domingo, 27 de outubro de 2013

Antonio Prata

folha de são paulo
Alçapão
'Quem não reagiu, tá vivo.' Tchibum! 'Não vejo nenhum problema em nos aliarmos ao Maluf.' Tchibum!
Era um programa da RAI, tipo "Ídolos", mas, em vez das críticas dos jurados, o cantor desafinado recebia o alçapão: ou melhor, era recebido por ele; o chão se abria no meio do palco, e o infeliz desabava, com seus mórbidos bemóis e insustentáveis sustenidos, numa piscina cheia d'água.
Ao presenciar a cena, como sói acontecer diante das grandes ideias, torci o nariz. Achei tosco, violento, típico produto daquele canal italiano, que, por algum mistério da física, ficou congelado em 1981. O público, contudo, delirava sempre que um povero Pavarotti ia parar na piscininha. Chegavam a torcer, os tatatataranetos do Coliseu, para que os cantores fossem péssimos, só para vê-los tomar o literalíssimo banho de água fria.
Se, de início, não gostei da brincadeira, aos poucos fui mudando de ideia. É que o cérebro humano tem lá em seus cabos e roldanas um intrincado sistema de compensações, dedicado a erguer todo tipo de estranheza dos calabouços da bizarrice para o chão firme da normalidade, garantindo nossa permanência nessa morna redoma de tranquilidade. Lembrei de outros programas --de artes, de culinária, de esporte-- em que aprendizes esforçados veem suas performances e seus sonhos esculhambados por cruéis "especialistas". Saem chorando, tremendo, sangrando a alma diante de milhões de olhos sádicos. Comparado àqueles perversos empalamentos verbais, o alçapão foi me parecendo cada vez mais inocente, mais puro, benéfico até --o choque térmico ajudando a apagar a chama da humilhação, a refrescar o ardor da derrota.
Ok, as benesses para a vítima talvez sejam discutíveis, mas as vantagens para o público, não. A meritocracia transmitida ao vivo e a cores, a agressividade explodindo numa gargalhada --rápida e eficiente como uma guilhotina. Depois de uns 20 minutos diante da TV, comecei a pensar se não seria possível transformar o choque térmico num choque de democracia: por que não fazer do alçapão um instrumento republicano, assim como a urna eletrônica e a declaração on-line do IR?
Imaginem que delícia assistir aos debates entre candidatos sabendo que cada um deles jaz um metro acima de uma piscina? Por telefone, o público iria eliminando os fanfarrões, um a um. "Quem não reagiu, tá vivo." Tchibum! "Não vejo nenhum problema em nos aliar-mos ao Maluf." Tchibum! "O que a candidata acha sobre o aborto?" Tchibum! Ao final do debate, nem precisaríamos de eleição: aquele que permanecesse seco estaria eleito.
Deveríamos instalar alçapões não só nos programas de TV, mas nas calçadas, nas praças e estradas do Brasil. Jogou papel no chão? Alçapão. Dirigiu pelo acostamento? Alçapão. Entrou lá no começo da fila só porque encontrou um figura com quem estudou na terceira série? Espero que você saiba nadar, aldrabão.
Sei que criar um subsolo em todo o território nacional sairia um pouco caro, mas isso não é um problema, e sim uma solução: a construção de alçapões movimentaria a economia, tiraria o país da estagnação e colocaria nosso B maiúsculo à frente dos BRIC. Vamos para as ruas, meu povo, reacender a chama de junho e lutar por essa melhoria no país. Você acha que alçapões não são um motivo digno para atrapalhar o trânsito? Beleza, tá no seu direito --mas sugiro que, a partir de hoje, passe a sair por aí com uma toalhinha a tiracolo.

