domingo, 10 de novembro de 2013

Calcinha 'antiestupro' causa polêmica nos Estados Unidos

folha de são paulo
JOANA CUNHA
DE NOVA YORK
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O projeto de um novo produto desenvolvido com a pretensão de impedir estupros levantou, nas últimas semanas, milhares de dólares em doações e gerou polêmica entre feministas nos EUA.
Trata-se de uma calcinha. O protótipo da peça, feita de um tecido altamente resistente, cuja trama não pode ser rompida por lâminas e tesouras, inclui uma espécie de cadeado acoplado à cintura.
A roupa íntima dispensa chaves, mas só pode ser retirada do corpo pela própria usuária, por meio de um segredo que precisa ser memorizado. Se a dona esquecê-lo, pode ficar em apuros quando precisar ir ao banheiro.
A linha inclui itens de vestuário esportivo e modelos com design que lembra calcinhas comuns. A ideia é dificultar o crime e dar mais tempo para a chegada de socorro.
Chamado de AR Wear (as iniciais são para 'antiestupro' em inglês), o protótipo foi apresentado no Indiegogo, site que lista negócios empreendedores em busca de financiamento coletivo.
Já levantou mais de US$ 40 mil (R$ 92 mil) e dezenas de críticas de feministas na mídia local.
Segundo os idealizadores, os recursos serão investidos em produção e tecnologia. Os primeiros modelos devem ficar prontos em julho.
O texto de apresentação do projeto diz que a peça transmite ao estuprador a "mensagem clara de que a mulher não está consentindo". Mas esse conceito desagradou a feministas, que afirmam que os fundadores da ideia "sugerem que a mulher é parcialmente responsável, por não recusar o ato com clareza".
"Estupradores sabem o que não é consentido. O homem não é burro a ponto de não entender quando a mulher não quer", afirmou a feminista Louise Pennington em artigo no "Huffington Post".
A AR Wear responde que não pretende atribuir à mulher a responsabilidade de evitar o crime. "O único responsável pelo estupro é o estuprador. O produto só oferece mais uma ferramenta de defesa."
O item é recomendado em situações como festas, em que a mulher pode se tornar vulnerável por embriaguez, e viagens a países desconhecidos.
Evitando emitir sugestões sobre como a vítima deve proceder se o agressor estiver armado, a AR Wear diz estar ciente de que sua ideia não será capaz de atingir uma solução universal para o problema.
Divulgação
Modelos vestem calcinha 'antiestupro', feito de malha resistente a tesouras
Modelos vestem calcinha 'antiestupro', feito de malha resistente a tesouras

Promotoria investiga contas ilegais de fiscais no exterior

MÁFIA DO ISS
Folha de são paulo
Ministério Público suspeita que dois auditores recebiam propina nos EUA
Luis Alexandre Cardoso de Magalhães e Amilcar José Cançado Lemos são suspeitos de cobrar propina para reduzir ISS
MARIO CESAR CARVALHODE SÃO PAULODois dos fiscais da Prefeitura de São Paulo investigados sob suspeita de receber propina para reduzir o valor do ISS (Imposto sobre Serviços) de imóveis novos têm contas ilegais nos Estados Unidos, segundo indícios reunidos pelo Ministério Público e pela Controladoria Geral do Município.
Os donos das contas são Luis Alexandre Cardoso de Magalhães e Amilcar José Cançado Lemos.
Os dois são apontados como os "playboys" da suposta quadrilha: Luis andava de Porsche e Amilcar é fanático por Harley Davidson.
Luis Alexandre é fiscal da secretaria das Finanças, foi preso no último dia 30, junto com outros três servidores, e liberado após fazer um acordo pelo qual vai colaborar com as investigações em troca de redução de pena.
Amilcar foi apontado por Luis Alexandre como o chefe inicial da máfia do ISS.
As contas são ilegais porque não constam da declaração de renda dos dois.
Na operação de busca e apreensão feita na casa de Luis Alexandre, a Promotoria encontrou papéis do Israel Discount Bank e dois cartões de visitas de pessoas que parecem ser os contatos dele com a instituição financeira.
Pelo cartão, Luis se relacionava com executivos da agência, localizada na Quinta Avenida, em Nova York.
Os investigadores da máfia do ISS também têm informações de que Luis Alexandre e Amilcar repassavam dinheiro um para o outro por meio dessas contas nos EUA. Os dois eram sócios em uma série de imóveis em São Paulo.
Uma das suspeitas é que as contas tenham sido usadas para receber propina de incorporadores sem deixar rastros no Brasil. Empresários podem ter feito pagamentos para a dupla a partir de contas que mantêm no exterior.
Outra hipótese é a remessa por meio de doleiros.
HISTÓRICO
O Israel Discount Bank tem um histórico de envolvimento com lavagem de dinheiro --operação que visa dar uma aparência legal a recursos obtidos de forma ilícita.
Foi o banco usado por doleiros brasileiros para mandar US$ 2,2 bilhões para os EUA no início da década. Foi também o banco pelo qual Duda Mendonça recebeu US$ 132 mil em 2003 da campanha de Lula à Presidência, segundo as provas da Polícia Federal sobre o mensalão.
O IDB, como é conhecido, já pagou cerca de US$ 40 milhões em acordos nos EUA por não adotar mecanismos contra a lavagem.

