terça-feira, 12 de novembro de 2013

João Pereira Coutinho

folha de são paulo
Imaginando Sísifo feliz
Quem, exceto um ator em palco, consegue viver a vida em permanente intensidade?
Passaram cem anos sobre o nascimento de Albert Camus (1913""1960). Festejos pálidos. Injusto. Quando tivemos o centenário de Sartre em 2005, um filósofo e escritor inferior a Camus, as trombetas soaram com outro vigor.
Camus merecia mais atenção. E, na ausência de festejos públicos, optei pelos privados. Um pouco de nostalgia: já não lia Camus desde a adolescência. Encontrei surpresas gratas. Os romances continuam soberbos, ainda melhores do que na minha memória --e hoje, a caminho dos 40, é "A Queda" (1956), e não tanto "O Estrangeiro" (1942), que verdadeiramente me joga no tapete.
Foram precisas algumas experiências de vida para compreender, tal como afirma o sinistro narrador de "A Queda", que a busca de um método --um sistema, uma ideologia, uma cartilha-- é sempre o expediente dos homens sem caráter. Corrijo. Dos homens que não desenvolveram um caráter. "Touché, Albert!"
Mas depois vieram as desilusões. Desilusões, não. Discórdias. Brandas, perdoáveis, quase melancólicas. Quando li pela primeira vez o seu "Mito de Sísifo" (1942), esse ensaio torrencial sobre a nossa condição absurda perante "o silêncio do mundo", fiz de Camus o meu santo laico e do existencialismo, precisamente, uma forma de humanismo.
A argumentação de Camus era poderosa e nas primeiras linhas o autor avisava o auditório que pretendia enfrentar sem subterfúgios o mais relevante dos temas filosóficos: o suicídio.
Se a vida não tem sentido e se recusamos o "salto de fé" para as consolações celestiais, o que nos resta, afinal?
Camus responde: resta-nos não negar a nossa condição absurda e, mais ainda, assumir essa condição com "consciência" e "revolta". Não é por acaso que Camus dedica as melhores páginas do seu "Mito de Sísifo" ao trabalho de um ator em palco. O ator, exemplo supremo do "homem absurdo", vive, ama e eventualmente morre intensamente --tudo no espaço de algumas horas e sempre com radical autenticidade.
A vida que Camus recomenda é, na falta de melhor palavra, uma vida de "performance" permanente. Donde, a conclusão: pode haver uma dissonância insuperável entre o que a mente deseja (sentido) e um mundo que desilude (pelo absurdo). Mas esse fato não autoriza o suicídio. Parafraseando Nietzsche, a ausência de uma vida eterna convida os homens a uma vivacidade eterna.
Aos 18 ou 19 anos, o programa era tentador. Mas, honestamente, quem, exceto um ator em palco, consegue viver a vida em permanente intensidade? A atitude de Camus, longe de aceitar o absurdo, parece-me agora uma fuga ao absurdo. Pior ainda: uma fuga desesperada ao exato desespero que ele procura resolver.
Mas não só. É a própria ideia de "viver o absurdo" que me parece adolescente--no autor e na criança que eu era. Anos depois de ler o ensaio de Camus, encontrei um luminoso texto de Richard Taylor no seu "Good and Evil" no qual o filósofo voltava ao mito de Sísifo, esse mortal condenado pelos deuses a rolar eternamente a pedra montanha acima, montanha abaixo.
Na versão de Camus, podemos imaginar Sísifo feliz se ele abraça esse destino com desafio e orgulho, mesmo sabendo da futilidade do exercício.
Taylor argumenta, e argumenta bem, que não basta rolar a pedra para vencer o absurdo. É preciso encontrar um sentido para isso. Que o mesmo é dizer: rolar a pedra para algo, para alguém --ou até para nós próprios, se isso for importante ou significativo para as nossas vidas.
No limite, não importa até se a pedra é grande ou pequena. Porque não é o tamanho dela ou o esforço homérico de Sísifo para a empurrar que concede dimensão trágica à condenação.
Se a pedra fosse minúscula, e se ele subisse e descesse a montanha com ela no bolso, a premissa seria a mesma: a única forma de o imaginarmos feliz seria se ele usasse essa pedra para erigir um templo; ou construir uma habitação para os filhos; ou apenas para exercitar o corpo e o gosto por passeatas com pedras minúsculas.
Hoje, a visão modesta de Taylor parece-me mais real do que a "revolta" literária (e esteticamente belíssima) de Camus. Não porque nego o absurdo da vida e o esquecimento que nos espera a todos. Não nego.
Mas porque só consigo imaginar Sísifo feliz se, no cume da montanha, existir algo ou alguém à espera dele e da sua pedra.

