --elemento presente ou objeto de alusões em conversas, pensamentos ou sonhos.
    As ferrovias eram novidade na Rússia. Exprimiam um dos esforços mais salientes para modernizar uma sociedade que se via como atrasada, tolhida por traços pré-capitalistas. As vias férreas eram encaradas não só como um instrumento com fins práticos óbvios num país de território vastíssimo mas também como um símbolo do empenho para equiparar a Rússia aos países ricos.
    Por isso é importante ressaltar que Liévin --um dos personagens mais importantes do livro-- manifesta críticas às estradas de ferro.
    Sua atitude é ridicularizada por amigos, que mal lhe permitem expor suas objeções e nem mesmo querem ouvi-lo. Nesse aspecto, veem em Liévin um excêntrico ou um provinciano retrógrado. E Tolstói se vale do personagem para apresentar muitas de suas dúvidas e questionamentos em relação ao que a Rússia pretendia fazer de si mesma e ao projeto de integrar o país ao capitalismo.
    MAU AGOURO É inevitável lembrar que o próprio Tolstói viria a morrer justamente numa estação de trem. Mas nem é preciso chegar a tanto. Sem sair das páginas do romance, constatamos que a ferrovia está associada ao destino infeliz ou trágico de personagens importantes do livro. Contra esse fundo, o conforto dos vagões de luxo e a comodidade dos deslocamentos rápidos, a despeito da sua imagem orgulhosa de progresso, contêm uma nota de mau agouro.
    Se o trem concentra um dos principais temas subjacentes ao romance --a polêmica em torno do projeto modernizador da Rússia--, de outro lado oferece a figura visual constante de dois trilhos paralelos. Isso vem ao caso, pois as linhas paralelas representam um dos princípios mais importantes na estruturação do livro, a constante formal que baliza a ação e ajuda o livro a manter coesas as numerosas e variadas linhas do enredo.
    O título nos rascunhos era "Dois Casais", ou "Dois Casamentos". Essa dupla de pares justapostos reforça a imagem das linhas paralelas e traz à mente a imagem dos trilhos. Assim, o casamento integra-se ao tema de fundo do livro e confere uma forma concreta ao mais importante princípio estruturador do romance: o paralelismo.
    Do que se diz aqui, alguém que não leu "Anna Kariênina" poderia pensar que se trata de um romance esquemático, escrito com régua e esquadro. Não é nada disso, nem de longe. Não que o forte da prosa de Tolstói seja a sutileza ou a discrição. Não é. Seu ímpeto procura o concreto. Um dos principais méritos do livro, sua abrangência, deve muito ao fato engenhoso de não se prender a um centro.
    A distribuição da ação em linhas paralelas, em geral formadas por casais, escapa do perigo de adquirir uma feição mecânica porque tais linhas têm rumos em grande parte independentes. Não seguem uma direção única, estável; seu destino é tortuoso, incerto.
    O crítico russo Viktor Chklóvski (1893-1984) estudou os procedimentos estilísticos de Tolstói e sublinhou o paralelismo. Chklóvski cunhou o conceito de construção escalonada, procedimento que se apresenta quando a narrativa desdobra um objeto mediante reflexos e justaposições. Essa é a base do paralelismo em "Anna Kariênina".
    Senão vejamos: a constante presença da ferrovia contém um reflexo das linhas paralelas em que se distribuem os casais e os personagens. De maneira mais específica: o acidente ocorrido na chegada de Anna a São Petersburgo no início do livro contém um reflexo da sua própria morte sob as rodas de um trem, no final. E ainda: a frustrada tentativa de suicídio de Vrónski, o amante de Anna, surgirá como um reflexo antecipado do suicídio de Anna. E mais ainda: o livro abre com a crise conjugal por que passa o irmão de Anna. Ela chega à capital para preservar o casamento ameaçado. E consegue. Mas essa crise, vista em retrospecto, surge como um reflexo da crise conjugal da própria Anna, que se desenvolverá nas partes seguintes.
    As duas crises conjugais refletem-se. A segunda, a de Anna, se apresenta mais grave do que a primeira, a do irmão: ela se consuma na separação do casal oficial, ao contrário da primeira crise, resolvida com uma conciliação formal. A mesma gradação do mais fraco para o mais forte se verifica nas duas tentativas de suicídio: a primeira --a de Vrónski-- se mostra mais fraca, contornável; a segunda --de Anna-- tem desfecho fatal.
    Olhando bem, até nesse quadro de dois pares e de duas ações que se refletem vemos formar-se outro paralelo: o da gradação a que ambos os pares obedecem. O primeiro tem efeito mais fraco; o segundo é conclusivo. O primeiro poderia ser visto como um agouro, um mau sinal. Talvez uma variedade mágica do paralelismo.
    Mas voltemos às duas crises conjugais. Elas se refletem, embora tomem rumos distintos. A despeito do motivo comum (o adultério), são independentes, exceto na sua disposição no espaço do romance, pois aí as duas crises conjugais estão presas uma à outra. Ou seja, só a construção do livro cria uma associação entre tais fatos. Os acontecimentos em si mesmos não supõem tal associação.