    No Facebook, fiscal investigado se diz contrário a indulto para presidiários

    folha de são paulo
    FOCO - MÁFIA DO ISS
    Amilcar José Cançado Lemos postou mensagem poucos dias antes de saber que era investigado
    DE SÃO PAULOAmilcar José Cançado Lemos acha que os presos não podem comemorar o Natal em família, como acontece no Brasil. No último dia 20 de outubro, antes de saber que estava sob investigação da Controladoria Geral do Município, ele postou a seguinte mensagem em sua página no Facebook:
    "Sou contra o indulto de Natal. Quem também é, compartilha", diz o texto sobre um desenho que mostra uma série de presos em fuga da cadeia, todos gargalhando, ao lado de uma imagem da Justiça desnorteada.
    Amilcar não chegou a ser preso, mas faz parte do grupo de fiscais suspeitos de cobrar propinas de incorporadores para reduzir o valor do ISS de imóveis recém construídos, essencial para obtenção do "Habite-se", autorização para o local ser ocupado.
    Quatro deles, acusados de acumular um patrimônio de R$ 80 milhões, foram presos no último dia 30 e depois liberados. A casa de Amilcar foi alvo de uma operação de busca e apreensão na última quarta-feira.
    PAIXÃO POR MOTOS
    A mensagem na rede social sobre os presos é um ponto fora da curva nos relatos de Amilcar. A maior parte das mensagens e fotos que ele coloca no Facebook é sobre as motos Harley Davidson.
    Ele é tão fanático pela motocicleta que foi à celebração dos 110 anos da marca, em Milwaukee (no meio-oeste dos Estados Unidos), no final de agosto deste ano.
    Lá, fez uma foto em que aparece sorrindo ao lado de um gigante cartaz com o número 110, sobre a mensagem "110 Years of Freedom" (110 anos de Liberdade).
    A página no Facebook de Amilcar mostra que ele fez uma travessia nos EUA com um grupo de amigos, entre agosto e setembro, sempre parando em bares de motoqueiros e se hospedando em hotéis que trazem o logotipo da Harley Davidson no nome.
    Saíram de Milwaukee, perto da fronteira com o Canadá, e acabaram na Flórida, no sul, onde ficaram hospedados no Casa Marina -Waldorf Astoria Resort.
    Também fizeram uma parada em Las Vegas para celebrar o aniversário de casamento da filha.
      OUTRO LADO
      Advogado diz ser impedido de comentar
      Luis Alexandre Cardoso de Magalhães fez acordo de delação premiada; Amilcar José Cançado Lemos não foi encontrado
      DE SÃO PAULO
      O advogado do fiscal Luis Alexandre Cardoso de Magalhães, Mario Ricca, afirma que não pode comentar qualquer questão sobre uma eventual conta nos Estados Unidos de seu cliente por causa do acordo de delação premiada que Magalhães assinou na última semana com o Ministério Público.
      Pelo acordo firmado com a Promotoria, Magalhães pode ter uma redução de pena de até um terço de uma eventual condenação.
      Isso poderia acontecer se as informações que fornecer aos promotores ajudarem a desvendar o suposto esquema montado em torno da Secretaria das Finanças para reduzir impostos de incorporadores em troca de suborno.
      SEM RESPOSTA
      A reportagem da Folha procurou Amilcar José Cançado Lemos por meio de uma advogada que aparece em outro processo que ele move, mas não obteve resposta.
      A reportagem também enviou perguntas ao auditor fiscal por meio de sua sua página no Facebook.
      Uma das perguntavas mencionava a conta bancária nos Estados Unidos. Amilcar não respondeu a nenhum dos questionamentos.
      A reportagem enviou um pedido de informação ao Israel Discount Bank, por meio do site da instituição. Também não obteve resposta até a conclusão desta edição.

