sábado, 2 de novembro de 2013

Xico Sá

folha de são paulo
Carta a Diego Costa
Caríssimo rapaz de Lagarto, tomaste a decisão mais certeira; sem essa de traidor da pátria
Amigo torcedor, amigo secador, peço a devida licença para me dirigir, especialmente, a este brasileiríssimo rapaz de Lagarto, Sergipe, que dentro de campo, doravante, é tão espanhol quanto uma tourada ou um sapateado de flamenco. Caríssimo Diego Costa, tomaste a decisão mais certeira, sem essa de traidor da pátria, como se fora um Calabar durante a invasão holandesa (1630-1654).
Sem essa, meu nego, "no passa nada", só tu sabes o que passaste na tua vida de papa-jaca, como é chamado um autêntico lagartense. Tua pátria é a tua bola e aqui não rolou chance alguma entre os profissas. Aqui tua pátria foi apenas tua várzea. "Perdido en el corazón/ De la grande babylon", eras um clandestino da pelota, como diria Manu Chao, este cantante que também aboliu as linhas dos mapas.
Tua pátria é a do Iniesta --cá entre nós, caro Diego, viste como ele se parece com nosotros nordestinos?
Segundo o site "Cearenses Internacionais", que faz humor sobre a semelhança de variados povos e personagens famosos, o craque do Barça nasceu na praia de Morro Branco, Beberibe (CE), em 1984. Não duvido. Cearense é um bicho que corre mundo.
Brincadeiras globalizadas à parte, o Felipão ficou bravo, o que não é lá mui difícil. O Felipão pôs a questão de ordem, marcha, para mexer com os brios da tropa de Pachecos. "No passa nada", amigo, a Espanha te valoriza, disseste tudo. Aqui és, mesmo depois desta peleja, uma tremenda dúvida. Até para este vagabundo cronista que te escreve, embora veja no teu jeito de marcar gols um quê de Emílio Butragueño --o objetivíssimo espanhol da filosofia "un toque e me voy".
Deste um exemplo, Diego, para os milhares de jovens que saem cada vez mais cedo sem chance nas peneiras da pátria amada, mãe gentil. Sem essa, meu nego, brigam Espanha e Brasil pelos direitos do mar, o mar, porém, meu velho, é das gaivotas que nele sabem voar --que me desculpe pelo arremedo de paródia da música de Milton Nascimento e Leila Diniz.
Caríssimo rapaz de Lagarto, sem essa de traição à pátria, bom foi observar como os espanhóis ficaram orgulhosos pela tua escolha futebolística --sei que seguirás como um brasileiríssimo papa-jaca.
O jornalista e escritor David Trueba, em crônica no "El País", falou bonito. Disse que a tua decisão é motivo de euforia para os espanhóis que vivem grave crise na economia e na autoestima. Com a pegada de chiste e gozação elegante, Trueba exaltou o triunfo sobre a praia de Copacabana, o carnaval da Bahia, as mulheres com adornos de frutas na cabeça, o lema "Ordem e Progresso", a voz de João Gilberto com música de Tom Jobim e versos de Vinicius.
Um legítimo samba-exaltação puxado na castanhola. Aqui, amigo, no máximo farias companhia aos cupins no esquenta-banco de reservas de luxo. Tua pátria é tua bola. O rio Vaza-Barris corre no teu sangue de infância em transfusão com o madrileño Manzanares que te apontou o destino.
"No passa nada". Tua pátria é o universal grito de gol em qualquer língua. Tua pátria é a pequena área. E saibas de uma coisa importante: agora és o papa-jaca mais conhecido do mundo. Deixaste para trás outro filho ilustre da terra, o homem-víbora, Joel Silveira, o maior repórter brasileiro de todos os tempos. Palavra do jornalista pernambucano Geneton Moraes Neto. Aquele abrazo e nos vemos na final do Maraca.
@xicosa