    Outro efeito desses reflexos de ações cronologicamente distantes é o enfraquecimento da noção do tempo linear. Pois, se um objeto ou um fato se reflete em outro, do passado ou do futuro, ambos estão presentes simultaneamente no pensamento: o tempo perde sua força de sequência, de concatenação, e adquire outra forma --a da duração.
    DESDOBRAMENTO A técnica do desdobramento do material romanesco permite que Tolstói expanda o romance até alcançar as dimensões incomuns que apresenta, sem perder a coesão.
    Não se trata apenas de desdobrar a crise conjugal do irmão de Anna na crise conjugal da própria Anna, como já vimos. Também não se trata apenas de desdobrar o eixo principal da narração em dois casamentos: o de Liévin e Kitty e o de Anna e Vrónski. O próprio casamento de Anna se desdobra em dois: o de Anna com Kariênin e de Anna com Vrónski. E mais ainda: Tolstói dá um passo além e conduz o processo de desdobramento até o âmago da personalidade de Anna.
    Refiro-me à passagem em que Anna começa a ser vencida pela indecisão e pela ambivalência da sua situação, na qual tinha um marido e também tinha um amante, sem nada esconder de ambos e sem poder desfazer-se nem de um nem de outro. Diz o texto de Tolstói:
    "Anna não só estava pesarosa, como também começava a sentir um pavor diante de um novo estado de espírito, que nunca experimentara. Sentia que em sua alma tudo começava a duplicar-se, como às vezes se duplicam os objetos para os olhos cansados. Às vezes, não sabia o que temia e o que desejava. Não sabia se temia ou se desejava o que existira antes ou o que iria existir, nem sabia exatamente o que desejava."
    Logo adiante, o texto diz: Anna "sentiu que sua alma começava a duplicar-se". Quer escrever uma carta para o marido e outra carta para Vrónski. Planeja abandonar o marido, mas quer levar o filho. Tolhida pelas alternativas, Anna se divide entre elas. E esse processo de divisões e subdivisões sucessivas contém um reflexo do processo de duplicação, de desdobramento, que ocorre em paralelo. Pois, na passagem citada, a consciência dividida de Anna engendra um mundo duplicado. Passo a passo, o romance se expande e multiplica as linhas do seu enredo e as projeta em dobro sempre adiante.
    Digno de nota é o caso dos filhos de Anna. São dois: um menino, que ela tem com o marido; e uma menina, que tem com o amante. Anna se apega cada vez mais ao menino, o filho do marido, cujas feições se refletem no rosto da criança. No correr do romance, vê-se separada à força do filho e passa a procurá-lo com um ímpeto que toma o aspecto dos anseios de uma mulher apaixonada. De outro lado, Anna repudia a filha que tem com Vrónski. Parece ver na menina uma espécie de usurpadora que pretende tomar a posição do filho.
    Esse desdobramento dos filhos e o paralelo formado pelos sentimentos vão se refletir no marido de Anna. Pois o marido, Kariênin, mesmo sabendo que não é o pai da criança, trata a menina com zelo paternal e, sem seu cuidado, talvez a criança nem sobrevivesse aos primeiros dias após o parto. Kariênin jamais se mostrou assim com o próprio filho.
    Portanto ele também se duplica: no caso da filha de Vrónski, ele deixa de ser o homem preso às convenções. Chega a tratar com grande consideração o amante da esposa. Desse modo como que atravessa as linhas paralelas que compõem o nosso quadro.
    DINAMISMO Nessa situação, tão nitidamente calcada em linhas duplas que se dividem e se desdobram, pode-se ver que o paralelismo em "Anna Kariênina" não se traduz em antíteses, em oposições simétricas, nitidamente contrastantes. Há um dinamismo capaz de dar aos termos de cada um desses paralelos uma boa margem de autonomia, de vida própria.
    O reflexo, processo em que os termos de cada par se espelham, confere coesão ao conjunto. O dinamismo que os movimenta evita que essa coesão se prenda a simetrias. Quero dizer, os termos que formam os pares e os paralelos não têm o mesmo peso.
    O movimento de linhas paralelas tem um duplo aspecto. Supõe necessariamente uma semelhança, uma vez que as linhas se acham sempre lado a lado: cada uma sempre se refere à outra. Mas também supõe que as linhas nunca estão juntas. Sempre refletidas uma na outra, prendem-se, na verdade, em função de um desencontro.
    Assim todos os casais importantes em "Anna Kariênina" se mantêm ligados em função de um constante desencontro. O que distingue os vários casais é seu sucesso ou seu fracasso em manter tal desencontro sob controle.