      Nos embalos da máfia do ISS

      folha de são paulo
      MÁFIA DO ISS
      Fiscais suspeitos de desviar impostos apreciavam vida regada a champanhe, vinhos caros, charutos e garotas de programa em endereços badalados
      ROBERTO DE OLIVEIRADE SÃO PAULOImponente prédio de estrutura de vidro, pé-direito duplo e mezanino, a Casa Mathilde destoa dos vizinhos na praça Antônio Prado, no centro paulistano. Seus 1.200 m2 vivem apinhados de engravatados do poder público. Era ali, segundo servidores, o "point" frequentado pela "intelligentzia dos reis do ISS".
      A tradicional doçaria portuguesa está a 70 passos, sem desviar dos andarilhos e moradores de rua que trafegam por lá, de uma das entradas do edifício Martinelli, onde funciona a Secretaria de Habitação, entre outras, e a duas quadras da sede da prefeitura e da Secretaria de Finanças, epicentro do escândalo.
      Entre um "mocaccino" (R$ 8) e um "travesseiro de Sintra" (R$ 5), só há um assunto na boca de Mathilde: a máfia do ISS, grupo de auditores e fiscais que fraudava o recolhimento do Imposto sobre Serviços, segundo investigações da Controladoria- Geral do Município e do Ministério Público.
      Em meio à trovoada de denúncias, a discrição anda pautando as conversinhas no café, mas funcionários se lembram muito bem de uma "loira bonitona, corpão", que carregava um celular vestido com uma capa de oncinha.
      Era Vanessa Alcântara, 27, a ex de Luís Alexandre Cardoso de Magalhães, 41, fiscal que, envolvido no esquema, aceitou o benefício da delação premiada.
      Na doçaria, segundo servidores, a loira não costumava ser flagrada desfilando ao lado de Magalhães, mas, depois de deixar a Promotoria, na última segunda, ela ganhou os holofotes em todo o país. Na ocasião, ela vestia uma blusa estampada com imagens de tigres e, é claro, de oncinhas.
      Sob a condição de anonimato, outros funcionários públicos municipais descreveram Magalhães como "garanhão" e "pityboy quarentão".
      Ele e os outros suspeitos de integrar a máfia do ISS circulavam por aquelas bandas da rua São Bento, conforme atestam funcionários, ostentando "ar de superioridade", como se nada temessem.
      O ex de Vanessa adora charutos --cubanos, bem entendido. Era cliente assíduo da Cigar & Book, loja discreta que, quase espremida entre prédios da Vila Nova Conceição, na zona sul, também vende vinhos e presentes.
      Para entrar lá, é preciso tocar a campainha e aguardar o vendedor abrir a porta. A área reservada aos charutos fica no fundo, à esquerda.
      Acondicionados em caixas de madeira com 25 unidades, os cubanos confeccionados pela Habanos S.A., da marca Cohiba, estão entre os favoritos do auditor. Preço? R$ 1.100.
      Em um dos cartões-postais da gastronomia, o restaurante Figueira Rubaiyat, o casal gostava de se sentar no amplo salão principal, debaixo da centenária figueira.
      O presunto ibérico pata negra Bellota era obrigatório na abertura dos banquetes, seguido pelo "queen beef", prato preparado com carne da fazenda própria do restaurante. A entrada saía por R$ 109, e o principal, por R$ 248.
      Para acompanhar, Charmes-Chambertin Grand Cru 10, vinho francês de R$ 833.
      Outro funcionário lembra que o "sarado do Porsche" tomou ao menos uma vez o vinho magnum Vega Sicilia Unico. O "clássico dos clássicos" espanhóis sai pela "bagatela" de R$ 4.977, "dinheiro de pinga" para quem tem uma fortuna avaliada em R$ 18 milhões, segundo a controladoria.
      "A gente não está aqui para pedir cartão de visita. Só de crédito ou de débito. Mas ele sempre pagava com dinheiro vivo", conta o garçom.
      O foco do desvio na arrecadação eram prédios residenciais e comerciais, com custo de construção superior a R$ 50 milhões, segundo as investigações. A Promotoria estima que as fraudes tenham causado prejuízo R$ 500 milhões em ISS não recolhido.
      LAGOSTA E STRIPTEASE
      Os fiscais também costumavam ir, em Pinheiros, ao Bomboa, clube frequentado por garotas de programa que cobra R$ 230 a entrada.
      O valor pode ser usado para consumir bebida ou comida ali, onde uma caixinha de água de coco sai por R$ 30.
      O que eles apreciavam mesmo, porém, era o uísque Johnnie Walker Blue Label e o champanhe Dom Pérignon (cada garrafa custa R$ 2.100).
      As meninas não sabem de coisa alguma, nunca viram nada e nem sequer usam o nome verdadeiro. "Fernanda" é o "nome de guerra" de uma morena de 1,75 m, lábios carnudos e vestido tão grudado ao corpo que parecia confundir-se com a sua pele.
      Ela diz que os fiscais pagavam R$ 200 pelo "striptease", que rolava ali mesmo, sobre a mesa. Tudo em "cash".
      Qualquer uma das cerca de 200 meninas que ali trabalham cobra R$ 30 por um simples selinho. Beijo de verdade? Sobe para R$ 50. Já o programa de 60 minutos oscila entre R$ 400 e R$ 700.
      Com a namorada atual, a personal Nágila Coelho, 38, Magalhães escolhia lugares em um dos três pisos do restaurante cearense Coco Bambu, no Itaim.
      "Já eu gostava de coisas mais sofisticadas", alfineta Vanessa, a ex-companheira. "Como a Enoteca Fasano, em Campos [do Jordão]."
      Magalhães e Nágila "esbanjavam", segundo uma frequentadora da casa. Ela conta que eles pediam a chamada "rede do pescador", um prato com lagosta, camarão, mexilhões, peixe e lula gratinados com arroz de açafrão, top do menu, por R$ 239,90.
      Na hora de pegar o Porsche, avaliado em R$ 400 mil e hoje apreendido por determinação da Justiça, Magalhães incorporava o "mão de vaca". Chegou a recusar-se a dar gorjeta, como lembra um manobrista que pede anonimato e recebe salário líquido inferior a R$ 1.000.