    Tea Party culpa moderados do partido por fiasco

    folha de são paulo
    Paralisação dos EUA pode prejudicar republicanos
    Acusado por impasse, partido corre risco de perder vantagem na Câmara
    Liderança democrata no voto popular, porém, pode não resultar na retomada da maioria, afirmam especialistas
    PATRÍCIA CAMPOS MELLODE SÃO PAULO
    O Partido Republicano saiu chamuscado da paralisação do governo dos EUA, o que aumenta a possibilidade de os democratas, partido do presidente Barack Obama, retomarem o controle da Câmara nas eleições legislativas do ano que vem.
    Hoje, o Senado dos EUA é controlado pelos democratas, e a Câmara, pelos republicanos. A Câmara, com sua estridente minoria do Tea Party, tem frustrado boa parte das iniciativas legislativas do governo Obama.
    Os radicais do Tea Party foram os principais defensores da intransigência que levou à paralisação de 16 dias do governo americano e consequente prejuízo de US$ 24 bilhões, segundo estimativa da agência Standard & Poor's.
    Eles ameaçaram conduzir o país para o calote caso democratas não aceitassem reverter vários pontos da lei de reforma da saúde, a chamada "Obamacare". A extorsão não funcionou, e os republicanos foram pressionados a recalcular a rota de forma humilhante.
    Pesquisa "USA Today"/Princeton Survey Research mostra que 29% dos eleitores acham que os republicanos são culpados pela paralisação do governo, 12% culpam os democratas e 54% responsabilizam os dois partidos.
    Segundo pesquisa "Washington Post"/ABC também desta semana, 53% dos eleitores culpam os republicanos pela paralisação do governo, e apenas 29% responsabilizam o presidente Obama.
    Para analistas, essa reprovação dos eleitores ao comportamento do Partido Republicano aumenta as possibilidades de os democratas retomarem o controle da Câmara, algo impensável até pouco tempo atrás.
    Segundo pesquisa da CNN nesta semana, 50% dos eleitores registrados para votar dizem que pretendem votar em um candidato democrata na eleição legislativa do ano que vem, diante de 42% em um republicano (4% não vão votar, 2% não têm candidato, 2% outras respostas).
    A margem de vantagem, de oito pontos percentuais, é igual à margem de voto popular necessária para os democratas retomarem o controle da Câmara --estimada em de seis a oito pontos.
    BATALHA ÁRDUA
    Alguns analistas, no entanto, acham que essa vantagem no voto popular não é uma boa maneira de prever o resultado das eleições, disputadas distrito a distrito.
    E se trata de uma batalha árdua. "Apesar de a situação ter melhorado, ainda será difícil os democratas retomarem a maioria na Câmara: em geral, o partido que está na Presidência tem desempenho pior na eleição legislativa", disse à Folha Kyle Kondik, editor do Sabato's Crystal Ball, centro de análises políticas da Universidade da Virgínia.
    Segundo Kondik, seria "inédito na história" um partido que está na Casa Branca tirar da oposição 17 vagas na Câmara, número que daria a maioria aos democratas.
    Muitos acreditam que o "efeito paralisação" não vai durar até a eleição do ano que vem. "Houve consequências negativas para os republicanos, mas não está claro quanto vai durar essa virada na opinião pública", disse à Folha John Sides, professor de ciência política na Universidade George Washington.