    No caso de Kitty e Liévin --a família supostamente feliz--, esse esforço de estabilidade no desencontro chega ao fim do romance com sinais de um êxito precário. No caso de Anna e seu novo casamento, nunca sancionado socialmente, o desencontro sai do controle. Torna-se insustentável e conduz à destruição a parte mais frágil: a mulher. Nesse aspecto, a construção com base no paralelismo, da forma elaborada por Tolstói --um paralelismo assimétrico--, contém marcas de um mundo social intrinsecamente desigual e opressivo.
    Merece lembrança outro paralelo, não mencionado explicitamente no romance, mas postulado em sua concepção geral: o desencontro que prende a Rússia aos países ricos da Europa. Em várias situações de "Anna Kariênina", a vida da elite russa apresenta reflexos desse modelo distante. Basta lembrar a frequência com que se fala francês, inglês e alemão entre as personagens e com que se mencionam obras e conquistas científicas e políticas daqueles países.
    Aqui também, a exemplo do que ocorre com os vários casais do livro, os dois termos do par não se encontram. Correm em paralelo, com pesos desiguais. A Rússia e o modelo capitalista estão presos um ao outro em um desencontro constante. Se isso, por sua vez, pode ser visto como um reflexo antecipado --como sinal ou mau agouro-- de outro paralelo do qual somos parte hoje, é uma questão que vale a pena se fazer, quando lemos "Anna Kariênina".
    Vida de Tolstói é tema de dois novos livros
    As duas biografias se complementam: a de Bartlett busca aproximar o leitor do contexto de Tolstói. Já a de Bassínski centra o foco nos derradeiros dias do escritor
    IRINEU FRANCO PERPETUO
    Um dos maiores escritores russos de todos os tempos foi também um pensador com influência sobre algumas figuras-chave da história do século 20, como Mahatma Gandhi. Chegam agora ao Brasil duas biografias lançadas no exterior em 2010, por ocasião do centenário de falecimento de Tolstói (1828-1910).
    O próprio contraste entre os festejos da efeméride no Ocidente e o silêncio oficial na Rússia mostram o quanto o escritor ainda é incômodo em sua terra natal. "Uma das razões para isso é que, nos últimos 30 anos de vida, ele adotou ideais de vegetarianismo, pacifismo e não violência que não combinam muito com a Rússia de hoje, com sua cultura machista", disse à Folha a britânica Rosamund Bartlett, autora de "Tolstói, a Biografia"[trad. Renato Marques, Globo, R$ 69,90, 640 págs.].
    "Ele é tão inconveniente hoje quanto cem anos atrás", afirmou, em 2010, o russo Pável Bassínski, autor de "Tolstói: a Fuga do Paraíso" [trad. Klara Guriánova, Leya, R$ 59,90, 480 págs.].
    O autor de "Anna Kariênina" não foi mencionado em pronunciamentos de Putin ou Medvedev, não houve eventos do Ministério da Cultura nem os programas especiais de TV que são de praxe nessas ocasiões. E, apesar dos apelos generalizados, a Igreja Ortodoxa Russa recusou-se a aproveitar a ocasião para "reabilitar" Tolstói, excomungado em 1901.
    Uma situação no mínimo paradoxal para um país no qual a literatura desfruta de status análogo ao da música popular no Brasil: o de item definidor da cultura nacional e de afirmação de sua identidade perante o planeta.
    Embora o escritor-ícone da Rússia --seu Shakespeare, seu Camões-- seja Púchkin, ele é mais apreciado no país do que fora dele. A penetração da literatura russa no Ocidente é um fenômeno francês da década de 1880, que teve como carros-chefe Dostoiévski e Tolstói, ainda hoje os escritores russos mais valorizados no exterior.
    A difusão de Tolstói no Brasil é antiga e, depois da virada do milênio, proliferaram traduções de suas obras-primas feitas diretamente do russo --com destaque para as de Rubens Figueiredo, que se ocupou de seus grandes romances, como "Anna Kariênina", "Guerra e Paz" e "Ressurreição".
    As biografias recém-lançadas funcionam de modo complementar. Bartlett tem uma abordagem abrangente, procurando aproximar o leitor ocidental do contexto de Tolstói. Já Bassínski centra o foco no mesmo período abordado pelo filme "A Última Estação" (2009), de Michael Hoffman: os derradeiros dias do escritor.
    Partindo de uma pesquisa sobre os ancestrais de Tolstói, o livro da britânica é daqueles a manter à mão. Índice remissivo, cronologia, árvore genealógica, mapa e caderno de imagens formam um aparato de apoio que, na edição brasileira, é enriquecido pelo meticuloso levantamento, feito por Denise Bottmann, da bibliografia do escritor no Brasil, desde o final do século 19 até hoje, indicando quais obras foram vertidas diretamente do russo e quais não.
    Especialmente valoroso é o epílogo, chamado "Patriarca dos Bolcheviques", em que Bartlett narra o conturbado destino dos adeptos do escritor e de suas obras depois da Revolução de 1917.