        Antonio Prata

        folha de são paulo
        Abaixo, a ironia
        Volto ao tema para que não haja riscos de reforçar ideias que tentei ridicularizar
        Domingo passado, escrevi aqui uma crônica em que satirizava o discurso mais raivoso da direita brasileira. Muita gente não entendeu: alguns se chocaram pensando que eu de fato acreditava que o problema do país era a suposta supremacia de negros, homossexuais, feministas, índios e o "poderosíssimo lobby dos antropólogos"; outros me chocaram, cumprimentando-me pela coragem (!) de apontar os verdadeiros culpados por nosso atraso. Volto ao tema para que não haja risco algum de eu estar reforçando as ideias nefastas que tentei ridicularizar.
        Uma sátira é uma caricatura. Escolhemos certos traços de uma obra e produzimos outra, exagerando tais características. Narizes aparecem desproporcionalmente grandes, orelhas podem ser maiores que a cabeça, um bigode talvez chegue até o chão. É como se puséssemos uma lupa nos defeitos do original, a fim de expô-los.
        Na crônica de domingo, achei que havia carregado o bastante nas tintas retrógradas para que a sátira ficasse evidente. Descrevi um quadro que, pensava eu, só poderia ser pintado por um paranoico delirante. No país bisonho do meu texto, José Maria Marin e o pastor Marco Feliciano eram de esquerda, os brancos estavam escanteados por negros, que ocupavam a direção das empresas, as mesas do Fasano e os assentos de primeira classe dos aviões. O Brasil (segundo maior exportador de soja do mundo) não era, na crônica, uma potência agrícola, por culpa das reservas indígenas. No fim, me levantava contra "as bichas" e "o crioléu". O texto não estava suficientemente descolado da realidade para que todos percebessem a impossibilidade de ser literal?
        Talvez, infelizmente, não: fui menos grosseiro, violento e delirante na sátira do que muitos têm sido a sério. Poucos dias antes da crônica ser publicada, um vereador afirmou em discurso que os mendigos deveriam virar "ração pra peixe". Com esse pano de fundo, ser "apenas" racista, machista, homo e demofóbico pode não soar absurdo. Quem se chocou achou o personagem equivocado, mas plausível. Quem me cumprimentou achou minha "análise" perfeitamente coerente. Ora, só dá para concordar com o texto se você acreditar que as cotas criaram uma elite negra e oprimiram os brancos, acabando com a "meritocracia que reinava por estes costados desde a chegada de Cabral", se achar que os 20 anos de ditadura foram "20 anos de paz" e que é legítimo e bem-vindo levantar-se contra "as bichas" e "o crioléu".
        Em "Hanna e Suas Irmãs", do Woody Allen, Lee, uma das irmãs, é casada com um intelectual rabugento chamado Frederick. Lá pelas tantas, o personagem assiste a um documentário sobre Auschwitz, em que o narrador indaga "como isso foi possível?". Frederick bufa e resmunga: "A pergunta não é essa! Do jeito que as pessoas são, a pergunta é: como não acontece mais vezes?". Esta semana, diante dos e-mails elogiosos que recebi, a fala me voltou algumas vezes à memória: "Como não acontece mais vezes?". Vontade é o que não falta, por aí --e, infelizmente, não estou sendo irônico.