    Para grande parte dos analistas, tudo depende da capacidade dos republicanos de repetir as trapalhadas dos últimos meses.
    O líder da minoria no Senado, o republicano Mitch McConnell, afirmou que seu partido não deixará o governo chegar de novo a uma paralisação na próxima negociação do Orçamento e da elevação do teto da dívida, que vai ocorrer em alguns meses.
    Mas o senador Ted Cruz, um dos líderes do Tea Party, não parece contrito. "Vou continuar fazendo de tudo para impedir esse trem desgovernado que é a lei de saúde de Obama", disse.
    Tea Party culpa moderados do partido por fiasco
    JOANA CUNHADE NOVA YORKO balanço da última disputa política foi negativo para a reputação do Tea Party mesmo entre os republicanos.
    Pesquisa do Pew Research Center mostra que, entre os eleitores do partido de inclinação moderada e liberal, a parcela dos que guardam uma impressão favorável sobre o grupo caiu de 46% em junho para 27% em outubro.
    "Outros impasses já aconteceram, mas havia 17 anos não se chegava à paralisação de fato. Essa foi a diferença. E não foi só uma discussão sobre dívida e Orçamento: entraram questões ideológicas e políticas, misturaram o programa de saúde", afirma Juliana Horowitz, que participou da pesquisa do Pew.
    No público geral, 49% têm agora opinião desfavorável do Tea Party --há três anos, pouco após ele emergir como movimento de protesto ultraconservador contra as políticas de Barack Obama, essa parcela não passava de 25%.
    A base conservadora, porém, ainda espera reação de suas lideranças e não acredita que elas serão punidas nas urnas no ano que vem.
    "Estamos otimistas. Vamos continuar combatendo o Obamacare. Só precisamos pressionar mais do que fizemos neste ano", diz Deedee Vaughters, ativista do Tea Party na Carolina do Sul.
    Analistas acreditam que, apesar da imagem maculada, membros do Tea Party como Ted Cruz contabilizaram algum ganho --o senador, um dos artífices da tentativa de fazer o governo refém por meio da paralisação, aspira à corrida presidencial de 2016.
    "Muita gente não sabia quem ele era, inclusive dentro do Tea Party. Cruz virou o herói do movimento", avalia a pesquisadora do Pew.
    Para Bob Vander Plaats, que chefia o grupo conservador The Family Leader, de Iowa, os culpados pelo "insucesso do Tea Party em atingir o Obamacare não foram conservadores reais como Cruz, e sim os republicanos do establishment', que cederam às demandas de Obama".
    Com o racha no partido, "republicanos progressistas, como Lindsay Graham e Mitch McConnell, serão desafiados pela direita conservadora", diz Michael Kinzie, fundador do grupo de apoio Tea Party 911. "Esses políticos de carreira serão destronados em 2014", afirma.
    O outro lado alimenta a contenda. O deputado republicano Peter King afirmou em entrevistas que é o momento de quebrar a ala mais à direita do partido. King participou dos esforços para que o republicano John Boehner, presidente da Câmara, procurasse saídas para dar fim à paralisação do governo.