Millôr Fernandes será o homenageado da Flip 2014

folha de são paulo
Pela primeira vez, festa literária celebrará autor que chegou a participar do evento
DE SÃO PAULOO desenhista, dramaturgo, escritor, tradutor e jornalista Millôr Fernandes (1923-2012) será o autor homenageado da Flip 2014, que acontecerá de 30 de julho a 3 de agosto.
É a primeira vez que a Festa Literária Internacional de Paraty tem um homenageado que chegou a participar do evento --Millôr esteve na primeira edição, em 2003.
Paulo Werneck, curador da Flip, argumenta que o fato de ser um autor contemporâneo, que não tem toda obra editada, pesou na decisão.
"Não há uma produção pronta para desaguar na Flip. Com a homenagem, vamos ajudar a destacar aspectos menos conhecidos do público, como o de Millôr tradutor de Shakespeare", diz, destacando ainda o bom humor presente na obra do autor.
A abrangência de gêneros trabalhada por Millôr também enriquecerá o debate, na avaliação do curador. "Essa mistura de áreas, do jornalismo à dramaturgia, do cartunismo à tradução, tem tudo a ver com a Flip", diz.
A escolha foi feita apesar de forte campanha na internet, que contou com mais de mil assinaturas, pelo nome de Lima Barreto (1881-1922) como homenageado.
"Foi um movimento interessante. Nunca tinha visto a Flip motivar uma ação como essa, e espero ainda ser curador de uma Flip que homenageie o Lima", diz Werneck.

    José Simão

    folha de são paulo
    Eike! O Rei do XIS-Salada!
    O Pato desempatou! Pra desespero do Tite: 'Como você me faz uma coisa dessa, me tirar mais um empate?'
    Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! O Brasil tá exportando piada pronta! Dallas: "Mulher dorme no volante e invade loja de camas e colchões". Atlanta: "Exposição sobre Titanic' cancelada. Motivo: inundação da sala!". Rarará!
    E um amigo meu ligou para uma clínica de impotência sexual e a telefonista: "Alô, quem FALHA?". "EU". Rarará!
    E o Eike? O Eike abre uma nova empresa do seu império XIS: Xis-Salada! Eike vira o Rei do Xis-Salada! Ele vai abrir um trailer, na Barra, de xis-salada!
    E a derrocada do Eike começou quando ele arrematou num leilão o terno de posse do Lula! Arrematar terno da uruca! Com a inhaca alheia. Com a inhaca do Lula. Rarará. Eikex Fudidex da Calotex arrematex o ternex do Lulex e dá uma urucax!
    E tá dando uma Lulite Aguda em São Paulo: o Kassab não sabia, o Alckmin não sabia, o Serra não sabia. E eu sabia que eles sabiam. É tanta corrupção que São Paulo vai mudar de nome pra CorrupÇão Paulo! São Paulo com "c cedilha"!
    E essa: "Mensaleiros se preparam pra cadeia e se informam sobre presídios". Eu informo, presídio vai virar flat! Com apart-celas: sem grade porque grade é cafona, banho de sol diário em Trancoso, na Bahia, e quentinha do Alex Atala delivery! E hidratante da Biotherm. Porque preso com pele seca é uma desgraça!
    E o Pato? O Pato desempatou! Pra desespero do Tite: "Como você me faz uma coisa dessa, me tirar mais um empate?". O Pato desempatou e jogou o Fluminense pra zona de rebaixamento!
    Mas diz que mais humilhante do que ir pra zona de rebaixamento é tomar um gol de pênalti do Pato. Acaba com o currículo de qualquer goleiro! Goleiro desmoralizado!
    E o Cruzeiro? Na terra do real, Cruzeiro vira campeão? Cruzeiro é pré-Sarney! Tem que atualizar. Real não dá, porque não ganha, fica devendo. Muda pra dólar. Dólar Futebol Clube!
    E pode perguntar pra qualquer mineiro: "Você prefere Cruzeiro campeão ou um queijo?". "Um queijo". Rarará. É mole? É mole, mas sobe!
    Os Predestinados! Mais três para a minha série Os Predestinados! Direto de Copacabana, a veterinária: Lorena Guimarães CANINA! E direto da Paraíba, o economista: Celso Pinto Mangueira. Parabéns pelos dois! Já gostei dos dois, como disse a minha amiga. Rarará.
    Nóis sofre, mas nóis goza!
    Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