          O assunto é A Ciência e os Animais

          folha de são paulo
          SILVIA ORTIZ E JOÃO ANTONIO HENRIQUES
          O ASSUNTO É A CIÊNCIA E OS ANIMAIS
          A ciência em perigo
          É duro ouvir pessoas sem conhecimento científico opinando e, com base nisso, sermos acusados de maus-tratos que nunca existiram
          As últimas três semanas legaram uma grave lição ao país: a de que a pesquisa científica está sujeita aos humores de grupos que, caso entendam que assim devem agir, invadem e depredam laboratórios sob os olhares complacentes do poder público.
          Não é possível enxergar de outra maneira a cadeia de eventos que levou ao encerramento das atividades do Instituto Royal em São Roque, única instituição brasileira preparada para desenvolver uma atividade-chave para a sociedade, a pesquisa de segurança de medicamentos.
          É o caso clássico em que a vítima se torna réu. Por outro lado, seu agressor, apoiado em acusações vazias, posa de herói. É como se acusassem você, leitor, de maus-tratos com seus animais domésticos, invadissem e depredassem sua casa e os levassem embora, sem nenhuma prova concreta ou amparo legal. Como você se sentiria a respeito?
          Todos os responsáveis na esfera pública --do prefeito de São Roque (SP) ao ministro da Ciência e Tecnologia, passando pelo coordenador do Conselho Nacional de Experimentação Animal-- atestaram a lisura e a correção do Royal, bem como a importância do nosso trabalho. Todas as sociedades científicas relevantes manifestaram seu apoio.
          Enquanto isso, assistimos a um desfile de políticos e futuros candidatos em busca de fama, sem se preocupar com a verdade. Também pudemos observar autoridades que têm a obrigação de proteger a sociedade assistirem placidamente à atuação criminosa de um grupo de indivíduos, sem esboçar reação.
          Se pensarmos friamente, podemos encontrar as raízes desse mal em nossos próprios corações. Quem aceita passivamente que vândalos agridam um coronel da polícia, por exemplo, também não vê nada de errado em uma ação como a que foi perpetrada contra o Royal. O distanciamento acaba gerando aceitação. Novamente, cabe uma pergunta ao leitor: e se isso ocorresse na empresa em que você trabalha?
          Nossa equipe era formada por 85 profissionais que investiram anos em estudo e pesquisa. São biólogos, biomédicos e médicos veterinários cuja capacidade é resultado de seus esforços pessoais.
          Para todos nós, é muito duro ouvir pessoas sem um mínimo de conhecimento científico e capacidade técnica opinando sobre pesquisas e teses de mestrado que um leigo não conseguiria entender completamente e, com base nisso, sermos acusados de maus-tratos que nunca existiram.
          Além disso, precisamos conviver com nossos dados pessoais sendo divulgados na internet, além de ameaças, públicas e anônimas, à nossa integridade física.
          Ainda pior do que isso, porém, é saber que todos esses 85 profissionais estão agora na rua e que não haverá nenhum grupo de "ativistas" para defender suas famílias.
          A dúvida que ronda a comunidade científica é sobre aonde isso vai parar. Recentemente, um reconhecido instituto brasileiro iniciou testes em macacos para uma vacina anti-HIV, que pode salvar milhões de vidas ao redor do mundo. Haverá uma invasão à entidade?
          Em algum momento, um novo laboratório deverá ser criado ou certificado para dar conta da pesquisa de segurança de medicamentos no Brasil --e certamente utilizará animais. É possível fazer isso sem riscos?
          São dúvidas incômodas que demonstram o completo absurdo da situação. A única certeza por enquanto é que hoje, no Brasil, é preciso ter coragem para ser cientista.