    Se Aécio for o candidato do PSDB, vou trabalhar por ele,diz José Serra em entrevista

    folha de são paulo
    ENTREVISTA - JOSÉ SERRA
    EX-GOVERNADOR DIZ QUE APOIARÁ COLEGA SE HOUVER 'UNIDADE' E ACHA QUE PT PODE LANÇAR LULA SE ACHAR QUE DILMA CORRE RISCO
    FERNANDO RODRIGUESDE BRASÍLIAEmbora ainda se apresente como pré-candidato a presidente pelo PSDB, José Serra faz agora uma inflexão no seu discurso. Diz que vai trabalhar a favor da unidade do partido, "com quem for o candidato", ele ou o senador tucano Aécio Neves (MG).
    "É a minha grande aspiração, que o PSDB esteja unido. Com quem for o candidato", afirmou em entrevista à Folha e ao UOL. Mas fará campanha a favor de Aécio? "Farei, farei, trabalharei para que a haja unidade, primeiro. E segundo, havendo unidade, para que a unidade se projete na campanha".
    A declaração de Serra, é claro, pode ser interpretada com ressalvas. Por exemplo, quando ele diz que trabalhará pelo mineiro "havendo unidade". Adversários podem enxergar insinceridade no apoio prometido a Aécio. Mas o tucano poderia ter tergiversado quando indagado sobre se faria campanha para o colega. Preferiu ser direto.
    Trata-se de uma mudança em relação ao tom quase beligerante das últimas semanas, quando o paulista passou a viajar pelo país para se apresentar como alternativa a Aécio, hoje o favorito para ser o candidato do PSDB.
    E quem seria mais de esquerda, Serra ou Aécio? O paulista explicou que a trajetória de vida dos dois é muito diferente. Mas ele estaria à direita ou à esquerda do mineiro? "À direita, não estou". Ao final, afirmou que ambos são "progressistas". A seguir, leia trechos da entrevista:
    -
    Folha/UOL - Há no Senado um projeto propondo autonomia completa para o Banco Central. Qual é a sua posição?
    José Serra - Sou contra. O Banco Central já tem, na prática, autonomia operacional. Se você torna o presidente do BC imune, passa a ser um outro poder. Se ele tiver um mau desempenho, o processo de retirar é muito complexo. Vai desestabilizar a economia. Fernando Henrique não pensa diferente. Tenho a impressão que o Aécio [Neves] também não pensa diferente.
    Lula fez críticas a Marina Silva por ela ter reconhecido o papel de FHC na estabilização da economia. É tática eleitoral?
    Sem dúvida, sem dúvida.
    Lula e o PT têm sido exitosos com essa tática. Por quê?
    Porque são bons nesse ramo. No ramo de marketing o PT é bom, e o PSDB não é bom. Outras forças de oposição também não são.
    Mas é só marketing?
    Você quer um exemplo? O Fome Zero. Fome Zero nunca existiu. Se você fizer uma pesquisa hoje e for avaliar o Fome Zero, a avaliação é positiva. Ou seja, é marketing. A oposição tem de aprender. Tem que saber apresentar.
    O sr. disputará a indicação para ser candidato a presidente?
    O PSDB, por acordo, ficou de decidir isso mais adiante. Em março, a partir de março do ano que vem. Tenho seguido um pouco essa decisão. Aí vamos ver qual é a situação.
    O sr. quase saiu do PSDB?
    Era uma hipótese. Mas concluí minha análise achando que eu posso contribuir mais dentro do PSDB.
    Há um acordo no PSDB sobre como definir o candidato. Quais serão os critérios?
    As circunstâncias. As outras candidaturas. Hoje, nenhum partido definiu de fato. O que aconteceu com Marina Silva e Eduardo Campos era inteiramente imprevisível.
    Em março, o desempenho em pesquisas será relevante?
    Sempre é. Embora tenha que se fazer ponderações. É normal que tanto o nome da Marina quanto o meu tenha um nível mais alto que os outros porque disputamos eleição presidencial. Em princípio isso não é um fator decisivo. Os outros candidatos podem crescer.
