folha de são paulo
Nesta semana assisti ao filme "Gravidade", com George Clooney e Sandra Bullock como astronautas em uma missão na órbita da Terra. A direção, magistral diga-se de passagem, é do mexicano Alfonso Cuarón, que dirigiu filmes de "Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban" a "E Sua Mãe Também".
Dos muitos ângulos em que o filme pode ser analisado, o que escolho hoje é o da sobrevivência da vida no Universo. Fala-se muito, especialmente alguns cientistas, que o Universo é propício à vida, que talvez até o sentido de sua existência é nos ter criado. Claro, este tipo de raciocínio é cripto-religioso, no sentido que dá ao Universo a intenção de criar algo, no caso, a gente.
Este tipo de posição é extremamente problemático. Como determinar tal coisa, ou seja, como provar que o Universo tem como propósito criar a vida? Me parece impossível. Fora isso, como vemos no filme, saindo da atmosfera a situação fica muito difícil; a sobrevivência no espaço é impossível, conforme afirma o texto de abertura.
Se a Terra fosse uma maçã, a atmosfera teria a espessura de sua casca, menor ainda. Esta fina camada, com menos de 50 quilômetros de espessura, é que garante nossa sobrevivência aqui. Se o filme tem uma mensagem direta e clara, é que o Universo é extremamente hostil à vida.
Sem estragar para quem ainda não viu, sobreviver no espaço pode parecer fácil quando tudo dá certo e os sistemas de transporte e de pressurização e oxigenação funcionam. Mas quando algo dá errado, a experiência, que é de profunda beleza e plena de significado espiritual, rapidamente torna-se num pesadelo aterrorizante.
O espaço não é nosso amigo. Se conseguimos sobreviver fora da Terra é graças à nossa inventividade e determinação.
O filme mostra isso de forma clara, respeitando exemplarmente as leis da física. (Aliás, a lei da conservação do momento linear tem um papel essencial no enredo.) Mostra, também, a enormidade do espaço, o terror de nos perdermos em seus confins, caso nossos "cordões umbilicais" sejam cortados.
Existe uma ligação óbvia entre nós e a Terra, que é uma afirmação da nossa dependência do nosso planeta-casa. Fica claro que, para sobreviver, precisamos da Terra; mas que a Terra está muito bem sem a gente. É bom lembrar disso, que estamos aqui há pouco mais de 200 mil anos, enquanto que a Terra já existe há 4,6 bilhões de anos e a vida aqui há uns 3,5 bilhões, pelo menos.
Apesar da ansiedade da narrativa, vejo "Gravidade" como uma celebração da vida, da sua fragilidade, da importância de termos todo o cuidado para não destruí-la. É característica essencial da nossa espécie o desejo de explorar, de ir além do conhecido. O espaço e as profundezas dos oceanos e da Terra são nossas fronteiras atuais.
No filme, a missão dos astronautas era consertar o telescópio espacial Hubble, para ampliar sua visão. Esta é uma metáfora perfeita da condição humana, pois sempre queremos ver além daquilo que enxergamos, sempre queremos estender nossa visão da realidade.
Pôr um telescópio no espaço e ir até ele para consertá-lo --o que foi feito de verdade, sem que a missão tenha falhado-- é algo que devemos comemorar como um dos grandes feitos da nossa história coletiva. Apesar da nossa fragilidade como espécie, nossa fragilidade nos permite estender nossa presença e nossa visão aos confins do cosmo.
Marcelo Gleiser é professor de física e astronomia do Dartmouth College, em Hanover (EUA). É vencedor de dois prêmios Jabuti e autor, mais recentemente, de "Criação Imperfeita". Escreve aos domingos na versão impressa de "Ciência".
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