      Marcelo Gleiser

      folha de são paulo
      Toda criança nasce cientista
      Para as crianças, a vida é um grande experimento; até entrarem na escola ou serem 'pegas' pelos pais
      Nesta semana, estive em Brasília participando da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia. O tema deste ano, de forma muito propícia, é "Ciência, Saúde e Esportes". Aproveitando que o Brasil será palco dos maiores eventos desportivos do planeta, nada melhor que mostrar as alianças e a interdependência entre os esportes, a saúde e a ciência.
      O centro das atividades é o Pavilhão Central no Parque da Cidade, onde foram montadas várias exibições, algumas bem avançadas, usando tecnologia virtual para integrar o visitante em algum jogo, por exemplo, futebol e vôlei.
      Mas o que me empolgou logo na chegada foi ter visto centenas, talvez milhares de crianças, trazidas por escolas. Me disseram que eram mais de 10 mil por dia e que atividades ligadas ao evento estão ocorrendo em 800 municípios do país.
      As crianças menores, do jardim de infância, iam circulando pelo espaço das exposições, de mãos dadas e olhos arregalados, olhando para tudo, tentando tocar tudo. Algumas jamais esquecerão a visita a um mundo tão diferente da realidade em que vivem, onde a ciência é simplesmente desconhecida.
      Fiquei feliz e triste ao mesmo tempo; feliz de ver que quando o governo monta algo de porte para trazer ciência ao público, o público vem. Triste por entender que esse tipo de evento é raro, e que a maioria das crianças nunca terá oportunidade de visitá-lo.
      O grande físico Isidor Rabi, vencedor do prêmio Nobel, costumava dizer que os cientistas são os Peter Pans da sociedade, aqueles que não querem crescer, que passam a vida perguntando "por quê". Vendo as crianças na exposição, olhando para tudo, tocando tudo, participando das atividades com entusiasmo, fica claro que Rabi tinha razão.
      Qualquer pai e mãe sabem bem que criança é exploradora nata; botando o dedo aqui e ali, comendo terra, pegando formiga, trepando em árvore, subindo e descendo a mesma escada dez vezes até desenvolver uma melhor percepção da gravidade e melhorar sua habilidade motora. Para uma criança, a vida é um grande experimento, uma grande aventura de descoberta.
      Até entrarem na escola ou serem "pegas" pelos pais.
      "Não faz isso! Solta! Olha o degrau! Cuidando com a tomada! Você vai cair daí." Como pai de cinco, sei que sem o nosso cuidado as crianças correm mesmo risco de se machucar. Mas cuidar não é o mesmo que reprimir o espírito único que têm de experimentar o mundo para poder entendê-lo. O mesmo acontece nas escolas, que acabam sendo fábricas de conformismo onde todos devem fazer a mesma coisa, onde a criança mais curiosa é reprimida e, salvo casos raros, calada.
      Temos muito a aprender com as crianças. E, se queremos de fato transformar o Brasil numa potência inovadora, onde tecnologia e patentes não são compradas do exterior mas criadas aqui, temos que dar asas a esse espírito criativo das crianças, que são grandes inventoras e sonhadoras.
      Isso não deve apenas ocorrer nas escolas; a educação começa em casa, com os pais se engajando no processo criativo das crianças. E o melhor de tudo é que ao ensinarmos também aprendemos. E colorimos a vida de novidade e aventura, ficando um pouco mais Peter Pans.

        Paula Cesarino Costa

        folha de são paulo
        Rua da Carioca, 53
        RIO DE JANEIRO - A placa de bronze glorifica o sobrado de uma das mais belas ruas. Ficava no número 53 da rua da Carioca a casa de samba de dona Zica e do marido, Cartola. Inaugurado em 1963, o Zicartola é lendário até hoje, apesar de ter ficado aberto por menos de dois anos.
        De segunda a sexta, amigos começavam a chegar no fim de tarde atrás de feijão, moelas e batidinhas de limão, além de conversa e samba.
        "Nasceu de uma necessidade econômica (arrecadar dinheiro com a comida caseira de Zica), mas se tornou ponto de encontro de artistas e boêmios, que o transformaram em centro cultural em que cantavam e debatiam inquietações políticas e culturais", conta Maurício Barros de Castro no livro "Zicartola", reeditado pela Azougue em homenagem ao cinquentenário da casa.
        Em pouco espaço e por pouco tempo, o Zicartola fez renascer sambistas esquecidos como o próprio Cartola e Ismael Silva e surgir jovens como Paulinho da Viola e Elton Medeiros. Ao mesmo tempo juntou zona sul rica à zona norte maltratada, a cultura popular ao erudito --Villa-Lobos fumou seus charutos ao som de choros. Drummond e Bandeira iam lá.
        Espécie de mestre de cerimônia da casa, o poeta Hermínio Bello de Carvalho define o lugar como "um aglutinador de um movimento estético cultural". Tendo Zé Keti como articulador, passou a atrair a fina flor, como se dizia, de Copacabana.
        Virou moda. Jovens da zona sul se acotovelavam para ver e ouvir grandes nomes da música, muitos marginalizados pelas poderosas gravadoras. O escritor João Antonio atribuiu seu fim à invasão dos "bem comportados, politizantes e sabidos da classe média", que encheram, mudaram ares e "emporcalharam o pedaço".
        Parte do casario da rua da Carioca foi comprado pelo grupo Opportunity. A prefeitura tombou alguns casarões. Os vizinhos reclamam hoje do aumento do preço do aluguel.