    Como deve ser o processo?
    Terá que haver conversas entre dirigentes. Auscultar o partido. Formalmente, a convenção é em junho.
    Mas e em março?
    Em março, a partir de março, se se achar que não tenha condições de maturidade para se tomar uma decisão.
    É possível uma chapa presidencial do PSDB composta com Aécio Neves e José Serra?
    Não temos candidato ainda. Imagine escolher vice a esta altura. Decidir que vice é do PSDB sem ter o quadro dos aliados já definido.
    Se Aécio for o candidato a presidente, o PSDB e o sr. estarão unidos em torno dele?
    É a minha grande aspiração, que o PSDB esteja unido. Com quem for o candidato. E eu trabalharei para isso, não tenha dúvida.
    Fará campanha, de maneira incessante, a favor de Aécio?
    Farei, farei. Trabalharei para que a haja unidade, primeiro. E segundo, havendo unidade, para que a unidade se projete na campanha.
    Acha que Aécio fez campanha para o sr. com a intensidade que deveria ter feito em 2010?
    Ele fez campanha me apoiando, segundo a estratégia que adotaram em Minas, inclusive no segundo turno.
    Qual estratégia?
    De ganhar eleição no governo estadual. Isso sempre é um fator que se impõe. Para deixar bem claro: eu não perdi a eleição porque podia ter tido mais votos em Minas. A derrota em 2010 foi porque tudo crescia 10% --a massa de salários, o crédito ao consumo. Foi um período de euforia, com o governo Lula lá nas nuvens de avaliação.
    Qual dos dois, Aécio ou Serra, estaria mais à esquerda hoje?
    Engraçada a pergunta. Acho que categoria esquerda-direita já é meio batida.
    O sr. está à esquerda ou à direita de Aécio?
    À direita, não estou.
    À esquerda?
    Depende do ângulo que se olhe. Tenho uma biografia de militância de esquerda longa. São histórias diferentes, difíceis de comparar. Não dá para comparar banana com laranja. São formações diferentes, perfis diferentes, personalidades diferentes. É muito difícil. Acho que ambos somos, para usar um termo genérico, progressistas.
    Se não for candidato a presidente, o que pretende fazer? Disputar uma vaga ao Senado?
    Tem diversas possibilidades. Não me detive a analisar nenhuma.
    Lula ainda pode vir a ser candidato a presidente, em 2014?
    Parece-me que sim. Quando você pega avaliações de governo, em geral não dá uma diferença grande entre a taxa de aprovação e desaprovação [do governo]. E acima de tudo, qualquer pesquisa mostra desejo de mudança. O indicador de que a disputa vai ser acirrada é o fato de que o pessoal quer mudança.
    Por que Lula poderia substituir Dilma?
    O PT não quer perder o poder de jeito nenhum. Sabe por quê? Porque se misturaram com o poder. O PT se apossou do governo e deixou uma parte para os aliados. Toda a máquina está confundida com o governo. É questão de sobrevivência. Vão fazer tudo para ganhar. Se os dados apontarem que Dilma não será capaz de ganhar no primeiro turno, o PT não vai correr o risco. Um segundo turno para ela é arriscadíssimo.
    Quem é mais competitivo: Campos ou Marina Silva?
    Hoje seria a Marina do ponto de vista da análise política.
    Metrô de São Paulo. Um e-mail da Siemens indica que o sr. teria sugerido um acordo em uma licitação da CPTM para evitar disputas judiciais. Foi uma atitude correta?
    O que houve foi outra coisa. Atuei contra o cartel porque ganhou uma empresa com um preço mais baixo e as que ganharam com preço mais alto queriam derrubar a primeira. Eu disse: Se derrubarem, se forem para Justiça e derrubarem, eu refaço a concorrência. Eu não vou dar para o segundo colocado'. Foi uma posição anticartel.