    CRISE MÍSTICA O que aproxima Bartlett e Bassínski é um evidente fascínio pelo Tolstói pós-literatura. Por volta de 1877, ele passa por uma "crise mística", da qual emerge professando uma espécie peculiar de cristianismo ascético e hostil à igreja estabelecida. Nos anos subsequentes, vai abrir mão de bens e direitos autorais, repudiar as obras-primas às quais devia sua reputação e adquirir uma aura de santo que transcenderia largamente as fronteiras da Rússia.
    Bartlett esmiúça o empenho de Tolstói no campo que talvez pudéssemos chamar de "educação popular" e descreve detalhadamente um dos momentos decisivos para a consolidação de sua autoridade moral: a grande fome da década de 1890, na província de Riazan, em que a ajuda do escritor aos camponeses contrastava dramaticamente com a imobilidade do governo dos czares e a indiferença dos latifundiários.
    Embora não os explore a fundo, a autora traça paralelos entre a vida pessoal de Tolstói e seus grandes romances. Nesse aspecto, Bassínski é mais radical: ele parece depreender que qualquer interessado na vida do escritor já conhece "Anna Kariênina" e "Guerra e Paz", passando ao largo dessas obras. Seu objetivo é investigar os dez últimos dias da vida do escritor.
    Na noite de 27 para 28 de outubro de 1910, aos 82 anos, Tolstói evadiu-se de sua propriedade rural, em Iásnaia Poliana --uma fuga que só terminaria em 7 de novembro do mesmo ano, com sua morte, na estação ferroviária de Astápovo. Bassínski dedica um capítulo para cada dia da jornada, traçando sua biografia em retrospectiva.
    O casal Tolstói mantinha diários que, por determinação do marido, eram lidos por ambos os cônjuges --e, portanto, às vezes mais ricos em recados de parte a parte do que em confissões (quando ele resolveu ter privacidade, começou um outro diário, escondido de sua mulher, Sófia Andrêievna).
    Membros da família, amigos e agregados também anotavam suas rotinas, e Bassínski se enreda nesse cipoal de telegramas, cartas e recordações para tentar entender a crise que levou o escritor a fugir.
    São abordados com especial detalhamento os sete testamentos de Tolstói, bem como o embate por sua "herança espiritual" entre Andrêievna, e Vladímir Tchertkov, amigo e seguidor que se dedicou a copiar, preservar e divulgar seu legado (sua edição das obras completas do autor continua a ser a principal referência na área).
    Embora se baseie exclusivamente em evidências documentais, o autor está longe de ser um narrador distanciado. Assim, ao descrever Tchertkov, afirma: "Não respeitá-lo é impossível. Mas simpatizar com ele é difícil". As chantagens e ameaças de suicídio de Sófia Andrêievna e a deterioração de sua saúde mental também merecem narrativa minuciosa, porém com um toque de simpatia pela mulher "que conviveu quase 50 anos com o homem mais complicado do século 19 e dele teve 13 filhos".
    Best-seller na Rússia, onde foi laureada com o prêmio Grande Livro, a obra deixa-se ler como literatura --mas não chega a se aprofundar em questões literárias.
    Somadas, as biografias de Bartlett e Bassínski passam de mil páginas "" o tamanho de um romance de Tolstói. Porém quem quiser entender "Anna Kariênina" ou "Guerra e Paz" vai ter que procurar informações em outro lugar.

    Um evento de vanguarda - Aracy Amaral

    folha de são paulo
    Em fins de 1972 já se podia perceber que muitos artistas plásticos faziam experimentações com novos meios: audiovisuais, super-8, 16 mm e som, e não apenas trabalhos conceituais ou com pintura, desenho, gravura, performance.
    Considerei que seria uma boa ideia reunir esses artistas num evento para que pudessem apresentar seus trabalhos. Comecei relacionando aqueles que já conhecia em São Paulo e, por correspondência com Hélio Oiticica (que estava em Nova York) e Antonio Dias (em Milão), procurei saber quais outros criadores estavam trabalhando nessas especulações.
    Assim surgiram, além deles, artistas como Raymundo Colares, então em Trento, Iole de Freitas, Anna Maria Maiolino e Cildo Meireles.
    Em São Paulo, Marcello Nitsche já manejava o super-8, além de Gabriel Borba Filho, Donato Ferrari, Fridman. Mario Cravo Neto, na Bahia, também participaria.
    Devi muito a Marcio Sampaio, crítico de Belo Horizonte, para trazer ao evento alguns mineiros. Mauricio Andrés nos brindou com o sensual "Lama". Já o goiano Paulo Fogaça nos surpreendeu com o "Bicho Morto".
    Era tempo de regime militar, e eram perceptíveis as alusões políticas disfarçadas alegoricamente: no corpo, na poesia, as improvisações criadas por cada um tinham um sabor que hoje, por certo, chamarão a atenção das novas gerações.
    Consegui então o patrocínio do Banco Novo Mundo e a participação da Fotóptica, para a parte de equipamentos. E onde realizar o evento? Desejava um espaço neutro, nem museu nem galeria.
