sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Fiscal confirma esquema de fraude em SP - Mario Cesar Carvalho

folha de são paulo
Servidor preso aceita delação premiada; cada acusado faturava pelo menos R$ 60 mil por semana, diz Ministério Público
Promotoria investiga se "o louco", como era chamado pelos colegas, enviou dinheiro para o exterior ilegalmente
MARIO CESAR CARVALHODE SÃO PAULOO fiscal Luis Alexandre Cardoso de Magalhães, um dos quatro servidores da Prefeitura de São Paulo presos sob acusação de cobrar propina para reduzir o valor do ISS (Imposto sobre Serviços) de imóveis novos, aceitou fazer uma delação premiada --dar detalhes do esquema em troca de redução de pena.
Diante das provas apresentadas pelo promotor Roberto Bodini, o fiscal confirmou o esquema em depoimento. "Ele apresentou detalhes que só alguém que participava do grupo conhecia", disse Bodini.
Entre outros detalhes, Magalhães contou que os quatro recebiam a maior parte da propina em dinheiro vivo.
Além de Bodini, outros dois profissionais da investigação confirmaram à Folha a confissão, embora seu advogado negue.
O grupo oferecia a empresas a possibilidade de reduzir até pela metade o imposto devido se pagassem uma comissão ao grupo.
A prefeitura estima que o esquema causou prejuízo de R$ 500 milhões em impostos que não foram recolhidos.
Segundo Bodini, cada um dos participantes do grupo faturava entre R$ 60 mil e R$ 80 mil por semana há pelo menos quatro anos.
Em levantamento inicial, a corregedoria da prefeitura identificou cerca de 500 imóveis liberados para serem habitados após pagamento de comissão aos quatro fiscais.
Magalhães é o elo mais fraco do grupo preso. Não chegou a ocupar cargos de chefia, ao contrário dos demais.
Dois deles (Eduardo Horle Barcellos e Carlos Augusto di Lallo do Amaral) foram diretores da Secretaria de Finanças da prefeitura.
Ronilson Bezerra Rodrigues, apontado como líder do grupo, foi subsecretário da Receita do município na gestão Kassab (PSD), de 2009 a 2012, na época das fraudes. Recentemente, foi diretor na SPTrans, na gestão petista.
Magalhães era chamado de "o louco" pelos outros três presos pela liberalidade com que tratava de assuntos tabus ao telefone, como a abertura de uma conta no exterior para canalizar recursos ilícitos. Ou por aceitar receber propina no banco, por meio de depósito identificado, de acordo com a investigação.
Foi a partir de um desses telefonemas, interceptados com autorização judicial, que os promotores encontraram indícios de que a conta no exterior foi aberta. Ele conversou sobre a questão com a funcionária de um banco em Miami, nos Estados Unidos.
A delação premiada era considerada tão certa pelo advogado do fiscal, Mário Ricca, que ele e o Ministério Público chegaram a pedir a liberdade de Magalhães usando esse argumento.
O juiz Eduardo Pereira Santos Jr. negou porque a delação não havia sido formalizada. Ainda segundo o juiz, "a soltura poderia implicar em risco à prova".
Magalhães juntou um patrimônio de cerca de R$ 18 milhões, segundo levantamento da prefeitura, que contabilizou somente os imóveis que ele tem em seu nome.
Ele ganhava cerca R$ 14 mil, segundo a Folha apurou.
O fiscal tem duas lotéricas, nos shoppings Morumbi e Paulista, que os promotores consideram peças-chaves para a lavagem de dinheiro.
A suspeita da corregedoria é que as lotéricas legalizavam a propina que ele recebia em espécie. Uma hipótese é que o dinheiro ingressava na lotérica como se fosse aposta. Magalhães tinha ainda cinco flats em Angra dos Reis, quatro em Moema e um apartamento na Vila Nova Conceição.