      Provedor de internet pode favorecer acesso a site? Sim ou Não?

      folha de são paulo
      EDUARDO LEVY
      Provedor de internet pode favorecer acesso a site?
      Uma ameaça à inclusão
      SIM
      À semelhança de um imóvel, cuja localização, tamanho, acabamento e preço determinam condições de aquisição diferentes para o comprador, a internet hoje oferece pacotes variados de acesso.
      E, assim como o governo federal possibilita uma melhora de vida para milhões de brasileiros com o programa Minha Casa, Minha Vida, a internet permite o acesso de usuários que estão se iniciando na rede por meio de pacotes básicos.
      Mas essas ofertas estão em risco com a atual proposta de texto do Marco Civil da Internet. Restarão apenas ofertas sofisticadas.
      Trata-se de um projeto elitista, coberto por um manto atraente e popular que passa a falsa ideia de que nós, que fazemos todos os investimentos na rede que dá suporte à internet, somos contra a navegação livre e neutra.
      Hoje, a população tem um oceano para navegar. Ela pode adquirir um pacote irrestrito, com direito a acesso total, inclusive baixar filmes e músicas. Ou um pacote com velocidade e quantidade escolhidas pelo cliente, que, quando consumidas, mantém o acesso, mas com a velocidade ofertada pela rede no momento do uso.
      Há também um pacote pré-pago --com alguns poucos reais, pode-se acessar a internet e, ao se esgotarem os créditos, a conexão é interrompida. E ainda existe o pacote básico de voz em um smartphone, com acesso gratuito a redes sociais.
      Faço ao leitor algumas perguntas. Devemos continuar ofertando planos como esses? Esses planos devem ter preços diferentes? Qual seria o mais caro? E qual seria o mais barato? O atual texto da proposta veda a possibilidade de ofertas diferenciadas, pois pressupõe que todos os usuários tenham os mesmos desejos e necessidades, só restando a possibilidade de uma única oferta, sem restrições.
      Se a lógica dessa proposta elitista fosse aplicada ao mercado imobiliário, seria o fim de iniciativas como o Minha Casa, Minha Vida. Mais do que querer que todos morem em casas do mesmo tamanho, estabelece que seja sempre a maior.
      No caso dos nossos internautas, só poderemos fazer uma oferta: a do pacote irrestrito. E novamente pergunto: que resposta nosso atento leitor deu para a pergunta sobre qual pacote seria o mais caro? E a qualidade das ofertas? Se forem planos diferenciados, a qualidade também deverá variar?
      A qualidade do acesso à internet já está garantida em regulamentação da Anatel e vem sendo aferida e divulgada mensalmente, com base sempre no mesmo critério, qualquer que seja o plano contratado. Trata-se de iniciativa inédita no mundo.
      Nós, as teles, prestadoras do serviço, estamos realizando um dos maiores programas de inclusão social do mundo: disponibilizamos o acesso em banda larga a serviços e conteúdos para milhões de brasileiros em praticamente todos os municípios, realizando vultosos investimentos com recursos privados, sem nenhum centavo público.
      Hoje, a cada segundo, um novo acesso em banda larga à internet é ativado no país. Esperamos que continue assim, pois já temos 120 milhões de acessos à internet.
      E o que precisamos, no nosso país, com uma Constituição que afirma que a iniciativa privada é um dos seus pilares, que a concorrência e a oferta são livres, é ter a liberdade de continuar a oferecer para toda a sociedade o que ela deseja, e não aquilo que poucos acreditam que seja a sua necessidade.
      Nossa visão é mais pluralista, mais democrática, mais inclusiva e mais acessível, principalmente para quem agora começa a descobrir na internet uma forma simples e poderosa de se desenvolver e exercer, mais ainda, a sua cidadania.
      ALESSANDRO MOLON
      Provedor de internet pode favorecer acesso a site?
      Fura-fila
      NÃO
      Imagine entrar na internet e ter que se restringir apenas à leitura e ao envio de e-mails. Afinal, é o que o seu contrato e seu bolso permitem. Quando você clica para ver um vídeo, seja de entretenimento ou de ensino, uma mensagem alerta que ele não pode ser exibido. Redes sociais e jogos on-line são exclusividades do pacote superior.
      Fazer ligações gratuitas pela web, então, nem pensar, pois a internet completa é luxo para os poucos privilegiados que podem pagar, especialmente considerando que este serviço, de Voz sobre IP (VoIP), é concorrente das empresas telefônicas, as mesmas que detêm os cabos usados para a conexão à internet.
      Depois de finalmente conseguir fazer um upgrade para ter direito a sites, você percebe que alguns endereços carregam mais rapidamente que outros. O modesto blog que você gosta de ler faz parte do grupo de endereços que têm que aguardar um longo tempo na fila até ser carregado na tela do computador.
      Já outros sites maiores que têm acordos comerciais com provedores de conexão são acessíveis num piscar de olhos. O segredo é o pagamento de uma taxa extra, que permite que a fila seja furada, como um carro que aluga uma sirene para poder ultrapassar os demais veículos num eventual engarrafamento e chegar mais rapidamente ao seu destino.
      Essa rede desfigurada é um retrato possível do sombrio futuro da web no Brasil caso a neutralidade da rede não seja preservada integralmente no Marco Civil da Internet.
      Por mais de um ano, provedores de conexão têm conseguido impedir a votação do projeto na Câmara dos Deputados, pressionando contra a garantia de uma rede defensora dos direitos dos internautas e neutra --isto é, que não fraciona o acesso a conteúdos em blocos pagos separadamente.
      O plano deles é colocar em prática o fatiamento da internet, num modelo semelhante à TV por assinatura, e cobrar preços abusivos pela experiência completa que já temos hoje. Desejam, também, ampliar seus negócios às custas da liberdade de escolha dos usuários, ao priorizar o acesso a determinados sites em detrimento de outros.
      A neutralidade é o coração não só do projeto, mas da internet como a conhecemos. Numa rede neutra, a transmissão das informações deve ser isonômica: sem discriminação por origem, destino ou conteúdo dos pacotes de dados.
      A quebra dessa igualdade pode traduzir-se em menos brasileiros conectados à experiência integral da internet, na contramão dos avanços recentes. O aumento de 9% no número de usuários registrado no primeiro trimestre deste ano em comparação com o trimestre anterior, computado pelo Ibope, pode se tornar coisa do passado. A exclusão digital bate à porta.
      É inadmissível, portanto, que os mais de 100 milhões de internautas brasileiros continuem desprotegidos por conta da oposição de um único setor econômico. O projeto do Marco Civil da Internet é um equilíbrio entre todos os atores envolvidos. Além de garantir a neutralidade, ele protege fortemente a privacidade dos usuários e a liberdade de expressão, sendo considerada a melhor proposta de legislação para a internet no mundo.
      A Câmara dos Deputados tem o dever de aprovar e oferecer ao Brasil essa lei, que possibilitará uma rede mais segura, mais livre, mais aberta e mais democrática. Que, no debate pela aprovação, ela não perca de vista o maior interessado nessa discussão: o cidadão brasileiro.
      Pois vale lembrar: a democracia vai passar cada vez mais pela internet, e o futuro da internet depende da neutralidade da rede.