      Janio de Freitas

      folha de são paulo
      Picadinho à brasileira
      Lula ilustrou bem o que é o PT atual, ao pedir que o outrora partido da juventude saia à caça de jovens
      O miserê da política brasileira exposto em um só acontecimento, a eleição de novos/velhos dirigentes do PT. Um ato que mostrou a mesma coisa por diferentes maneiras: o PT, que foi a organização mais parecida com um partido programático no pós-ditadura, não tem mais absolutamente nada a dizer. O que está evidenciado tanto na tranquila continuidade do imobilismo, como na ausência de ao menos uma palavrinha nova e interessante até entre os derrotados, que deveriam ser contestadores.
      Lula ilustrou bem o que é o PT atual, ao pedir que o outrora partido da juventude saia à caça de jovens. Com que ideias, com que ação política que não seja a mera prestação de serviço ao governo? Silêncio.
      Como se diz no futebol, a eleição no PT foi só para cumprir tabela.
      2) A crítica de Dilma Rousseff ao Tribunal de Contas da União não mereceu maior interesse. Mas se justifica, e não por pouco. A paralisação de obras, sete dessa vez, é contumaz no TCU, quando encontrados indícios ou evidências de irregularidades. Mas não é preciso paralisar obras, por tempo indeterminado e em geral longo, para investigar, corrigir e eventualmente punir, por exemplo, irregularidades financeiras.
      Foi o próprio autor do relatório aprovado para as novas suspensões, Walton Rodrigues, a dizer que nesses casos "predominam achados de sobrepreço, restrição ao caráter competitivo da licitação e atrasos injustificados nas obras". A solução de sobrepreço e de atraso não impede a continuidade de obra, cuja sustação tem alto custo para os cofres públicos.
      E "restrição ao caráter competitivo da licitação" é o que, até agora, se vê o TCU impor ao leilão dos aeroportos previsto para o dia 22.
      3) O problema de José Serra está longe de ser Aécio Neves. É, sim, a disposição de Fernando Henrique e Geraldo Alckmin de impedir sua candidatura à Presidência. O governador, por conveniência pessoal e de sua corrente no partido; o ex-presidente, por velhas convicções e observação atual.
      O problema de Fernando Henrique e Geraldo Alckmin está longe de ser José Serra. É, sim, a inconvincente determinação de Aécio Neves de levar adiante sua candidatura. Daí a insistência de Fernando Henrique em que Aécio assuma a posição de candidato do PSDB já em dezembro, no máximo, e não em março como combinado com Serra.
      Fernando Henrique não está equivocado quanto à aparente pré-candidatura de Aécio Neves.
      4) Ao menos para consideração futura, pelo Supremo ou pelo Congresso, faz sentido o argumento agora apresentado por alguns advogados: dizem eles que a exigência de quatro votos favoráveis, para que certos réus do mensalão ganhem direito a novo recurso, não se justifica se o tribunal fez a condenação quando desfalcado de um ou de dois ministros.
      Diz a Constituição, art. 101, que "o Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros". Se não tem onze, o tribunal ainda "compõe-se" de acordo com a Constituição?
      Quatro em onze são uma proporção; em dez ou nove são outra, mais desfavorável ao réu.
      Nisso está presente, também, a falta de prazo para indicação de novos ministros pela Presidência da República. Dilma Rousseff foi de lentidão injustificável, que impôs muito atraso a numerosas causas.