    OUTRO LADO
    Fiscal não confessou e é inocente, diz defesa
    'Não quer dizer que um veículo que está na nossa garagem é nosso', afirma advogado sobre Porsche apreendido
    DE SÃO PAULOO advogado Mário Ricca, defensor do auditor Luís Alexandre Cardoso de Magalhães, negou ontem a afirmação do Ministério Público de São Paulo de que o cliente teria confessado participação no esquema.
    "Nada foi confirmado ainda", disse ele, após o depoimento de Magalhães na delegacia. Ricca não quis comentar o teor do depoimento.
    "Ele é inocente até que se prove o contrário. Vão ser provados todos os bens [de Magalhães]. Não há provas contra ele", disse.
    O defensor confirmou que a delação premiada foi oferecida ao seu cliente, mas não disse se o benefício foi aceito ou não.
    O advogado negou, ainda, que o Porsche apreendido na casa de Magalhães seja de seu cliente, mas disse que ele usava o veículo.
    "Não quer dizer que um veículo que está na nossa garagem é nosso. Ele [Magalhães] usa o carro às vezes, mas é aquela coisa de amizade", argumentou.
    O advogado ainda afirmou que Magalhães não lhe informou quem seria o dono do veículo apreendido.
    Folha tentou conversar com Márcio Sayeg, advogado do ex-subsecretário da Receita Municipal Ronilson Bezerra Rodrigues, também detido sob suspeita de envolvimento no esquema.
    Ele disse que não poderia falar e pediu para que a reportagem ligasse depois.
    Contatado durante a noite, Sayeg não atendeu ao celular. A Folha não conseguiu localizar os advogados dos outros dois suspeitos detidos, Eduardo Horle Barcellos e Carlos Augusto di Lallo Leite do Amaral.
      Prefeito conversa com Kassab sobre ação
      DE BRASÍLIAO prefeito Fernando Haddad (PT) telefonou para seu antecessor, Gilberto Kassab (PSD), anteontem, no final do dia. Falaram-se por três minutos. Foi uma conversa protocolar, em tom amistoso.
      Kassab não fez nenhuma queixa a Haddad. O prefeito telefonou para dizer que a investigação em curso, sobre cobrança de propinas, tem sido pautada pela impessoalidade.
      A vários interlocutores, entretanto, Kassab tem reclamado a respeito da forma como a operação foi divulgada para a imprensa --como se tudo estivesse na conta da administração anterior.
      O ex-prefeito tem dito que Ronilson Bezerra Rodrigues, um dos principais acusados do esquema atual, foi exonerado no final de 2012 pelo então secretário de Finanças da prefeitura, Mauro Ricardo.
      À época, na transição para a nova administração, o fato foi comunicado à equipe de Haddad, sustenta.
      Rodrigues foi nomeado em fevereiro deste ano, na gestão Haddad, para o cargo de diretor de finanças da SPTrans, empresa que gerencia o transporte municipal.
      A prefeitura alega que a investigação do ano passado era apenas um "expediente" e que, neste ano, Rodrigues não foi demitido após a constatação de seu enriquecimento ilícito para não alertá-lo da suspeita.
      Apesar da insatisfação com a forma de divulgação da operação, o ex-prefeito diz não ver consequências eleitorais para si e para seu partido.
      Seu interesse continua sendo ser candidato a governador de São Paulo --o que elimina a possibilidade de apoio ao PT na disputa pelo Palácio dos Bandeirantes.
      No plano nacional, também não há mudanças. O ruído entre PT e PSD na cidade até agora não atrapalhou o apoio que Kassab pretende dar para o projeto de reeleição de Dilma Rousseff.
      "Não tem como não apoiá-la", diz o ex-prefeito a quando fala sobre alianças em 2014.
        Há mais envolvidos em esquema de fraude, diz Haddad
        DE SÃO PAULO
        O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), disse que há outros envolvidos no esquema de corrupção revelado na quarta-feira na Secretaria de Finanças.
        "Sim, há mais envolvidos. [...] Os servidores presos estão prestando depoimento, a rede pode ter se expandido", disse Haddad.
        Segundo o prefeito, os nomes não podem ser revelados ainda, pois as investigações estão em andamento, mas o esquema de fraude está na mira da Controladoria Geral do Município.
        As empresas envolvidas serão ouvidas para tentar esclarecer em que "circunstâncias acontecia o esquema", diz Haddad. Ele espera a colaboração das construtoras.