      Andre Singer

      folha de são paulo
      Alerta preto
      Após 20 anos, os acontecimentos de junho deflagraram novo ciclo de lutas sociais no Brasil. A partir das grandes demonstrações daquele mês, os mais diversos movimentos têm ido para as ruas, numa busca ativa de avançar pautas específicas. De moradores sem-teto a protetores dos animais, passando por grupos ligados a temas de comportamento e inúmeras corporações profissionais, uma corrente elétrica parece ter acendido até os mais inesperados círculos da sociedade.
      Do ponto de vista democrático, a mobilização é positiva, pois significa maior participação, o que tende a aumentar a qualidade da política. Porém, diferentemente do que ocorreu nos anos 1980, a onda reivindicativa veio acompanhada de formas violentas. É preciso enfrentar o fenômeno de maneira realista, sob pena de fechar espaços de progresso em lugar de abri-los.
      Por isso, foi correta e corajosa a declaração do ministro Gilberto Carvalho, para quem é preciso dialogar com os "black blocs". Não se trata de postura ingênua, no sentido de conversar com quem não quer conversa, pois deseja mesmo quebrar. É óbvio que atitudes violentas precisam ser coibidas de acordo com a lei, venham de onde vierem. Mas o Estado não pode ficar refém de uma visão simplificada do problema, sob pena de contribuir para uma espiral confrontacionista, que é fácil perceber como começa e impossível dizer como termina. É prioritário buscar uma ação inteligente antes que o caldo entorne.
      Certo diagnóstico simplista enxerga uma horda de jovens vândalos, oriunda de algum planeta distante, à qual se poderia conter e eliminar usando a força bruta. A ciência social, porém, mostra que os mascarados são expressão de profundas contradições brasileiras, as quais, por sua vez, incorporam de maneira singular problemas mais gerais da época. O preço de fechar os olhos a tal realidade será o de ver surgirem repetidas vagas de barbárie, o que, em uma sociedade fortemente desintegrada como a brasileira, é a senha para soluções regressivas.
      Também não se trata de responsabilidade apenas do Estado. As correntes políticas que apostam na democracia precisam ajudar a entender o solo de onde estão saindo os "black blocs" e dialogar com o público em volta deles, bem como suscitar programas que respondam às demandas que lá estão. Sabe-se, por exemplo, que há uma revolta juvenil contra os excessos dos órgãos de repressão, sobretudo na periferia das cidades. Acentuar tal disputa só vai piorar o quadro.
      Apesar de inúmeras dificuldades, a democracia aqui construída nos últimos 25 anos é avançada e permite avanços. Não vejo risco de regressão autoritária, mas temo que a violência enrijeça os canais ascendentes de participação, em lugar de abri-los ainda mais.