          Helio Schwartsman

          folha de são paulo
          Jesus, o homem, o mito
          SÃO PAULO - "Não Houve Jesus, Deus Não Existe". Apesar do título provocador, o livro de Raphael Lataster, recém-lançado em inglês, é só circunstancialmente uma defesa do ateísmo. O objetivo principal da obra é criticar os métodos dos estudiosos do Novo Testamento.
          Lataster sustenta de modo persuasivo que, no melhor cenário, não se pode afirmar nada sobre Jesus, nem o bíblico, que opera milagres, nem o histórico, que teria sido uma espécie de radical judeu da Palestina do século 1º --interpretação para a qual converge a maior parte da academia.
          O problema básico é que a passagem de Jesus pela Terra não é corroborada por nenhuma fonte contemporânea aos fatos. Os Evangelhos são todos obras anônimas, com objetivos apologéticos e o mais antigo deles, o de Marcos, só foi escrito quatro décadas após a suposta crucificação.
          As fontes não cristãs também são todas posteriores --e há boas razões para suspeitar que incluam falsificações. Ademais, autores que teriam tido motivos para citar Jesus, como Filo de Alexandria, não o mencionam.
          Lataster sugere ainda que os escritos paulinos, anteriores aos Evangelhos, não só evitam referências a um Jesus terreno como convivem bem com a ideia de um messias apenas mítico. Para ele, é só porque as Bíblias trazem as epístolas paulinas depois dos Evangelhos que nos acostumamos a lê-las como se fizessem referência a um Jesus de carne e osso.
          Segundo o autor, um mínimo de rigor historiográfico exigiria, se não concluir que nunca houve Jesus, pelo menos deixar de afirmar que sua existência histórica foi confirmada.
          Na segunda parte da obra, Lataster defende que os especialistas adotem um método bayesiano, que leve em conta não só sua interpretação favorita como também hipóteses concorrentes e a possibilidade de todas estarem erradas. A partir daí, estima serem remotas as chances de Zeus, Odin e Shiva não passarem de lenda e só o Deus cristão ter existência real.

            Janio de Freitas

            folha de são paulo
            O que a espionagem comprova
            A OEA desmoraliza quem a integra, excetuados os EUA. É um imperativo moral, para os demais Estados, repudiá-la
            Com a revelação de que o governo dos Estados Unidos espionou as comunicações de 35 líderes mundiais, esvai-se em definitivo a explicação dada por Barack Obama, nas revelações anteriores, de ação necessária à prevenção contra o terrorismo. Trata-se mesmo e só de ato típico dos regimes mais sórdidos e sistemas de governo inescrupulosos, como até agora se disse de barbaridades assim em comparação com os Estados democráticos. Não é esse, porém, o único efeito imediato de mais uma realidade americana revelada por Edward Snowden.
            A lista dos 35 não foi divulgada. Ainda que repita nomes presentes em revelações recentes, como Angela Merkel, François Hollande, o mexicano Peña Nieto e seu antecessor Felipe Calderón, o italiano Enrico Letta e Dilma Rousseff, o acúmulo dá à lista um potencial explosivo. Só as duas mulheres já citadas tiveram altivez e coragem de enfrentar Obama e o seu poder. O provável é que, juntos, os homens citados sintam condições de defender a dignidade dos seus países ao menos nos foros internacionais. Presente já na primeira revelação, François Hollande até conseguiu, agora, dizer que a França levantará na União Europeia o problema da espionagem americana.
            No nosso caso, de brasileiros com Presidência, governo e empresas atingidas por crime internacional de interceptação, o que se tem, quanto a foro apropriado, não é mais do que a exibição de indignidade da OEA, que explora o abusivo nome de Organização dos Estados Americanos. Os EUA são um desses Estados. O Brasil é outro. O México, idem. Sujeitos, como os demais, a regramentos rigorosos de convivência no âmbito das Américas, sob controle e dever de aplicação entregues à OEA. Para quê?
            Se não é, a OEA parece uma organização especializada em fugas. Podem os EUA fazer o que quiserem --invadir, instalar-se ilegalmente em território alheio, organizar a derrubada de governos, praticar ações de sabotagem da CIA a governantes: tudo isso acontece sistematicamente na América Latina-- e a OEA foge ao enfrentamento dessas transgressões a seus princípios como se ela própria fosse peça da máquina transgressora. À qual, na omissão, acaba mesmo por incorporar-se.
            A OEA desmoraliza quem a integra, excetuados os EUA. É um imperativo moral, para os demais Estados, repudiá-la.