        IMPOSTO
        Prefeitura vai informatizar notas fiscais
        Até o final do ano, um sistema que acabará com o manuseio de notas fiscais nos processos de ISS (Imposto Sobre Serviços) será implantado, diz a prefeitura. A tramitação passará a ser 100% eletrônica. Segundo a prefeitura, o sistema foi feito para aprimorar os processos.
        Chefe de arrecadação dizia combater fraudes
        Em palestra na véspera de assumir o cargo, Ronilson Rodrigues afirmou que luta contra sonegação era prioridade
        Patrimônio do auditor inclui apartamento de R$ 1,2 mi em Santos, segundo polícia; defesa diz que ele é inocente
        DE SÃO PAULOO auditor fiscal Ronilson Bezerra Rodrigues, preso sob a suspeita de participar de esquema de desvios na Prefeitura de São Paulo, apresentava-se como defensor do combate às fraudes e à sonegação na administração pública.
        Foi o que fez em palestra no Tribunal de Contas do Município, em maio de 2009, na véspera de assumir a Subsecretaria da Receita na gestão de Gilberto Kassab (PSD).
        Ele elencava os pontos que uma administração séria deveria seguir para garantir uma "melhoria da qualidade de vida da população de São Paulo". Entre eles, listou: "combate à fraude, à sonegação e à inadimplência".
        Rodrigues voltava à gestão paulistana depois de rápida passagem pela Prefeitura de Santo André, no ABC paulista, onde foi secretário-adjunto de Planejamento e Orçamento na administração Aidan Ravin (na época, PTB).
        Após um ano no cargo de subsecretário, em 2010, Rodrigues abriu com a mulher, Cassiana Manhães Alves, a Pedra Branca Assessoria e Consultoria --o endereço era o apartamento do casal na Vila Mariana (zona sul).
        Em 2012, ele deixou a sociedade e a empresa foi transferida para uma sala no largo da Misericórdia, chamada de "o ninho" pelo Ministério Público: era ali, a 350 m da prefeitura, o suposto local de reuniões do grupo.
        Em sua última declaração de bens entregue à prefeitura, em dezembro de 2012, Rodrigues lista apartamentos na Vila Mariana, onde mora, em Juiz de Fora (MG) e no Rio e um prédio na rua Tucuna, em Perdizes (zona oeste).
        E ainda três veículos, avaliados em cerca de R$ 180 mil: um Honda CRV, um Volvo XC60 e uma camionete Hilux.
        Não consta nessa relação um apartamento em Santos, na Ponta da Praia, que, diz a polícia, pertence a ele. Um apartamento no condomínio do edifício, o Afrodite, está avaliado em R$ 1,2 milhão.
        Em 2013, quando se tornou diretor de Finanças da SPTrans (empresa municipal de transporte), já na gestão Fernando Haddad (PT), Rodrigues dizia a colegas que sabia estar sendo investigado por um suposto enriquecimento ilícito.
        Segundo esses colegas, ele dizia que não havia nenhum risco de ser processado porque havia justificativa para sua evolução patrimonial: a mulher, fazendeira, era rica.
        A defesa de Rodrigues diz que ele é inocente.
          BENS DOS SUSPEITOS, SEGUNDO A INVESTIGAÇÃO
          SUSPEITO
          Carlos Augusto Di Lallo Leite do Amaral
          BEM
          Apartamento na rua Martiniano de Carvalho, 836, centro de SP
          VALOR ESTIMADO
          R$ 2 milhões
          SUSPEITO
          Luis Alexandre Cardoso de Magalhães
          BEM
          Apartamento na rua Periquito, 160, Moema, zona sul de São Paulo
          VALOR ESTIMADO
          R$ 1,6 milhão
          SUSPEITO
          Ronilson Bezerra Rodrigues
          BEM
          Apartamento na av. Rei Alberto, 268, Ponta da Praia, em Santos (SP)
          VALOR ESTIMADO
          R$ 1,2 milhão