      segunda-feira, 11 de novembro de 2013

      Desamericanizar o mundo - Noam Chomsky

      Desamericanizar o mundo

      Noam Chomsky

      Noam Chomsky



      • 19.jun.2013 - Shawn Thew/Efe
        Simpatizantes do movimento direitista norte-americano Tea Party protestam em frente ao Capitólio
        Simpatizantes do movimento direitista norte-americano Tea Party protestam em frente ao Capitólio
      No último episódio da farsa de Washington que surpreendeu um mundo já confuso, um comentarista chinês escreveu que, se os Estados Unidos não podem ser um membro responsável do sistema mundial, talvez o mundo deva se "desamericanizar" --e se separar do "rogue state" [algo como "Estado fora da lei"] que é a potência militar reinante, mas que está perdendo credibilidade em outros domínios.
      A fonte imediata do colapso de Washington foi um deslocamento brusco da classe política para a direita. No passado, os EUA às vezes eram descritos com ironia --mas não de forma imprecisa-- como um Estado de um partido só: o partido dos negócios, com duas facções chamadas democratas e republicanos.
      Isso não é mais verdade. Os EUA ainda são um Estado de um partido único, o partido dos negócios. Mas só há uma facção: os republicanos moderados, agora chamados de novos democratas (como a coalizão do Congresso dos EUA se autodenomina).
      Ainda existe uma organização republicana, mas há muito tempo abandonou qualquer pretensão de ser um partido parlamentar normal. O comentarista conservador Norman Ornstein, do American Enterprise Institute, descreve os republicanos de hoje como "uma insurgência radical ideologicamente extremada, que desdenha fatos e acordos e rejeita a legitimidade da oposição política": um grave perigo para a sociedade.
      O partido está a serviço dos muito ricos e do setor corporativo. Uma vez que votos não podem ser obtidos com essa plataforma, o partido foi obrigado a mobilizar setores da sociedade que são extremistas segundo os padrões mundiais. A loucura é a nova norma entre os membros do Tea Party e entre uma série de outras pessoas fora das linhas convencionais.
      O establishment republicano e seus patrocinadores empresariais esperavam usar esses setores como um bate-estacas no ataque neoliberal contra a população --para privatizar, desregular e limitar o governo, mantendo apenas aquelas partes que servem à riqueza e ao poder, como o exército.
      O establishment republicano teve algum sucesso, mas agora descobriu que não pode mais controlar a sua base, para seu espanto. O impacto sobre a sociedade norte-americana, portanto, torna-se ainda mais severo. Um exemplo disso: a reação virulenta contra o Affordable Care Act, a lei de reforma da saúde, e a quase suspensão dos serviços do governo.
      A observação do comentarista chinês não é totalmente nova. Em 1999, o analista político Samuel P. Huntington advertiu que, para a maior parte do mundo, os EUA estavam "se tornando um rogue state" e eram vistos como "a grande ameaça externa às suas sociedades".
      Poucos meses depois do início do mandato de Bush, Robert Jervis, presidente da Associação Americana de Ciência Política, advertiu que, "aos olhos de grande parte do mundo, de fato, o Estado mais criminoso é hoje os Estados Unidos". Tanto Huntington quanto Jervis alertaram que esse rumo era insensato. As consequências para os EUA poderiam ser prejudiciais.
      Na última edição da Foreing Affairs, a principal revista do establishment, David Kaye analisou um dos aspectos do afastamento de Washington do resto do mundo: a rejeição de tratados multilaterais "como se fosse um esporte".
      Ele explica que alguns tratados são recusados de imediato, como quando o Senado dos EUA "votou contra a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em 2012 e o Tratado de Proibição de Testes Nucleares (CTBT) em 1999".
      Outros são rejeitados por inação, incluindo "temas como trabalho, direitos econômicos e culturais, espécies ameaçadas de extinção, poluição, conflitos armados, manutenção da paz, armas nucleares, leis relativas ao mar e discriminação contra as mulheres".
      A rejeição das obrigações internacionais "cresceu tão arraigada", escreve Kaye, "que governos estrangeiros já não esperam a ratificação de Washington ou a sua participação plena nas instituições criadas pelos tratados. O mundo está seguindo adiante; leis são feitas em outras partes, com pouco (ou nenhum) envolvimento norte-americano".
      Embora não seja nova, a prática de fato se tornou mais enraizada nos últimos anos, juntamente com a aceitação silenciosa da doutrina de que os EUA têm todo o direito de agir como um rogue state.
      Para dar um exemplo típico, há algumas semanas as forças de operações especiais dos Estados Unidos prenderam um suspeito, Abu Anas al- Libi, nas ruas da capital da Líbia, Trípoli, e levaram-no para um navio da Marinha para ser interrogado sem advogado --nem direitos. O secretário de Estado dos EUA, John Kerry, informou à imprensa que as ações são legais porque estão de acordo com a lei norte-americana e não fez qualquer comentário específico.
      Princípios só são válidos quando são universais. As reações seriam um pouco diferente, é desnecessário dizer, se as forças especiais cubanas sequestrassem o famoso terrorista Luis Posada Carriles em Miami e o levassem a Cuba para ser interrogado e julgado de acordo com a lei cubana.
      Tais ações são próprias dos rogue states. Mais precisamente, do Estado fora da lei que é poderoso o bastante para agir com impunidade: nos últimos anos, para continuar com a agressão à vontade, para aterrorizar grandes regiões do mundo com ataques de aviões não tripulados e muito mais.
      E também para desafiar o mundo de outras maneiras, persistindo, por exemplo, em seu embargo contra Cuba apesar da longa oposição do mundo inteiro, exceto de Israel, que votou com seu protetor quando a ONU condenou novamente o embargo (188-2), em outubro.
      Não importa o que o mundo pense, as ações dos Estados Unidos são legítimas porque dizemos isso. O princípio foi enunciado pelo eminente estadista Dean Acheson, em 1962, quando instruiu à Sociedade Americana de Direito Internacional que não há nenhum problema jurídico quando os Estados Unidos respondem a uma contestação de seu "poder, posição e prestígio".
      Cuba cometeu esse crime quando revidou uma invasão dos EUA e em seguida teve a audácia de sobreviver a um ataque planejado para levar "os terrores da terra" a Cuba, nas palavras do conselheiro de Kennedy e historiador Arthur Schlesinger.
      Quando os EUA conquistaram a independência, procuraram se juntar à comunidade internacional da época. É por isso que a Declaração de Independência começa expressando a preocupação com o "respeito apropriado às opiniões da humanidade".
      Um elemento crucial foi sua evolução de uma confederação desordenada para um sistema unificado de "nação digna de tratados", nas palavras do historiador diplomático Eliga H. Gould, que observou as convenções da ordem europeia. Ao atingir esse status, a nova nação também ganhou o direito de agir como desejava internamente.
      Pôde assim proceder em se livrar da população indígena e expandir a escravidão, uma instituição tão "odiosa" que não podia ser tolerada na Inglaterra, como o distinto jurista William Murray, conde de Mansfield, decretou, em 1772. A evolução da lei inglesa foi um dos fatores que impeliram a sociedade escravagista a fugir de seu alcance.
      Tornar-se uma nação digna de tratados conferia, assim, múltiplas vantagens: o reconhecimento externo e a liberdade de atuar sem interferências internamente. O poder hegemônico oferece a oportunidade de se tornar um rogue state, um Estado fora da lei, desafiando livremente as leis e normas internacionais, enquanto enfrenta uma resistência cada vez maior no exterior e contribui para seu próprio declínio através de ações autodestrutivas.
      Tradutor: Eloise De Vylder