          Aberto, o Royal era alvo de invasões e palco de interesses políticos. Fechado, é um dos muitos sinais aparentes de que algo, definitivamente, não vai bem neste país.
          FÁBIO OLIVEIRA, DANIEL LOURENÇO E CARLOS NACONECY
          O ASSUNTO É A CIÊNCIA E OS ANIMAIS
          A ética animal
          Alfaces realmente não choram. Humanos e porcos, sim. Tirar uma cenoura da terra e sangrar uma galinha não são a mesma coisa
          Eventualmente, quando lemos um artigo, podemos ficar em dúvida se o autor realmente acredita naquilo que escreveu ou se é despreocupadamente panfletário. No segundo caso, podemos concluir que consiste em pilhéria, afronta desrespeitosa que causa polêmica, mas não pela razão devida.
          Em "A ética das baratas" ("Ilustrada, 16/9), o senhor Luiz Felipe Pondé se refere à corrente filosófica denominada ética animal como "seita verde", "mania adolescente".
          Qualificou aqueles que a defendem como "pragas", "ridículos", "adoradores de barata", "hippies velhos que fazem bijuteria vagabunda em praças vazias" e "pessoas com problemas psicológicos". Nunca tínhamos lido nada assim. Objeções sim, claro, mas nada nesses termos.
          Segundo Pondé, Peter Singer, da Universidade Princeton, Tom Regan, da Universidade da Carolina do Norte, Laurence Tribe, de Harvard, Cass Sunstein, da Universidade de Chicago, Andrew Linzey, de Oxford, além de tantos outros, inclusive dos autores deste arrazoado, são "ridículos", "hippies velhos", "pragas"...
          Singer, ao contrário do afirmado por Pondé, nunca sustentou, sem qualquer mais, que "bicho é gente". O que Singer afirma é que pelo menos alguns animais são suficientemente semelhantes a nós a ponto de merecer uma consideração moral também semelhante, adotando o critério da senciência ou consciência, com ênfase na capacidade de sofrer.
          Pondé, que não leu e/ou entendeu Singer, faz, então, uma leitura da natureza para dizer que ela "mata sem pena fracos pobres e oprimidos". O que isso tem que ver? Concluímos que devemos agir assim com animais e seres humanos? Embora a natureza não possa ser reduzida a isso, qual moralidade se pode extrair de fatos naturais?
          Ora, milhões de seres humanos são fracos, pobres e oprimidos. Os juízos de valor sobre a correção ou o erro de determinadas condutas são pertinentes somente aos agentes morais. Por isso, carece de qualquer sentido avaliar eticamente a conduta do leão de atacar a zebra. Essa interdição, porém, não nos impede de analisar a nossa conduta diante de outros humanos e animais.
          Pondé pergunta: "Como assim não se deve matar nenhuma forma de vida'?" Quem proclama isso, senhor Pondé? Certamente não é a ética animal. Nem a ética da vida. O que se afirma é que não se deve matar sempre que se possa evitar isso. O que significa que não é irrelevante matar uma barata ou que se está autorizado a matar uma vaca para satisfazer o paladar.
          A ciência nos informa que alfaces não sofrem --este é um estado atrelado a fisiologia que elas não têm. Alfaces realmente não choram, senhor Pondé. Humanos e porcos, sim. Tirar uma cenoura da terra e sangrar uma galinha não são a mesma coisa. Podar um galho de árvore ou cortar a pata de um cão também não. É o senso comum mais elementar.
          Ridicularizar é recurso para desqualificar: como muitas vezes feito, desprestigia a serenidade da argumentação acadêmica para angariar os risos da plateia por meio de artifícios sofistas. Todavia, como alertou santo Agostinho, uma coisa é rir de um problema, outra é resolvê-lo. E nós, senhor Pondé, não estamos sorrindo.

