sábado, 16 de novembro de 2013

Drauzio Varella

folha de são paulo

O vício de comer


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O povo diz que os gordos são mentirosos e preguiçosos, andam pouco e comem mais do que confessam.
Essa visão preconceituosa está por trás do atraso da medicina no tratamento da obesidade. Quando alguém com excesso de peso procura ajuda médica, a única prescrição que leva para casa é a de reduzir o número de calorias ingeridas.
Existe recomendação mais fadada ao insucesso? É o mesmo que aconselhar o alcoólatra a beber com moderação. Quem consegue controlar a compulsão para comer ou beber não engorda nem fica bêbado.
A primeira descoberta relevante no campo da obesidade só aconteceu nos anos 1990, quando Coleman e Friedman relataram que certos ratos obesos eram insaciáveis porque apresentavam um defeito genético nas células do tecido adiposo, que as tornava deficientes na produção de leptina --hormônio ligado à inibição do apetite.
Foi a demonstração inequívoca de que havia fatores hormonais envolvidos na obesidade.
Logo ficou claro, entretanto, que essa visão hormonal era incompleta: 1) São raros os casos de deficiência de leptina. 2) Muitos obesos, ao contrário, produzem níveis mais altos de leptina, insulina e outros hormônios inibidores da fome, mas são pouco sensíveis a seus efeitos.
A visão atual compara a neurobiologia da obesidade à da compulsão por drogas, como cocaína ou heroína.
Quando a fome aperta, hormônios liberados pelo aparelho digestivo ativam os circuitos cerebrais de recompensa localizados no núcleo estriado. Essa área contém concentrações elevadas de endorfinas, mediadores ligados à sensação de prazer.
À medida que o estômago se distende e os alimentos progridem no trato digestivo, há liberação de hormônios que reduzem gradativamente o gosto que a refeição traz, tornando os alimentos menos atraentes. Os hormônios que estimulam ou diminuem o apetite agem por meio do ajuste fino dos prazeres à mesa.
Carboidratos e alimentos gordurosos subvertem essa ordem. São capazes de excitar sensorialmente o sistema de recompensa a ponto de deixá-lo mais resistente aos hormônios da saciedade. Esse mecanismo explica por que depois do terceiro prato de feijoada, já com o estômago prestes a explodir, encontramos espaço para a torta de chocolate.
À medida que o peso corpóreo aumenta, o organismo responde aumentando os níveis sanguíneos de leptina, insulina e outros supressores do apetite.
Como consequência, surge tolerância crescente às ações desses hormônios. Na obesidade, os circuitos de recompensa respondem mal à presença de alimentos no estômago, exigindo quantidades cada vez maiores para disparar a saciedade. Pessoas obesas precisam comer mais para experimentar a mesma sensação de plenitude acessível com quantidades menores às mais magras.
Como defende Paul Kenny, do Scripps Research Institute, da Flórida: "A obesidade não é causada por falta de força de vontade. Como nas drogas causadoras de dependência, a compulsão pela comida provoca um 'feedback' nos centros cerebrais de recompensa: quanto mais calorias você consome, mais fome sente e maior é a dificuldade para aplacá-la".
Essa armadilha não lembra, de fato, a que aprisiona dependentes de nicotina, cocaína, álcool ou heroína? O efeito sanfona não é comparável às recaídas dos usuários dessas drogas? Faz sentido: a evolução não criaria um sistema de recompensa para cada forma de compulsão.
Durante milhões de anos, a sobrevivência de nossos ancestrais esteve ameaçada pela escassez de alimentos. Como ativar a saciedade era preocupação secundária, a seleção natural privilegiou aqueles dotados de circuitos cerebrais mais eficientes em estimular a fome do que em suprimi-la.
Os avanços da culinária, a fartura, a disponibilidade de alimentos industrializados ricos em gorduras e carboidratos, os sucos, refrigerantes, biscoitos e salgadinhos ao alcance das crianças, a cultura de passar horas à mesa e a vida sedentária criaram as condições ambientais para que a epidemia de obesidade se disseminasse.
Segundo o IBGE, há 52% de brasileiros com excesso de peso ou obesidade, número que nos Estados Unidos ultrapassou 70%. Em poucos anos chegaremos lá.


drauzio varella Drauzio Varella é médico cancerologista. Por 20 anos dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se dedica ainda hoje. É autor do livro "Estação Carandiru" (Companhia das Letras). Escreve aos sábados, a cada duas semanas, na versão impressa de "Ilustrada".