      NOAM CHOMSKY

      Noam Chomsky é um dos mais importantes linguistas do século 20 e escreve sobre questões internacionais.

      Prenúncio do massacre nazista, 'Noite dos Cristais' foi ignorada pelo mundo

      Klaus Wiegrefe
      Nos dias em torno de 9 de novembro de 1938, os nazistas cometeram o pior massacre da Alemanha desde a Idade Média. Para marcar o 75º aniversário do acontecimento, uma exposição em Berlim reúne relatos até então desconhecidos de diplomatas estrangeiros, revelando como esses eventos chocantes não causaram nada além de reprimendas vazias.
      O cônsul-geral Robert Townsend Smallbones já tinha visto muito do mundo. Ele havia estado em Angola, na Noruega e na Croácia, e havia passado oito anos na Alemanha com o corpo diplomático britânico. Apesar da ditadura nazista, o homem de 54 anos tinha grande estima pelos alemães. Eles eram "costumeiramente gentis com os animais, as crianças, os idosos e enfermos. Eles me pareciam não ter nenhuma crueldade em sua formação", escreveu Smallbones num relatório para o Ministério das Relações Exteriores britânico.
      Dada a sua impressão sobre os alemães, o representante do Império Britânico ficou ainda mais perplexo com o que vivenciou no início de novembro de 1938. Em Paris, Herschel Grünspan, um refugiado judeu de 17 anos da cidade alemã de Hanover, havia atirado no diplomata alemão Ernst vom Rath num ato de protesto contra as políticas de Hitler para os judeus. No início, os nazistas só caçavam judeus na região de Hesse, na Alemanha, em torno de Frankfurt. Mas, após a morte de Rath em 9 de novembro, os pogroms [massacres] se espalharam por todo o Reich alemão, onde sinagogas foram queimadas, vitrines de lojas foram estilhaçadas e milhares de judeus foram levados para campos de concentração e maltratados.
      Em Frankfurt, Smallbones relatou que judeus tinham sido levados para um prédio grande e lá obrigados a se ajoelhar e colocar a cabeça no chão. Depois que um deles vomitou, escreve Smallbones, os "guardas limparam o chão pegando o culpado pela nuca e esfregando seu rosto e cabelo sobre o vômito". Segundo o relato Smallbones, depois de algumas horas, as vítimas foram levadas para o campo de concentração de Buchenwald, onde muitos foram torturados e alguns espancados até a morte. Os presos foram até mesmo obrigados a urinar na boca uns dos outros. Este foi um dos detalhes contados a Smallbones por um parceiro de golfe, um judeu alemão, depois que este foi libertado de Buchenwald.
      "Eu me gabei de ter compreendido o caráter alemão", escreveu o cônsul-geral, mas acrescentou que não esperava este "surto de crueldade sádica".
      Os massacres de novembro de 1938 duraram vários dias, embora os livros de história muitas vezes se refiram ao evento simplesmente como a "Noite dos Cristais" (Kristallnacht), porque o chefe da propaganda nazista Joseph Goebbels anunciou no rádio em 10 de novembro que os excessos tinham acabado. Especialistas estimam que até 1.500 pessoas morreram nos dias em torno de 9 de novembro. Foi o pior massacre na Alemanha desde a Idade Média.
      Reunindo relatos diplomáticos contemporâneos
      Esta semana marca o 75º aniversário do que o historiador de Leipzig Dan Diner chamou de "catástrofe antes da catástrofe". Isso levou o Ministério das Relações Exteriores alemão a tomar a medida incomum de pedir a 48 países que tinham missões diplomáticas na Alemanha em 1938 para procurarem em seus arquivos relatos sobre o pogrom de novembro.
      Há meses, o Ministério de Relações Exteriores tem recebido cópias de documentos históricos até então desconhecidos pelos especialistas. A partir de próxima segunda-feira, o Ministério e o Berlin Centrum Judaicum exibirão uma seleção desses documentos na Nova Sinagoga na Oranienburger Strasse, numa exposição intitulada "De Dentro para Fora: Os Pogroms de Novembro de 1938 em Relatos Diplomáticos na Alemanha."
      Apesar da forma muitas vezes truncada dos relatórios e da linguagem fria dos diplomatas, tratam-se de documentos impressionantes com valor histórico. Eles atestam o destino do orfanato judeu em Esslingen, perto de Stuttgart, onde uma multidão de simpatizantes do nazismo expulsou as crianças para as ruas; de judeus que foram obrigados a marchar em duplas por Kehl, no sudoeste da Alemanha, gritando "Nós somos traidores da Alemanha"; e de pessoas aterrorizadas escondidas nas florestas perto de Berlim.