    Procurei Abrão Berman, que tinha, na rua Estados Unidos, quase esquina da Melo Alves, um centro de formação para os que se iniciavam com o super-8, o Grife (Grupo de Realizadores Independentes de Filmes Experimentais). Ele acolheu de imediato a ideia, que se realizou em junho de 1973.
    Acervo Pessoal
    Capa do catálogo da ExpoProjeção 73
    Capa do catálogo da ExpoProjeção 73
    ExpoProjeção73 foi um nome híbrido, proposital, para o evento. Posso dizer que foi um sucesso. Pude realizar, graças ao patrocínio, um catálogo bilíngue que teve o logotipo e o desenho gráfico de Claudio Tozzi e Julio Abe Wakahara, com impressão gráfica a cargo do editor Massao Ohno.
    Resultou em programação diária de sete dias. Havia fila para entrar na Grife, tal a afluência ao evento.
    O crítico Romero Brest, da Argentina, escreveu sobre a exposição na revista "Vision" e chamou a atenção de Jorge Glusberg, diretor do Centro de Arte y Comunicación de Buenos Aires, que apresentou uma síntese do evento em dezembro de 73.
    Em época sem internet e sem assistentes, o trabalho de contatar artistas, datilografar cartas, preparar conteúdo do catálogo e solicitar patrocínio foi feito na garra. As cartas levavam cerca de uma semana para os Estados Unidos e de oito a dez dias para a Europa.
    Às vezes havia um contratempo. Uma carta para Oiticica seguiu para Milão, e a destinada a Dias, para Nova York. Mas eles trocaram a correspondência e nada de grave ocorreu! E assim seguiu célere o preparo da exposição.
    Hoje, para celebrarmos os 40 anos do evento no Sesc Pinheiros, os audiovisuais foram remasterizados.
    O esforço agora foi tentar localizar os trabalhos, muitos extraviados, e os autores, um a um, em trabalho paciente. A ideia de comemorar os 40 anos do evento foi do produtor de vídeo Roberto Moreira S. Cruz, que apresentará uma síntese de vídeos no Brasil, de 1974 até hoje. E a Cinemateca participou na recuperação e/ou limpeza dos super-8.
    E que tal expor arquivos do evento de 1973, registro de como se organizou há 40 anos um evento de vanguarda?
    Nota: A ExpoProjeção 1973/2013 será realizada no Sesc Pinheiros entre quarta (23/10) e 12/1. A entrada é franca.
    ARACY AMARAL, 83, é curadora e crítica.

    Memórias do subsolo inglês - Bernardo Mello Franco

    folha de são paulo
    DIÁRIO DE LONDRES
    o mapa da cultura
    Metrô fantasma em alta e recado do além de Diana
    BERNARDO MELLO FRANCOOs subterrâneos de Londres escondem mais do que terra, tubos, fios e vestígios da ocupação romana no século 1º d.C. A cidade também caminha sobre uma rede fantasma de metrô, com quase quatro dezenas de estações abandonadas ao longo do tempo. Algumas delas ainda preservam o prédio original no nível da rua, com a típica fachada de cerâmica vermelha do período eduardiano.
    Uma das mais intactas é a de Aldwych, no centro. Foi inaugurada em 1907, quando os passageiros circulavam de cartola e pincenê. Pertenceu a um rabicho desativado da linha Piccadilly e serviu de esconderijo para obras de arte durante os bombardeios alemães da Segunda Guerra. Meio século depois, em 1994, foi aposentada devido à baixa demanda de tráfego.
    Desde que fechou as portas, a estação virou cenário para filmes como "V de Vingança" (2005) e "Desejo e Reparação" (2007). A partir do próximo dia 7, vai virar atração turística: seus túneis poderão ser percorridos em visitas organizadas pelo Museu do Transporte de Londres.
    Os passeios fazem parte da comemoração dos 150 anos do metrô londrino, o mais antigo do mundo. Quem não estiver na capital britânica, mas quiser conhecer seu submundo pode assistir ao documentário "The Secret Station" (www.youtube.com/watch?v=6xSzU0oM4mM).
    LIQUIDAÇÃO
    As estações abandonadas do "tube" também entraram na mira da especulação imobiliária, um assunto tão frequente em Londres como o preço dos aluguéis no Rio de Janeiro. A bola da vez é Brompton Road, riscada do mapa da linha Piccadilly em 1934.
    A velha estação fica numa das áreas mais valorizadas da capital britânica, entre South Kensington e Knightsbridge. Também preserva a fachada original e, do lado de dentro, os azulejos coloridos do arquiteto Leslie Green.
    O imóvel pertence ao Ministério da Defesa e foi um dos bunkers do sistema de artilharia antiaérea durante a "blitzkrieg". O leilão terá lance mínimo de £ 20 milhões, cerca de R$ 70 milhões.
    Ali perto, em Mayfair, a antiga parada Down Street ainda não desperta o mesmo interesse. Usada como bunker por Winston Churchill, hoje dá lugar a um mercadinho simples, que vende sorvetes e enlatados.
