Imaginando Sísifo feliz
Quem, exceto um ator em palco, consegue viver a vida em permanente intensidade?
Passaram cem anos sobre o nascimento de Albert Camus (1913""1960). Festejos pálidos. Injusto. Quando tivemos o centenário de Sartre em 2005, um filósofo e escritor inferior a Camus, as trombetas soaram com outro vigor.
Camus merecia mais atenção. E, na ausência de festejos públicos, optei pelos privados. Um pouco de nostalgia: já não lia Camus desde a adolescência. Encontrei surpresas gratas. Os romances continuam soberbos, ainda melhores do que na minha memória --e hoje, a caminho dos 40, é "A Queda" (1956), e não tanto "O Estrangeiro" (1942), que verdadeiramente me joga no tapete.
Foram precisas algumas experiências de vida para compreender, tal como afirma o sinistro narrador de "A Queda", que a busca de um método --um sistema, uma ideologia, uma cartilha-- é sempre o expediente dos homens sem caráter. Corrijo. Dos homens que não desenvolveram um caráter. "Touché, Albert!"
Mas depois vieram as desilusões. Desilusões, não. Discórdias. Brandas, perdoáveis, quase melancólicas. Quando li pela primeira vez o seu "Mito de Sísifo" (1942), esse ensaio torrencial sobre a nossa condição absurda perante "o silêncio do mundo", fiz de Camus o meu santo laico e do existencialismo, precisamente, uma forma de humanismo.
A argumentação de Camus era poderosa e nas primeiras linhas o autor avisava o auditório que pretendia enfrentar sem subterfúgios o mais relevante dos temas filosóficos: o suicídio.
Se a vida não tem sentido e se recusamos o "salto de fé" para as consolações celestiais, o que nos resta, afinal?
Camus responde: resta-nos não negar a nossa condição absurda e, mais ainda, assumir essa condição com "consciência" e "revolta". Não é por acaso que Camus dedica as melhores páginas do seu "Mito de Sísifo" ao trabalho de um ator em palco. O ator, exemplo supremo do "homem absurdo", vive, ama e eventualmente morre intensamente --tudo no espaço de algumas horas e sempre com radical autenticidade.
A vida que Camus recomenda é, na falta de melhor palavra, uma vida de "performance" permanente. Donde, a conclusão: pode haver uma dissonância insuperável entre o que a mente deseja (sentido) e um mundo que desilude (pelo absurdo). Mas esse fato não autoriza o suicídio. Parafraseando Nietzsche, a ausência de uma vida eterna convida os homens a uma vivacidade eterna.
Aos 18 ou 19 anos, o programa era tentador. Mas, honestamente, quem, exceto um ator em palco, consegue viver a vida em permanente intensidade? A atitude de Camus, longe de aceitar o absurdo, parece-me agora uma fuga ao absurdo. Pior ainda: uma fuga desesperada ao exato desespero que ele procura resolver.
Mas não só. É a própria ideia de "viver o absurdo" que me parece adolescente--no autor e na criança que eu era. Anos depois de ler o ensaio de Camus, encontrei um luminoso texto de Richard Taylor no seu "Good and Evil" no qual o filósofo voltava ao mito de Sísifo, esse mortal condenado pelos deuses a rolar eternamente a pedra montanha acima, montanha abaixo.
Na versão de Camus, podemos imaginar Sísifo feliz se ele abraça esse destino com desafio e orgulho, mesmo sabendo da futilidade do exercício.
Taylor argumenta, e argumenta bem, que não basta rolar a pedra para vencer o absurdo. É preciso encontrar um sentido para isso. Que o mesmo é dizer: rolar a pedra para algo, para alguém --ou até para nós próprios, se isso for importante ou significativo para as nossas vidas.
No limite, não importa até se a pedra é grande ou pequena. Porque não é o tamanho dela ou o esforço homérico de Sísifo para a empurrar que concede dimensão trágica à condenação.
Se a pedra fosse minúscula, e se ele subisse e descesse a montanha com ela no bolso, a premissa seria a mesma: a única forma de o imaginarmos feliz seria se ele usasse essa pedra para erigir um templo; ou construir uma habitação para os filhos; ou apenas para exercitar o corpo e o gosto por passeatas com pedras minúsculas.
Hoje, a visão modesta de Taylor parece-me mais real do que a "revolta" literária (e esteticamente belíssima) de Camus. Não porque nego o absurdo da vida e o esquecimento que nos espera a todos. Não nego.
Mas porque só consigo imaginar Sísifo feliz se, no cume da montanha, existir algo ou alguém à espera dele e da sua pedra.
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