      O que também vale notar sobre os documentos é o que eles não contêm. Nesse sentido, eles apontam para o fracasso da comunidade internacional e as suas consequências mais amplas. Os diplomatas quase unanimemente condenaram os assassinatos e atos de violência e destruição. O britânico descreveu o pogrom como uma "barbárie medieval", os brasileiros chamaram-no de "espetáculo repulsivo", e diplomatas franceses escreveram que o "escopo de brutalidade" só foi "excedido pelos massacres dos armênios", referindo-se ao genocídio turco de 1915-1916.
      Entretanto, nenhum país rompeu relações diplomáticas com Berlim ou impôs sanções, e apenas Washington retirou seu embaixador. E mais que isso, as fronteiras de quase todos os países permaneceram praticamente fechadas para os cerca de 400 mil judeus alemães.
      Muitas missões diplomáticas já estavam em contato com vítimas porque os homens da SS e as SA, funcionários do Partido Nazista e membros da Juventude Hitlerista também estavam assediando os judeus estrangeiros que viviam na Alemanha. No início de novembro, mais de mil judeus que fugiam dos nazistas se refugiaram no consulado polonês em Leipzig. Num relato sobre o destino da família Sperling, o cônsul local escreveu que eles haviam sido praticamente espancados até a morte, e que "muitos objetos valiosos" tinham sido roubado de seu apartamento, "incluindo um rádio, um cheque de 3.600 Reichsmarks, 3400 Reichsmarks em dinheiro e outras coisas de valor. "Os bandidos, aparentemente, despiram a mulher e tentaram 'estuprá-la'".
      Os judeus alemães também buscaram proteção em consulados estrangeiros, especialmente nos norte-americanos. "Judeus de toda parte da Alemanha se aglomeraram no escritório até que ele estivesse transbordando de gente, implorando por um visto imediato ou algum tipo de carta relativa à imigração, que pudesse convencer a polícia a não prendê-los nem molestá-los", relatou Samuel W. Honaker, cônsul-geral dos EUA em Stuttgart.
      Buscando os motivos
      A maioria dos diplomatas estavam bem informados sobre a extensão das atrocidades através de relatos que ouviam de pessoas desesperadas que descreviam suas experiências. Além disso, as janelas quebradas e os recintos saqueados dos estabelecimentos judaicos eram claramente visíveis.
      Nesse ponto, pelo menos de acordo com um enviado finlandês, Hitler estava menos interessado em assassinar judeus na Alemanha do que em mandá-los para fora. "A posição do Estado alemão para com os judeus é tão conhecidaque não há razão para escrever muito sobre isso", escreveu num relatório ao seu governo. "Medidas cada vez mais duras estão sendo tomadas contra eles, com o objetivo de expulsá-los do Reich alemão de uma forma ou de outra."
      Mas os diplomatas estavam intrigados com o motivo pelo qual os nazistas estavam agindo com tanta violência, especialmente considerando o prejuízo resultante disso à sua reputação internacional. Representantes da França acreditavam que tinha a ver com uma disputa pelo poder dentro da liderança nazista. O enviado suíço assumiu que era a maneira de Hitler demonstrar seu poder. O diplomata britânico Smallbones suspeitava que a explosão de violência havia sido desencadeada por "aquela perversidade sexual... muito presente na Alemanha".
      Mas, como os historiadores descobriram após a Segunda Guerra Mundial, Hitler apenas tirou proveito de uma oportunidade. Ele estava em Munique na tarde de 9 de novembro, quando chegou a notícia da morte do diplomata Rath. Nesse mesmo dia, a alta liderança do partido se reunia anualmente para comemorar o fracassado golpe Beer Hall Putsch de Hitler em 1923. Depois de consultar Hitler, o ministro da propaganda Joseph Goebbels incitou outros funcionários na reunião, até que, de acordo com seu diário, eles "correram imediatamente para os telefones". Eles deram instruções aos soldados nazistas, que já estavam ansiosos para maltratar os judeus. Os excessos começaram naquela noite.
      1.406 sinagogas destruídas
      Muitas sinagogas nas regiões de Württemberg, Baden e Hohenzollern foram "incendiadas por jovens bem disciplinados e aparentemente bem equipados usando trajes civis", relatou Honaker, cônsul-geral dos EUA, observando que o processo foi "praticamente o mesmo" em todas as cidades. "As portas das sinagogas foram arrombadas. Algumas partes do prédio e do mobiliário foram encharcadas de gasolina e incendiadas. Bíblias, livros de oração e outros objetos sagrados foram atirados às chamas", escreveu ele. Um total de 1.406 sinagogas foram incendiadas.