          Barbara Gancia

          folha de são paulo
          Deixo o jornalismo pela proctologia
          Alguém sabe quando serão abertas as próximas matrículas do Senac para o curso de acupunturista?
          Tenho um cacoete em comum com o tapuia que reclama do Brasil com o distanciamen­to de quem nasceu na longínqua Tuvalu. Você o conhece, não? É aquele camarada que adora come­çar frases com: "Só no Brasil..."
          Pois eu padeço de mal semelhan­te. Falo de jornalistas como se eu fosse, digamos, dentista. Ou bate­rista, eletricista, anestesista, em suma, qualquer outra coisa menos alguém que está empenhada em tentar entender o fenômeno "black blocs".
          Em tentar verificar que pode até haver neonazista infiltrado no gru­po, mas que é piada comparar a re­sistência pacifista de Martin Lu­ther King ao ativismo de Malcolm X para defender a ideia de que a mi­litância domingueira de calçadão do Sou da Paz seja válida, en­quanto a estratégia de quebra-que­bra de símbolos do capitalismo em­preendida pelos jovens desta gera­ção de excluídos da globalização não seja.
          O fenômeno nem é novo, vem da Europa, anos 90, trazido por quem se enxerga como vítima de uma violência invisível, a do mercado glo­balizado dominado pelos grandes conglomerados.
          Em Seattle, Bruxelas e Bolonha eles são "manifestantes". E aqui, sem separar o joio do trigo, nós os chamamos de "vândalos". Pois não adianta agora o ministro da Secre­taria-Geral da presidência, Gilber­to Carvalho, convidar "black blocs" para tomar um cafezinho. A bronca dessa turma não é com o governo. Problema deles é: 1) sociedade de consumo e 2) sustentabilidade. Chegamos até aqui, promovemos bem estar, tecnologia, saúde, saber e, mesmo assim, destruição, desi­gualdade e ganância continuam a prevalecer. A contracultura raivosa quer usar a violência para apontar onde está a verdadeira violência. Tratá-los como foras da lei só vai fazer reforçar o mal-entendido.
          Veja outro exemplo da imprensa ir achar passarinho cantando em toca de raposa (ainda lembrando de que se trata de uma proctologista ou maquinista falando): nesta se­mana, a bem-humorada "Forbes", que sobrevive de compilar listas com a mesma credibilidade do ran­king de seleções da Fifa, afirmou que o russo Putin ultrapassou Oba­ma no ranking dos líderes mais podero­sos.
          Ah, tá. Aquela caricatura de Yul Brynner, de um dia para o outro, deixou para trás o arsenal bélico, o gigantismo da economia e todo o poderio de conhecimento e pes­quisa norte-americanos? Tudo bem, eu sei que os russos são um azougue energético, mas vamos e venhamos. Enquanto os EUA tive­rem uma máquina de propaganda chamada Hollywood, ainda segu­ram os corações e mentes de mui­tos, yes?
          Quer mais um exemplo de santa ingenuidade dessa turma que hoje cobre guerra a partir do ar condi­cionado de centro de imprensa? Não é que o pessoal entrou na onda do vasculhado e passou a tratar com suprema indignidade o fato corri­queiro de que os EUA investigam e sempre investigaram as comunica­ções de líderes mundiais? Que mi­mimi é esse?
          O cerne da questão é outro intei­ramente, esse, sim, de suma impor­tância: o problema é que o governo norte-americano insiste em tratar como criminosos os jornalistas que divulgam informações sobre suas atividades ilegais.
          Em um mundo que se acostuma a conviver com câmeras que flagram quem tira meleca do nariz no eleva­dor, ou seja, em que a privacidade foi para o beleléu, há uma onda per­niciosa que ainda tenta abafar a in­formação. Parta ela da maior po­tência do mundo ou de artistas de­crépitos. E os jornalistas, veja só, ainda não entenderam bem de que lado devem estar.