              Elio Gaspari

              folha de são paulo
              O mundo encantado da Doutora Dilma
              As fantasias do governo produzem uma euforia que desemboca na síndrome do sítio: estão todos contra nós
              No Brasil encantado em que vive o Planalto, as obras do trem-bala estariam adiantadas e ele rodaria em 2016, para a Olimpíada. Felizmente, continua no papel. Depois do Enem deste fim de semana haveria outro (ou já houvera). Infelizmente, foi só promessa da doutora Dilma e do ministro Fernando Haddad. Seu substituto, o comissário Mercadante disse que prefere gastar construindo creches. Por falar em creche, durante a campanha eleitoral a doutora prometeu mais seis mil (quatro por dia). Em abril ela disse o seguinte: "Queremos mais, muito mais. (...) Vamos chegar a 8.685 creches." A repórter Maria Lima fez a conta e mostrou que seria necessário entregar 31 novas unidades a cada dia até julho do ano que vem (13 por dia até o fim do governo). A doutora zangou-se: "Minha meta é 6.000 creches. Quem foi que aumentou para 8.000?" Ela.
              Sua conta era a seguinte: em abril, havia 612 creches prontas, 2.568 em obras e 2.117 contratadas. Somando, chegava-se a 5.397. Se obras em andamento e contratadas são obras concluídas, 2010 foi um grande ano. Terminaram-se as obras da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, e as águas do rio São Francisco foram transpostas. Promessas.
              Para ficar na conta da meta de campanha, admitindo-se que a doutora já entregou 3.000 creches, até o fim do seu mandato precisa entregar pelo menos oito por dia.
              O mundo encantado do Planalto desencadeia uma compulsão mistificadora. Se o governo terminar só 4.000 creches, atire a primeira pedra quem acha esse programa um fracasso. Será um grande resultado, que partiu de uma promessa exagerada. Trocando o mundo real (a obra entregue) pelo virtual (a promessa, ou o contrato), o comissariado intoxica-se numa euforia que desemboca na irritação. A última bruxaria do encantamento partiu da doutora Magda Chambrard, diretora da Agência Nacional do Petróleo. Ela anunciou que nos próximos 30 anos o campo de Libra renderá R$ 1 trilhão. Em maio passado a mesma doutora disse que "gostaria de ter mais Eikes" no setor petrolífero. Uma semana depois, começou o inferno astral de Eike Batista e de quem acreditou nele.
              O encantamento desenvolve nos governantes uma síndrome de sítio, como se o mundo estivesse contra ele. De onde Maria Lima tirou a referencia às 8.000 creches? De uma fala da doutora.
              AVISO AMIGO
              Há sinais de que será necessária uma chacoalhada de pessoas e políticas na condução da economia.
              Depois da repercussão dos leilões aguados e das dificuldades de Eike Batista, dividem-se os empresários em dois grupos: um torce por um novo quadro, outro quer que fique tudo como está, para continuar tirando fatias do presunto de um governo atrás de credibilidade.
              ALSTOM
              Ou o tucanato paulista tem uma estratégia capaz de causar inveja ao comissariado petista que pretende livrar seus caciques das penitenciárias pelo mensalão, ou está numa tática suicida, jogando o escândalo do propinoduto denunciado pela Siemens para dentro da campanha eleitoral do ano que vem.
              Pelas provas, depoimentos e cifras, esse caso ultrapassa, de longe, o mensalão. Ali não há domínio do fato, o que há são fatos dominantes.
              EM SILÊNCIO