      Em seguida, eles começaram a quebrar vitrines. As lojas eram fáceis de identificar, especialmente em Berlim. Alguns meses antes, os nazistas haviam obrigado os lojistas judeus na capital a escreverem seus nomes em tinta branca e letras grandes sobre as vitrines.
      A segunda onda aconteceu no decorrer do dia seguinte, conforme relatou o diplomata húngaro a partir da capital alemã: "Na parte da tarde, depois das aulas, adolescentes de 14 a 18 anos, na maioria membros da Juventude Hitlerista, foram soltos nas lojas. Eles invadiram os negócios, onde reviraram tudo de cabeça para baixo, destruíram móveis e tudo que era feito de vidro, bagunçaram toda a mercadoria e depois, enquanto davam vivas a Hitler, deixavam o local para buscar outros lugares para vandalizar. Nos distritos do leste da cidade, a população local também saqueou as lojas devastadas."
      Conforme as instruções, os autores não usaram uniformes do partido. Goebbels queria que o público a acreditasse que o massacre era um reflexo da "indignação justificada e compreensível do povo alemão" com a morte do diplomata Rath – e que a polícia estava impotente.
      Mas nenhum dos diplomatas acredita nesta versão dos acontecimentos, especialmente, como observou ironicamente um conselheiro da embaixada brasileira, num país com a "polícia mais poderosa, bem organizada, perfeitamente equipada e mais brutal do mundo, na melhor posição possível para reprimir prontamente qualquer tumulto entre a população".
      O 'inimaginável' prestes a se tornar realidade
      A uniformidade da abordagem em centenas de cidades e aldeias foi suficiente para expor a mentira. Mas acima de tudo, a maioria dos alemães não se comportou da forma como o regime esperava.
      Embora tenha havido alguns saques, muitos diplomatas, como o representante finlandês Aarne Wuorimaa, relataram a "crítica devastadora" de membros da população. De acordo com Wuorimaa, "como alemão, estou envergonhado" foi uma "observação ouvida com muita frequência". No entanto, os relatórios geralmente não se aprofundam em se os críticos rejeitavam fundamentalmente a privação de direitos dos judeus em geral ou apenas os métodos brutais nazistas.
      O cônsul-geral dos EUA Honaker estimou que cerca de 20% dos alemães apoiaram o pogrom. Há um paralelo surpreendente entre este número e o resultado de uma pesquisa que as autoridades norte-americanas fizeram em 1945, após o Holocausto, em sua zona de ocupação. Na época, um quinto de todos os entrevistados ainda "concordavam com Hitler sobre o tratamento aos judeus". Em outras palavras, eles admitiam ser antissemitas assassinos.
      Para muitos dos responsáveis tardios pelo Holocausto, a Noite dos Cristais marcou um ponto de virada. De repente, tudo parecia possível, escreve o historiador Raphael Gross, aludindo ao clima emergente. Os nazistas se sentiam "como pioneiros que tinham acabado de entrar com sucesso em novo território", diz Gross.
      Nas semanas seguintes, o regime decretou um grande número de medidas destinadas a perseguir e expropriar os judeus. Crianças judias já não podiam mais frequentar as escolas comuns, e os adultos judeus foram proibidos de ter negócios artesanais ou entrar em universidades. Numa ironia cruel, as vítimas foram obrigadas a pagar um enorme "imposto de reparação" de um bilhão de marcos. "Eu não gostaria de ser judeu na Alemanha", disse Hermann Göring, um dos principais membros do partido nazista.
      Infelizmente para os judeus alemães, muitos observadores internacionais não perceberam o radicalismo do sentimento nazista para com suas vítimas. Se tivessem percebido, talvez alguns países de exílio, como os Estados Unidos ou o Brasil, pudessem ter relaxado suas exigências rígidas de imigração, que se tornaram um dos principais obstáculos para os judeus que tentavam emigrar.
      Mesmo os diplomatas da aliada mais próxima de Hitler, a Itália, ainda escreviam em novembro de 1938 que era "inimaginável" que os judeus na Alemanha "fossem um dia enfileirados diante de um muro ou condenados a cometer suicídio, ou serem presos em campos de concentração gigantes".
      Contudo, esta coisa "inimaginável" – o assassinato sistemático de judeus europeus – começaria aproximadamente três anos mais tarde.
      Tradutor: Eloise De Vylder