          Eliane Cantanhêde

          folha de são paulo
          Aflitos e ansiosos
          BRASÍLIA - Segundo Aécio Neves, Lula e o PT estão "aflitos e ansiosos" e os petistas vivem "inseguranças internas", duvidando das chances de Dilma Rousseff em 2014.
          Ok, isso tem até uma boa parcela de verdade, mas reflete só um lado da intrincada história da eleição.
          Talvez o mais correto seja dizer que, tanto quanto Lula e o PT, também o próprio Aécio e o PSDB, o governador Eduardo Campos e o PSB, mais a ex-senadora Marina Silva e a Rede estão "aflitos e ansiosos" e vivem "inseguranças internas". Em alguns casos, até mais.
          Dilma, que foi eleita com fama de gerente aplicada e eficiente, anuncia o pior resultado fiscal para o mês de setembro desde o Plano Real, balança comercial desbalanceada, índice de inflação sempre raspando o teto da meta e um modelo de privatização que assusta os melhores da praça internacional.
          Pior: a taxa de crescimento é de deixar "aflitos e ansiosos" não apenas candidatos e partidos, mas todos os analistas e o setor produtivo.
          Aécio, apesar de ser de um partido recheado de grandes nomes na economia, inclusive dos "pais do real", também não diz como dar uma guinada para resolver a questão fiscal, a balança, a inflação, as privatizações e, especialmente, o crescimento.
          Para ele, Dilma, como candidata à reeleição, deveria estar em condições muito melhores do que está. Mas, como candidato do PSDB, principal sigla de oposição e que governou o país por oito anos, Aécio também não deveria estar em condições melhores do que está a essa altura? Dilma não tem o que mostrar na economia, mas tem propaganda, máquina, dados sociais, emprego e renda a seu favor. E Aécio, o que contrapõe?
          No caso de Campos e Marina, nem é preciso gastar linhas para explicar o porquê de estarem "aflitos e ansiosos" e convivendo com "inseguranças internas". Só se fala nisso.
          Quanto à crítica do tucano de que Lula é uma "sombra" de Dilma: Aécio e Campos sabem bem o que é isso.

            Helio Schwartsman

            folha de são paulo
            Cotas no Parlamento
            SÃO PAULO - Não me parece que haja muita possibilidade de a PEC que estabelece cotas raciais no Legislativo ser aprovada, mas o tema rende uma discussão interessante.
            De modo geral, não gosto da ideia de usar a cor da pele como critério para nada, mas admito que, no caso de vagas universitárias, é possível fazer uma defesa coerente desse tipo de ação afirmativa. O argumento é complexo, mas tento resumi-lo.
            Tradicionalmente, o curso superior serve para formar os quadros que ficam à disposição da sociedade, de médicos e professores a ornitólogos. Se esse fosse o único objetivo, o ideal seria que a seleção fosse apenas meritocrática. Quanto melhor o aluno que entra, melhor o profissional que sai --o que beneficia a todos.
            O problema é que a universidade se tornou também o principal fator de ascensão social. E, para quem toma a equidade como meta relevante, faz sentido (ou pelo menos não é absurdo) manipular um pouco as regras em favor de determinados grupos com o intuito de promovê-la.
            Vale lembrar que, numa leitura mais rawlsiana, o próprio conceito de mérito precisa ser relativizado, já que ele é, em parte, resultado de uma loteria genética, equiparando-se a outras capacidades imerecidas, como beleza e direitos de nobreza.
            Enquanto ações afirmativas estão restritas a universidades, é possível tentar conciliar os dois objetivos. Se a reserva de vagas não for obscena e a política tiver prazo definido, dá para preservar o principal do sistema de mérito ao mesmo tempo em que se promove a mobilidade social.
            Expandir esse princípio para o Parlamento, porém, é complicado, para não dizer ridículo. O Legislativo, afinal, não desempenha nenhuma das funções da universidade. Ele só se justifica como uma assembleia de representantes da vontade dos cidadãos. A introdução de qualquer regra que limite essa vontade ou modifique seu resultado deve, portanto, ser vista com desconfiança.