              A Arquidiocese do Rio tirou a sorte grande por trabalhar em silêncio. Há cinco anos ela fez uma faxina nas suas contas, afastou um padre que administrava seus bens e transferiu para uma casa em São José dos Campos o cardeal Eusébio Scheid, substituído por d. Orani Tempesta. Scheid deixou o apartamento de 500 metros quadrados (R$ 2,2 milhões) que fora comprado no Flamengo. O administrador, padre Edvino Steckel, foi acusado de ter gasto R$ 14 milhões em móveis, carros e enfeites. Em 2010 seu substituto foi detido no Galeão quando embarcava para Portugal com 52 mil euros nas roupas e nas malas.
              Agora o papa Francisco detonou publicamente o bispo da Diocese alemã de Limburg, que torrou 31 milhões de euros num palácio episcopal.
              JOHN KENNEDY
              Começa na semana que vem a avalanche dos 50 anos da morte, no dia 22 de novembro, do presidente americano John Kennedy. Juntando mito e mistério, girará em torno de dois grandes temas: foi Lee Oswald, sozinho, quem o matou? E se ele não tivesse ido a Dallas, como ficariam os Estados Unidos?
              O mistério do crime prosseguirá e metade dos americanos continuarão acreditando que houve uma conspiração. Chegará às livrarias a tradução de "11/22/1963", de Stephen King. (Na rede, em inglês, sai por US$ 12,38.) Conta a história de um sujeito que viajava no tempo e foi a Dallas para impedir que Oswald atirasse. Seu melhor momento está na conclusão, escrita com a ajuda de Richard Goodwin, que foi assessor de Kennedy. Ele especula como ficaria o país se a viagem a Dallas tivesse sido cancelada.
              Existem 40 mil livros sobre o presidente. Os melhores estão mais para o estilo Roberto Carlos, e a maioria é ruim. Muito acima da média, está na rede por US$ 15,20 o "Camelot's Court - Inside the Kennedy White House" (A Corte de Camelot - Por dentro da Casa Branca de Kennedy"), de Robert Dallek.
              Dallek, um moderado devoto da tese segundo a qual os tiros vieram de Lee Oswald, acrescenta mais um "se".
              Kennedy teria sobrevivido "se" não estivesse com o colete ortopédico que mantinha-o com o tronco erecto. Por quê? Porque, ao levar o primeiro tiro, que entrou pelas costas e saiu pelo nó da gravata, teria se curvado e o novo tiro não lhe explodiria o crânio.
              UMA AULA DE FHC PARA OS COMISSÁRIOS
              Em agosto de 1995, na mesma arapuca em que caiu a doutora Dilma, o programa "Café com o Presidente", Fernando Henrique Cardoso disse o seguinte:
              "Passados seis meses de governo, eu quero anunciar os primeiros resultados positivos dos esforços que nós estamos realizando para combater uma triste realidade brasileira: a mortalidade infantil. E quero começar falando do município de Jaramataia, que fica lá no interior do Estado de Alagoas. Até o ano passado, 333 crianças, de cada mil que nasciam, morriam antes de completar um ano de idade. De janeiro para cá, este número caiu para 3. Vou repetir, é isso mesmo, caiu para 3 crianças em cada mil."
              Lorota do mundo encantado. Três crianças mortas para mil nascidas vivas, nem na Suíça. Esse era o número de mortes por diarreia em Jaramataia, onde a mortalidade caíra de 333 para 249. Quando a fraude foi revelada, a máquina do encantamento mobilizou-se, e uma médica recebeu um telefonema intimando-a a "não deixar o presidente passar por mentiroso".
              FHC paralisou a máquina, dizendo mais ou menos o seguinte: "O número estava errado? Então estava errado, e nós não temos que responder à crítica".
              No caso da doutora Dilma, o Planalto explicou que entre as 8.685 creches mencionadas por ela havia obras contratadas por Lula. Fica combinado assim.