    FIASCO REAL
    Fazia tempo que um filme não era tão malhado nessas ilhas. Lançado com uma ampla campanha de propaganda, "Diana" despencou nas bilheterias e virou o fiasco do ano no Reino Unido. Em um mês, conseguiu se tornar mais impopular que a rival da princesa na vida real, Camilla Parker-Bowles.
    Não é que a cinebiografia tome as dores do palácio e transforme a Lady Di (1961-97) em vilã. O que afugentou o público foi retratá-la como uma solteirona banal em seus dois últimos anos --uma espécie de Bridget Jones com título da realeza, na definição do "Daily Telegraph".
    O constrangimento começou antes da estreia, quando a atriz Naomi Watts sugeriu ter recebido o aval da princesa, diretamente do além, para interpretá-la. O diálogo sobrenatural caberia no tosco roteiro do filme, em que Di vive um romance de folhetim com um médico paquistanês.
    "A triste verdade é que, 16 anos depois, Diana sofreu mais uma morte terrível", fuzilou Peter Bradshaw, do "Guardian". Recentemente, o diretor do filme, Oliver Hirschbiegel, se disse arrasado com as críticas negativas. Nas ruas de Londres, Watts continua a sorrir vestida de Diana em anúncios nos ônibus de dois andares.
    LICENÇA PARA MATAR
    "Não é só sexo casual. Parece, na minha opinião, que ele deseja um relacionamento de verdade." O autor da frase é William Boyd, o novo escritor da série 007. "Ele" é James Bond, o agente secreto a serviço de Sua Majestade.
    A revelação assustou aspirantes a bondgirl no lançamento do romance "Solo". Para tranquilizar as leitoras, Boyd deixou claro que o espião conserva outros "maus hábitos", como a bebida e o cigarro.
    O livro começa com um café da manhã solitário no hotel Dorchester, com vista para o Hyde Park. Para imitar o ex-mulherengo, é preciso encarar quatro ovos mexidos e apimentados, meia dúzia de fatias de bacon tostado e um café forte.

      EUA e Brasil na ciberguerra global - RICHARD D. MAHONEY

      folha de são paulo
      Meu melhor inimigo
      EUA e Brasil na ciberguerra global
      RICHARD D. MAHONEYTRADUÇÃO CLARA ALLAIN
      RESUMO A descoberta de que a presidente Dilma Rousseff e a Petrobras foram alvos de espionagem de agência americana azedou a relação entre o Brasil e os EUA: apesar do duro protesto brasileiro feito na ONU, Barack Obama não se desculpou em público e provavelmente não o fará. O texto abaixo cita quatro sinais de uma emergente guerra cibernética.
      Durante a visita oficial que fez a Washington em abril de 1962, o presidente brasileiro João Goulart perguntou ao americano John F. Kennedy o que a Agência Central de Inteligência (CIA) estava fazendo no Brasil. Ele recebeu de Kennedy o tipo de resposta que o presidente Barack Obama deve ter dado à presidente brasileira atual, Dilma Rousseff, na conversa de 20 minutos que tiveram no último 16 de setembro: "Você vai ter que confiar em mim".
      Um ano depois da visita de Jango, que incluiu um desfile triunfal em Nova York, a Casa Branca de Kennedy estava conspirando para afastá-lo do poder.
      Quando as evidências das simpatias comunistas de Goulart se mostraram um tanto quanto fracas --o endinheirado latifundiário gaúcho usava uma medalha de Nossa Senhora no pescoço--, o fato de ele ter desprezado dois militares brasileiros seniores apoiados pelos EUA para promover no lugar deles dois oficiais "ultranacionalistas" foi visto como suficientemente grave para levar o sucessor de Kennedy, Lyndon B. Johnson, a dar o sinal verde.
      Mas, em março de 1964, a aprovação do presidente dos EUA ao golpe não passava de formalidade, porque --então como agora-- o dinamismo de agir, de operacionalizar, está embutido na atividade americana de inteligência.
      "Com os relacionamentos profundos que tínhamos na comunidade militar e na de inteligência do Brasil, não precisávamos realmente fazer muita coisa", relataria mais tarde a este autor o embaixador americano no Brasil naqueles anos, Lincoln Gordon. Os planos secretos de Washington de desembarcar "marines" em São Paulo e lançar ataques aéreos a partir da Argentina em apoio aos golpistas acabaram sendo desnecessários.
      Nos anos seguintes, a colaboração entre Brasil e Estados Unidos, que cresceu a partir do golpe, seria frutífera para ajudar a CIA a derrubar um governo atrás de outro no Cone Sul.
      Quando os militares chilenos tomaram o poder em seu país, em setembro de 1973, oficiais de inteligência americanos fizeram uma ponte aérea para levar interrogadores brasileiros treinados nos EUA para o estádio nacional de Santiago, convertido em imenso centro de detenção.
      Com esses interrogadores chegou um instrumento especial de tortura conhecido por lá como "parrilla", um catre metálico ligado a um aparelho elétrico. Os interrogados eram eletrocutados com a "picana eléctrica" e queimados nas "parrillas".