            Receita da corrupção - Editorial FolhaSP

            folha de são paulo
            Receita da corrupção
            Novo escândalo milionário na cidade de São Paulo envolve ocupantes de cargos de confiança nas gestões de Kassab e Haddad
            Até para os padrões brasileiros é impressionante a dimensão do novo escândalo revelado na administração municipal de São Paulo.
            Os R$ 500 milhões que, segundo se estima, foram subtraídos dos cofres públicos a partir de 2007 superam, por exemplo, o montante necessário para congelar as tarifas de ônibus por um ano --para mencionar um tema caro ao prefeito Fernando Haddad (PT).
            Não é sobre o petista, entretanto, que incide o maior potencial destrutivo desse escândalo. O esquema se estruturou na gestão de seu antecessor e atual aliado, Gilberto Kassab (PSD) --embora o próprio Haddad tenha dito que, por enquanto, não há indício de envolvimento das autoridades políticas.
            Kassab, de resto, já sofrera enorme desgaste quando se revelou, nesta Folha, o suspeitíssimo enriquecimento de Hussain Aref Saab, responsável pelo setor de aprovação de imóveis da prefeitura. Entre 2005 e 2012, enquanto era encarregado de vistoriar a liberação de grandes empreendimentos, Aref adquiriu 106 imóveis, avaliados em cerca de R$ 50 milhões.
            Surgem agora, conforme denominação interna da prefeitura, os "arefinhos" --se bem que o diminutivo seja enganoso neste caso, tal a importância dos recursos que se acredita terem desviado.
            Calcula-se em R$ 80 milhões a quantia recebida pelos "arefinhos", logo convertida em carros de luxo, motocicletas e imóveis de alto padrão. O esquema, que segundo as investigações era liderado por Ronilson Bezerra Rodrigues, subsecretário da Receita municipal durante a gestão Kassab, era razoavelmente complexo.
            Superestimava-se, num primeiro momento, o cálculo do ISS (Imposto Sobre Serviços) devido por determinada empresa. Para reduzi-lo, era necessário depositar uma quantia na conta de um dos participantes da quadrilha. Feito o depósito, liberavam-se os documentos atestando que o tributo havia sido pago, em valor muito mais modesto que o estipulado previamente.
            Só então os imóveis eram liberados. Portanto, um misto de chantagem, corrupção e lesão aos cofres públicos teria se articulado.
            Vê-se como estava enredado o setor imobiliário na cidade de São Paulo. Depois de passar pela catraca alojada na Secretaria de Finanças, o empreendedor ainda tinha de haver-se com o pedágio acomodado na Secretaria de Habitação.
            Ao menos é auspicioso que o escândalo presente tenha sido objeto de investigação da própria prefeitura, por intermédio da Controladoria Geral do Município --órgão em boa hora criado por Haddad.
            Falta explicar, contudo, por que o mesmo Haddad havia nomeado para diretor de finanças da SPTrans, empresa que gerencia o transporte municipal, ninguém menos do que o próprio Ronilson Bezerra Rodrigues, cujo patrimônio tantas suspeitas suscita. Decerto não foi só pelos 20 centavos.

            Eduardo Matarazzo Suplicy

            folha de são paulo
            Um passo para a dignidade
            As vozes dos 81 senadores possibilitarão à presidenta dar um salto para erradicar a pobreza extrema e construir uma nação mais justa
            Os 81 senadores da República, representando as 27 unidades da Federação, 16 partidos políticos, incluindo dois ex-presidentes da República, um atual e dois ex-presidentes do Senado, dois prováveis candidatos à Presidência, 20 ex-governadores e 18 ex-prefeitos, assinamos uma carta à presidenta Dilma Rousseff, por mim entregue em 25 de outubro, com uma proposta: que ela venha a constituir um grupo de trabalho com o propósito de preparar a instituição, por etapas, iniciando-se pelos mais necessitados, da renda básica de cidadania (RBC), conforme dispõe a lei nº 10.835/2004, aprovada por todos os partidos no Congresso. Trata-se do primeiro país do mundo cujo Parlamento aprovou lei nesse sentido.
            Em 30 de outubro, no Museu da República, em Brasília, houve uma solenidade para se comemorar os dez anos da implantação do programa Bolsa Família, o qual contribuiu decisivamente para a erradicação da pobreza extrema e para a diminuição da desigualdade no Brasil e que pode ser visto como um passo na direção da RBC.
            Em 8 de janeiro próximo, a lei que institui a RBC completará dez anos. Será importante, pois, que pessoas que tenham contribuído para o estudo dos programas de transferência de renda possam colaborar para esse propósito, a exemplo do professor Paul Singer, secretário de Economia Solidária do Ministério de Trabalho e Emprego desde 2003.
            Singer poderá trabalhar em estreita colaboração com os ministros Tereza Campello (Desenvolvimento Social), Miriam Belchior (Planejamento) e Marcelo Neri (Assuntos Estratégicos) e Ana Maria Medeiros da Fonseca, primeira secretária-executiva do Bolsa Família --pessoas que contribuíram para a sua criação e que têm contribuído para a formulação de políticas na área.
            Também poderão ser convidados especialistas internacionais como o professor Philippe Van Parijs, que fundou a "Basic Income Earth Network" e acompanha o desenvolvimento das experiências internacionais de implantação da RBC na Índia, no Irã, na Namíbia, no Alasca, na Suíça, na União Europeia e outras. A experiência pioneira de 30 anos do Alasca o tornou o mais igualitário dos Estados americanos.
            A proposta assinada por todos os senadores, com muito entusiasmo, conforme as palavras de cada um transmitidas a mim ao examiná-la, inclusive pelos líderes da oposição e candidatos à Presidência, condiz com a que foi formulada por cerca de 300 acadêmicos do Brasil e do exterior que participaram recentemente do Colóquio Internacional do Núcleo de Psicopatologia, Políticas Públicas da Universidade de São Paulo sobre Invenções Democráticas: Construções da Felicidade e que assinaram carta com igual propósito à presidenta Dilma. A professora Marilena Chaui foi uma das mais entusiastas subscritoras.
            Nos últimos dez anos de governo do Partido dos Trabalhadores, tivemos grandes realizações, com destaque para a melhoria das condições de vida das populações menos favorecidas. As vozes dos 81 senadores possibilitarão à presidenta dar um salto para atingir seu objetivo de erradicar a pobreza extrema, construir uma nação justa, fortalecer a segurança das mulheres e prover dignidade a todos os brasileiros.