          Helio Schwartsman

          folha de são paulo
          Normal ou patológico?
          SÃO PAULO - Vai ganhando corpo a corrente dos profissionais de saúde mental que, como o americano Dale Archer, denuncia a patologização de comportamentos normais. Pressões da indústria de drogas seriam um dos motivos para essa verdadeira epidemia de diagnósticos.
          É fato que o aumento das doenças mentais ocorre num ritmo suspeito e que isso interessa aos laboratórios. Penso, porém, que ao menos parte do fenômeno está relacionado a uma questão de filosofia da medicina que é pouco explicitada. Quando se torna legítimo atuar? Na visão mais clássica, o médico só pode intervir para restaurar a saúde. A prescrição de drogas para qualquer outro fim que não curar uma doença bem definida seria antiética.
          A questão é que, sem muito alarde, esse paradigma está mudando. Hoje, as pessoas procuram médicos não só para recuperar a saúde mas também para melhorar sua performance numa área ou apenas para sentir-se melhor. Não vejo muito como condenar em termos morais essa ampliação do escopo da medicina. É evidente, porém, que ela cobra seu preço. A patologização de estilos de ser que poucas décadas atrás seriam classificados como meras variações de personalidade é parte da fatura.
          Paradoxalmente, a supermedicalização convive com seu reverso, que é o subdiagnóstico, já que parcela significativa da população brasileira não tem acesso ao sistema de saúde e fica sem tratamento. E, se queremos atender a todos, que me perdoem os psicoterapeutas, não há caminho que não o dos remédios.
          Imaginemos, num cálculo conservador, que 10% da população sofre de algum transtorno e poderia beneficiar-se de tratamento. Se fôssemos ministrar duas horas de terapia por semana a 20 milhões de pacientes, precisaríamos de um exército de 1,1 milhão de profissionais executando jornadas fordistas (sem intervalo) de 35 horas semanais. É muita areia para o caminhãozinho do SUS.