      Helio Schwartsman

      folha de são paulo
      Problemas na ciência
      SÃO PAULO - Ninguém em sã consciência duvida que a ciência funcione. As provas, ainda que indiretas, estão por todos os lados, dos fornos de micro-ondas aos antibióticos. Se nossas teorias físicas e bioquímicas estivessem muito erradas, não teríamos chegado a esses produtos.
      Dessa constatação não decorre, é claro, que as atuais práticas dos cientistas sejam as mais adequadas.
      Numa excelente reportagem publicada na semana passada, a revista "The Economist" faz um apanhado das coisas que não estão dando certo na ciência. Destaca desde a vulnerabilidade dos "journals" a artigos ruins ou errados até a baixa replicabilidade dos principais estudos. É preocupante. Um ponto central da ciência é o de que um experimento qualquer, se repetido em idênticas condições, produzirá os mesmos resultados. É isso que garante sua objetividade e a distingue da bruxaria. E a replicabilidade é baixa mesmo no caso de trabalhos de alto impacto.
      E há outros problemas. Para citar apenas um, experimentos que dão resultados negativos, em que pese serem epistemologicamente muito mais interessantes que os positivos, quase nunca são publicados.
      A "Economist" atribui parte do problema à cultura de "publish or perish" (publique ou morra). Num contexto em que cada vez mais pessoas tentam a sorte na ciência, disputando verbas escassas e posições nas universidades, não chega a ser uma surpresa que muito mais peças duvidosas cheguem à ponta final. É uma situação que estimula sensacionalismo, carreirismo e até fraudes. O antídoto para isso seria justamente a reprodutibilidade, que ajudaria a separar o lixo daquilo que presta. O problema é que poucos se interessam em refazer pesquisas alheias, já que isso não soma pontos na carreira.
      Seria exagero afirmar que a ciência está em crise, mas já passa da hora de as pessoas e instituições envolvidas tentarem aprimorar o sistema, tornando-o mais racional e eficiente.
      helio@uol.com.br

        Biografia de Allan Kardec chega às livrarias para repetir fenômeno de Chico Xavier

        folha de são paulo
        RAQUEL COZER
        COLUNISTA DA FOLHA
        Ouvir o texto

        Allan Kardec vai aparecer perto de você nos próximos dias --na TV, nas rádios, no metrô, na internet e, acima de tudo, nas livrarias.
        A exposição da imagem do fundador do espiritismo faz parte de uma forte ação de marketing da editora Record, que distribui 100 mil cópias de "Kardec: A Biografia", de Marcel Souto Maior.

        É uma aposta alta para um grupo editorial cujo maior best-seller no quesito biografias vendeu 64 mil cópias -- foi com "A Arte da Política - A História que Vivi" (Civilização Brasileira, 2006), de Fernando Henrique Cardoso.