      Agentes de segurança nacional dos Estados Unidos, presentes em abundância no Brasil hoje em dia, lhe dirão que os maus velhos tempos ficaram no passado.
      Eles provavelmente têm razão. As democracias latino-americanas, antes cambaleantes, hoje são muito mais fortes e mais profundamente enraizadas do que eram nos anos 1960 e 1970, em grande medida porque muitos dos líderes latino-americanos são como Dilma, que aprendeu da maneira mais difícil a ser resistente e vigilante durante a ditadura militar.
      Mesmo assim, é preciso indagar por que, após 20 anos de relações crescentemente amistosas entre os Estados Unidos e o Brasil, anos nos quais se viu uma explosão do comércio, de investimentos e formação de "joint ventures" no setor energético, sendo o Brasil hoje um ator internacional de grande importância, o presidente americano não pediu desculpas públicas ao país e à presidente, simplesmente, renovando o convite a Dilma para a visita de Estado que seria a única recebida por Obama no ano.
      Mas o fato é que ele não o fez e provavelmente não o fará, e vale a pena tentar entender a razão disso. A presidente Dilma, e nós outros que nos preocupamos com o Brasil e os Estados Unidos, poderíamos tomar nota de alguns sinais emergentes neste caminho sombrio.
      1. "Plus ça change..."
      Supostamente o homem mais poderoso do mundo, o presidente dos EUA é, na realidade, um dos líderes mais confinados, expostos e frustrados do mundo.
      Ele é criticado e obstruído em todas as áreas, a exceção de uma: no imenso e impenetrável labirinto da segurança nacional americana, ele preside sobre uma panóplia de artes das trevas --espionagem, guerra e execuções extrajudiciais.
      Como Kennedy e até seu fartamente criticado predecessor, George W. Bush, Obama dispõe de meios para salvar vidas ou causar mortes, para mudar regimes e para gerir orçamentos de segurança nacional que, juntos, ultrapassam de longe todos os gastos empenhados por Brasília em um ano inteiro.
      Dilma, que afirma querer saber "tudo" sobre a espionagem praticada pelos EUA no Brasil, terá que somar-se ao Congresso americano, à imprensa e ao povo americanos, que também gostariam de saber o que está acontecendo. Ninguém ficará sabendo no futuro próximo.
      2. Nova soberana
      O lugar, que um dia coube à CIA, de rainha das agências de inteligência de Washington --entre as quais há uma disputa perpétua--, foi tomado pela Agência Nacional de Segurança (NSA), convertida em colosso global graças à sua missão de garimpagem e interceptação eletrônica de dados.
      Antes dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2011, a NSA fornecia cerca de 60% do conteúdo do supersecreto "Briefing Diário do Presidente", que Obama e os principais funcionários da administração leem todas as manhãs para se pautarem ao longo do dia.
      Hoje, a porcentagem provida pela NSA é muito mais alta. A agência também é uma colaboradora crucial na determinação dos alvos dos ataques de drones contra terroristas --algo que, não obstante duas catástrofes militares no Iraque e Afeganistão, é motivo de orgulho técnico para a administração Obama. Conclusão: para Obama, a NSA é o que a CIA era para Kennedy: sua rainha secreta.
      3. Regras de Washington
      Obama deve ter ficado surpreso ao ver que seu telefonema a Dilma não surtiu o efeito desejado.
      Normalmente os amigos e aliados de Washington aceitam a equação de dois pesos, duas medidas praticada por Washington no que tange os erros de comportamento internacionais: nós podemos cometê-los, vocês não podem.
      Isso é o que se conhece como a excepcionalidade americana, uma combinação de letalidade ilimitada e ilimitado complexo de vítima, e a síndrome que ele provoca é algo de que os EUA não precisam e que não beneficia o mundo.
      Em favor de Obama, há que recordar que o presidente questionou o estado permanente de guerra: "Precisamos definir a natureza e o escopo desta luta [a guerra ao terror], caso contrário ela nos definirá", ele disse no último 23 de maio, na Universidade Nacional de Defesa. Ela nos está definindo, senhor presidente.
      4. O verdadeiro inimigo
      Assim como os brasileiros, os americanos talvez se perguntem por que razão, com a Guerra Fria ganha e a guerra ao terror contida, ainda é necessário invadir todos os espaços conhecidos de comunicação, sejam eles de indivíduos ou de nações, a fim de capturar informações.
      Interceptar comunicações entre Dilma e o presidente do México pode parecer algo amalucado, mas, segundo Richard A. Clarke, uma das autoridades em segurança nacional mais respeitadas dos Estados Unidos, representa apenas um pequeno vislumbre do que é a ciberguerra global.
      Embora esteja muito atrás da China e Rússia quanto às possibilidades de defesa da pátria contra um ataque coordenado, Washington está muito à frente desses países no que diz respeito a suas capacidades de ataque.