            Lição aprendida - Marina Silva

            folha de são paulo
            Encontro muitos jovens que expressam um forte desejo de mudança na política, na economia, na sociedade. Acolho a todos, como mantenedora de utopias (título que pretensiosamente me dei), mas sempre esclareço: mudanças não nascem de repente, o novo não brota do nada. A biologia ensina que todo organismo se firma preservando alguma estrutura anterior.
            Aprendi essa lição ao longo da vida e um de meus professores foi o ex-presidente Lula, que decerto não esqueceu os emocionantes dias de sua campanha nas eleições de 2002. Na turbulência causada pela iminência de sua vitória, lançou a "Carta aos Brasileiros", expressando o compromisso de manter as conquistas do Plano Real e as bases da estabilidade econômica herdadas de seu antecessor, Fernando Henrique. Deu uma lição de grandeza política que procurei aprender, não apenas "decorar".
            Lula manteve na equipe econômica pessoas como Joaquim Levy e Marcos Lisboa, nomeou o tucano Henrique Meirelles para o Banco Central -- a quem deu status de ministro--, manteve contato com economistas que seu partido acusava de "neoliberais" e fez de Delfim Netto uma espécie de conselheiro.
            A conservação da estabilidade econômica propiciou avanços nos programas sociais. Um documento intitulado "A Agenda Perdida", elaborado por um grupo suprapartidário de economistas e pesquisadores, forneceu subsídios para muitas ações do governo de Lula, que também buscou referências nos planos anteriores de combate à miséria, incluindo as experiências da prefeitura de Campinas, do governo de Cristovam Buarque no DF e as propostas da comissão de combate à pobreza, que propus no Senado para aperfeiçoar o fundo de combate à pobreza antes proposto por ACM.
            Lula e FHC tiveram sabedoria de aproveitar as bases já assentadas nos períodos anteriores para avançar. Sendo coerentes com essa lição, além de dar crédito a esses líderes, que deixaram suas marcas, devemos dar um passo adiante: desfulanizar as conquistas que o Brasil obteve com eles. A estabilidade econômica e a inclusão social não são de autoria exclusiva de Lula e FHC. Foram e continuam sendo exigências da sociedade, mostras da evolução do povo brasileiro após conquistar a democracia --outra conquista da qual ninguém pode arrogar-se dono ou autor.
            Por isso, digo aos mais jovens: conheçam a história, para evitar que seja reescrita. Honrem as realizações das gerações anteriores. Mas não sejam meros "continuadores", pois a democracia, a economia e os direitos sociais devem ser aperfeiçoados e inseridos num novo modo de desenvolvimento, sustentável, adequado aos tempos presentes e futuros.
            O passado ensina. O futuro inspira.