        Os reis da psicografia

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        Divulgação/Casa dos Espíritos
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        O médium Robson Pinheiro, autor de "Tambores de Angola" (Casa dos Espíritos), ditado por Angelo Inacio
        A biografia anterior escrita por Souto Maior, "As Vidas de Chico Xavier" (LeYa), sobre o médium brasileiro, teve cerca de 1 milhão de cópias vendidas e originou o filme "Chico Xavier", visto por mais de 3 milhões de pessoas.
        O novo biografado, o francês Allan Kardec (1804-1869), é ele próprio um best-seller. Vendeu mais de 11 milhões de livros no Brasil, considerados só os números da maior editora do gênero, a Federação Espírita Brasileira. Há 120 casas espíritas no país, todas aptas a publicar "O Livro dos Espíritos" e outras obras do autor, em domínio público.
        E a biografia que sai agora também vai virar filme, previsto para 2015, sob direção de Wagner de Assis.
        Com o lançamento, a Record foca em especial o público leigo, menos afeito a uma história conhecida dos adeptos do espiritismo, mas tateia nicho promissor.
        Embora só 2% (3,8 milhões) da população brasileira se diga espírita, segundo o Censo de 2010, simpatizantes das notícias post-mortem são 50 milhões, segundo a Federação Espírita Brasileira.
        E, mesmo considerando só os 2% de espíritas --ante 64% de católicos (123 milhões) e 22% de evangélicos (42,5 milhões)-- eles representam o segmento religioso com os mais altos índices de educação e renda. Têm hábito de comprar mais livros --e pagar mais por eles.
        MAIS VENDIDOS
        Levantamento feito a pedido da Folha pela Nielsen, que começou a monitorar as vendas de livros no Brasil neste ano, dá a dimensão disso.
        Presente em nove países com a pesquisa em livrarias, a empresa americana optou pela contagem da venda de títulos espíritas só no Brasil, único país em que a doutrina se firmou como religião.
        O levantamento abrange a comercialização dos últimos quatro meses pelas maiores redes do país.
        Considerado só o faturamento com a venda de livros religiosos, os títulos espíritas correspondem a 32,63%, à frente dos católicos (31,79%) e dos evangélicos (19,92%).
        O que explica o fato de uma religião com menos adeptos liderar o faturamento desse setor são os preços dos livros espíritas: custam em média R$ 29,13, ante R$ 17,19 dos católicos e R$ 21,21 dos evangélicos.
        Também impulsiona essas vendas outro fenômeno nacional, os romances psicografados por nomes Zibia Gasparetto, Robson Pinheiro e Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho, que circulam aos milhões --isso, vale fazer a ressalva, num cenário em que os únicos números totais conhecidos são os divulgados pelas próprias editoras.
        Esses autores vendem tão bem hoje que ficam à frente de Chico Xavier (1910-2002) na contagem da Nielsen. Ocupam, respectivamente, o primeiro, o terceiro e o quarto lugar em vendas. Com 16 milhões de livros vendidos, Zibia Gasparetto, 87, deixa para trás até Kardec, em segundo lugar na lista.
        *
        OS REIS DA PSICOGRAFIA
        ROBSON PINHEIRO, 52
        34 livros em 18 anos, com 1,2 milhão de exemplares
        Espíritos Angelo Inacio teria sido jornalista em outra vida; Joseph Gleber se comunica em português com sotaque alemão
        Best-seller "Tambores de Angola", com 179 mil exemplares
        VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO, 65
        Quase 60 livros em 23 anos, com 3,5 milhões de exemplares por sua principal editora, a Petit
        Espírito Antonio Carlos ditou a maior parte; Patrícia é responsável pelos maiores hits
        Best-seller "Violetas na Janela", com 2 milhões de exemplares
        MARCELO CEZAR, 46
        14 livros em 13 anos, com 1,5 milhão de exemplares
        Espírito Marco Aurélio, que teria sido escritor famoso em outra encarnação, mas prefere não divulgar
        Best-seller "O Amor É para os Fortes", com 260 mil exemplares
        ZIBIA GASPARETTO, 87
        45 livros em 55 anos, com 16 milhões de exemplares
        Espírito Lucius, desde sempre; o nome vem aparecendo em obras de outros médiuns, mas, segundo Zibia, deve ser outro
        Best-seller "Ninguém é de Ninguém", com 865 mil exemplares