      Cientista usa pinturas famosas para chamar a atenção para o desmatamento


      Paulo Gomes
      COLABORAÇÃO PARA A FOLHA de São Paulo, DE EDIMBURGO
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      O pesquisador Iain Woodhouse, da Universidade de Edimburgo, encontrou uma maneira curiosa de chamar a atenção para seu objeto de estudo, o desmatamento. Para expressar "ausência", ele fez novas versões de obras dos pintores do século 19 Vincent Van Gogh, John Constable e Georges Seurat.
      "Como representar a perda de algo?", pergunta retoricamente, enquanto mostra imagens das ilustrações. "Pela ausência", prossegue o professor da Escola de Geociência da universidade.

      Pinturas famosas retratam desmatamento

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      Iain Woodhouse
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      Versão da obra feita pelo pesquisador Iain Woodhouse não tem as árvores; a intervenção pretende chamar a atenção para o desmatamento
      Woodhouse então apresenta reproduções das verdadeiras obras e esclarece: as árvores foram retiradas dos originais "Oliveiras com o Céu Amarelo e o Sol", de Van Gogh, "A Carroça de Feno", de Constable, e "Uma Tarde de Domingo na Ilha de Grande Jatte", de Seurat.
      O pesquisador afirma que é relativamente fácil representar a importância de algo que está presente, mas que o mesmo não se dá com a falta de algo, como o desflorestamento.
      "Não é fácil chamar a atenção do observador para algo que não está lá", diz. Elaborado em conjunto com a artista Alice Ladenburg, o projeto busca chamar a atenção para a causa ambiental.
      CONSEQUÊNCIA POLÍTICA
      Além de produzir versões "desmatadas" de obras famosas, o britânico também incentiva crianças no Maláui, na África, a plantarem e a darem nome a uma árvore. Segundo ele, com a proximidade criada pela nomeação, as crianças estabelecem vínculo afetivo com a "sua planta" e passam a cuidar do vegetal, regando-o regularmente.
      A ideia é que o tema vire algo de importância para a população em geral. "Se isso vira uma questão relevante para o eleitorado, torna-se uma questão importante para os políticos."
      O jornalista PAULO GOMES viajou a convite do Consulado Britânico, após ser um dos selecionados no Desafio GREAT