      Uma dessas capacidades é a "botnet" --uma rede, cujo posicionamento é secreto, de computadores invadidos, que por sua vez atacam outros sistemas, apagando ou reescrevendo seus softwares. Uma vez em operação, uma "botnet" pode derrubar ou levar ao colapso equipamentos de infraestrutura civil como hospitais, barragens ou redes de transportes aéreos, além de serviços de comunicação e aparato militar.
      Ninguém sabe se a NSA plantou "botnets" no Brasil, mas, em seu discurso recente na Assembleia Geral da ONU, Dilma conseguiu chamar a atenção do mundo para uma prática perigosa --o hacking de Estado contra Estado.
      O Brasil, porém, se mostraria realmente inovador se seu governo conclamasse à criação de um Tratado de Limitação de Ciberguerra (Cyber War Limitation Treaty, ou CWLT), algo defendido por especialistas como Clarke.
      Um tratado desse tipo estabelece a proibição de todas as formas de hacking de um Estado contra outro, delimita padrões internacionais de responsabilidade nacional e protocolos de inspeção, e, com o tempo, pode fazer o que fez o Tratado de Não Proliferação Nuclear: isolar os Estados irresponsáveis. Claro que isso não deixaria de fora o maior deles.

      Gravidade, o filme - Marcelo Gleiser

      folha de são paulo
      Nesta semana assisti ao filme "Gravidade", com George Clooney e Sandra Bullock como astronautas em uma missão na órbita da Terra. A direção, magistral diga-se de passagem, é do mexicano Alfonso Cuarón, que dirigiu filmes de "Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban" a "E Sua Mãe Também".
      Dos muitos ângulos em que o filme pode ser analisado, o que escolho hoje é o da sobrevivência da vida no Universo. Fala-se muito, especialmente alguns cientistas, que o Universo é propício à vida, que talvez até o sentido de sua existência é nos ter criado. Claro, este tipo de raciocínio é cripto-religioso, no sentido que dá ao Universo a intenção de criar algo, no caso, a gente.
      Este tipo de posição é extremamente problemático. Como determinar tal coisa, ou seja, como provar que o Universo tem como propósito criar a vida? Me parece impossível. Fora isso, como vemos no filme, saindo da atmosfera a situação fica muito difícil; a sobrevivência no espaço é impossível, conforme afirma o texto de abertura.
      Se a Terra fosse uma maçã, a atmosfera teria a espessura de sua casca, menor ainda. Esta fina camada, com menos de 50 quilômetros de espessura, é que garante nossa sobrevivência aqui. Se o filme tem uma mensagem direta e clara, é que o Universo é extremamente hostil à vida.
      Sem estragar para quem ainda não viu, sobreviver no espaço pode parecer fácil quando tudo dá certo e os sistemas de transporte e de pressurização e oxigenação funcionam. Mas quando algo dá errado, a experiência, que é de profunda beleza e plena de significado espiritual, rapidamente torna-se num pesadelo aterrorizante.
      O espaço não é nosso amigo. Se conseguimos sobreviver fora da Terra é graças à nossa inventividade e determinação.
      O filme mostra isso de forma clara, respeitando exemplarmente as leis da física. (Aliás, a lei da conservação do momento linear tem um papel essencial no enredo.) Mostra, também, a enormidade do espaço, o terror de nos perdermos em seus confins, caso nossos "cordões umbilicais" sejam cortados.
      Existe uma ligação óbvia entre nós e a Terra, que é uma afirmação da nossa dependência do nosso planeta-casa. Fica claro que, para sobreviver, precisamos da Terra; mas que a Terra está muito bem sem a gente. É bom lembrar disso, que estamos aqui há pouco mais de 200 mil anos, enquanto que a Terra já existe há 4,6 bilhões de anos e a vida aqui há uns 3,5 bilhões, pelo menos.
      Apesar da ansiedade da narrativa, vejo "Gravidade" como uma celebração da vida, da sua fragilidade, da importância de termos todo o cuidado para não destruí-la. É característica essencial da nossa espécie o desejo de explorar, de ir além do conhecido. O espaço e as profundezas dos oceanos e da Terra são nossas fronteiras atuais.
      No filme, a missão dos astronautas era consertar o telescópio espacial Hubble, para ampliar sua visão. Esta é uma metáfora perfeita da condição humana, pois sempre queremos ver além daquilo que enxergamos, sempre queremos estender nossa visão da realidade.
      Pôr um telescópio no espaço e ir até ele para consertá-lo --o que foi feito de verdade, sem que a missão tenha falhado-- é algo que devemos comemorar como um dos grandes feitos da nossa história coletiva. Apesar da nossa fragilidade como espécie, nossa fragilidade nos permite estender nossa presença e nossa visão aos confins do cosmo.
      Marcelo Gleiser
      Marcelo Gleiser é professor de física e astronomia do Dartmouth College, em Hanover (EUA). É vencedor de dois prêmios Jabuti e autor, mais recentemente, de "Criação Imperfeita". Escreve aos domingos na versão impressa de "Ciência".