        Nos livros, espíritos célebres deram lugar a anônimos
        Lucius e Patrícia seriam as almas que ditam best-sellers do mercado espírita, liderado por Zibia Gasparetto
        Autora mais vendida no gênero da psicografia diz que outros usam o nome do espírito que ela recebe sem razão
        DA COLUNISTA DA FOLHANo tempo de Allan Kardec, espíritos como os de Santo Agostinho e Sócrates teriam ajudado a escrever "O Livro dos Espíritos" (1857). Hoje os best-sellers do gênero são ditados por nomes insuspeitos como Lucius e Patrícia.
        Essa mudança de perfil é vista por editores como decorrente das necessidades de cada período do espiritismo.
        "Kardec desenvolvia uma ciência, aqueles espíritos elevados eram necessários. No Brasil, a doutrina ganhou viés místico. Os espíritos são coerentes com a nova realidade, dão mensagens de conforto", diz o editor Leonardo Möller, da Casa dos Espíritos.
        A editora publica best-sellers como "Tambores de Angola", que seriam ditados por Ângelo Inácio e psicografados por Robson Pinheiro.
        Ângelo, segundo Pinheiro, foi um jornalista na última encarnação, mas prefere usar o pseudônimo para não chamar a atenção de parentes.
        Reginaldo Prandi, autor de "Os Mortos e os Vivos -- Uma Introdução ao Espiritismo" (Três Estrelas), acredita que a discrição dos espíritos hoje decorre tanto do fato de a doutrina já ter se firmado quanto de uma precaução.
        "Houve processos por direitos autorais, com familiares dizendo: Se usa o nome do meu avô, tem de pagar'."
        Um caso famoso foi vivido por Chico Xavier, que psicografou vários textos do cronista Humberto de Campos (1886-1934) até ser processado pelos herdeiros.
        Na ocasião, o juiz concluiu que só podia avaliar direitos autorais de obras produzidas em vida, mas, por prudência, Xavier passou a identificar o espírito como "Irmão X".
        Um desenrolar curioso dessa história envolve Zibia Gasparetto. Meio século depois de ela lançar "O Amor Venceu", que teria sido ditado por Lucius, o nome do espírito passou a figurar em livros de outros médiuns como "Exilados por Amor" (Vivaluz), de Sandra Carneiro.
        "Não é o mesmo Lucius", informa Zibia. "Ele diz que não tem tempo, que trabalha só comigo mesmo."
        Sandra Carneiro diz que seu Lucius deixa para o leitor concluir se é ou não o mesmo que acompanha Zibia..
        Mesmo o fundador da doutrina teve de lidar com questões envolvendo créditos, como conta Marcel Souto Maior na biografia "Kardec".
        Embora tenha listado na primeira edição de "O Livro dos Espíritos" os desencarnados que ajudaram no trabalho, Kardec deixou os nomes dos médiuns envolvidos de fora. Causou ciumeira.
        Para Souto Maior, esse foi o menor dos desafios que o francês teve de enfrentar.
        Como lidava com uma doutrina que envolvia fenômenos sobrenaturais, sua batalha por toda a vida foi a de mostrar como no centro de tudo estava não o milagre, mas a solidariedade --até hoje, a maior parte das editoras espíritas doa direitos autorais a instituições de caridade.

          Almas pelo espaço - Ruy Castro

          folha de são paulo
          RIO DE JANEIRO - Sebastião Salgado, o grande fotógrafo, rendeu-se à fotografia digital. Teve de. Cansou-se de carregar peso em viagens --principalmente porque os cenários, pessoas e bichos que ele gosta de fotografar ficam em lugares como o Sudão, Sumatra, as ilhas Galápagos, o Círculo Ártico, a África Central e a Papua Ocidental, todos fora do circuito Elizabeth Arden. Para se deslocar de um ponto a outro, costumava carregar uma mala contendo 600 rolos de filme e pesando 28 quilos.
          O pior, segundo Salgado, era o aeroporto. Certa vez, aconteceu-lhe de ter de passar pelo raio-X de sete aeroportos em um dia, e só ele sabe o estrago que o raio-X faz a um filme. Hoje, o equivalente a esses 600 rolos cabe num cartão de memória digital que pesa 800 gramas, liberando-o para arrastar as toneladas de equipamento --que, deste, ele não abre mão.
          Claro que, em se tratando de Sebastião Salgado, o aproveitamento de seus cliques deve beirar os 100% --em tese, não consegue tirar uma foto ruim. Mas o que dizer das massas que vivem pelo mundo a turismo, todos portando câmeras convencionais, celulares ou iPads, e fotografando sem parar?
          Será possível calcular o total de fotos tiradas diariamente por essas pessoas em seus bordejos pelas estranjas? Como não existe mais filme, ficou fácil fotografar --basta apertar um botão. Ao fazer uma revisão, apagam ali mesmo as fotos em que saíram gordas, carecas ou com queixo duplo, e só salvam as "boas".
          O que me intriga é: para onde vão as fotos que as pessoas apagam? Elas "morrem", eu sei, mas não podem apenas sumir. Têm de ir para algum lugar, talvez uma galáxia ou dimensão desconhecida. E, se for verdade o que diziam os antigos, que as fotos roubam a alma das pessoas, penso nesses trilhões de alminhas zanzando em HD pelo espaço, e não sei se rio ou me compadeço.
          ruy castro
          Ruy Castro, escritor e jornalista, já trabalhou nos jornais e nas revistas mais importantes do Rio e de São Paulo. Considerado um dos maiores biógrafos brasileiros, escreveu sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Escreve às segundas, quartas, sextas e sábados na Página A2 da versão impressa.