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

'Intimidade é o que se faz dentro de casa', diz Fernando Morais em festival de biografias

folha de são paulo

'Intimidade é o que se faz dentro de casa', diz Fernando Morais em festival de biografias


 
FABIO VICTOR
ENVIADO ESPECIAL A FORTALEZA
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Em debate na tarde desta quinta-feira (14/11), primeiro dia do Festival de Biografias que acontece em Fortaleza, o escritor Fernando Morais afirmou que intimidade, para figuras públicas, é somente "o que se faz a portas fechadas, dentro de casa".
O direito à intimidade é uma das bandeiras de artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso, reunidos na associação Procure Saber, que brigam para manter na legislação artigo do Código Civil que permite a biografados impedir a publicação de biografias não autorizadas.
"O que ele fez na rua, no restaurante, na calçada, o que ele falou ali é público. A relação de Caetano Veloso com a [ex-mulher e presidente da Procure Saber] Paula Lavigne dentro da casa deles é algo que diz respeito à intimidade deles. Mas na hora em que ela atira o automóvel no portão da casa dele quando eles tinham acabado de se separar, isso é uma informação pública, porque são duas figuras públicas", disse Morais.
Divulgação/Estúdio Pã/FIB
Fernando Morais autografa durante Festival de Biografias em Fortaleza
Fernando Morais autografa durante Festival de Biografias em Fortaleza
O autor das biografias "Olga", "Chatô - O Rei do Brasil" e "O Mago", entre outros livros, debateu com Paulo César de Araújo, autor de "Roberto Carlos em Detalhes", biografia retirada de circulação por uma ação judicial do cantor.
Morais lembrou dos conflitos éticos que já teve ao decidir se incluía ou não em biografias detalhes da intimidade de biografados, conflitos que dirimia com a ajuda de sua mulher.
Deu o exemplo de Paulo Coelho ("O Mago"). "A história dele tem coisas pesadas, satanismo, droga, suicídio, homossexualismo, dramas familiares. Eu pensava: Não sei se tenho o direito de exibir as feridas de um cara que abriu a casa e o coração para mim. Minha mulher então dizia: 'Você está querendo submeter seu leitor a uma censura prévia que nem o Paulo Coelho te impôs'. De fato, ele não me pediu para omitir nada nem leu o livro antes de ser publicado."
CAJU NA PRAÇA
Fernando Morais voltou a afirmar em Fortaleza que deverá parar de escrever biografias por causa das restrições impostas pela legislação.
"Não vou escrever mais nada. Vou ter que agradecer um dia a Paula Lavigne por ter me estimulado a pendurar as chuteiras. Vou entregar o livro do Lula [ele prepara uma obra que enfoca a vida do líder petista de 1980 a 2010, com a colaboração do ex-presidente] para a Companhia das Letras e vou vender caju na praça Buenos Aires [em Higienópolis, bairro paulistano onde mora o escritor], apesar de o Djavan achar que estamos podres de rico [o cantor disse que biógrafos "ganham fortunas"]."
Questionado se voltaria atrás caso a lei seja abrandada, Morais disse que não sabia.
A ameaça de Morais também deve ser relativizada por se tratar de um autor que, além do livro de Lula, tem pelo menos outros dois trabalhos biográficos em andamento, que faltam ser escritos (ou reescritos) e publicados --a biografia do político baiano Antônio Carlos Magalhães (1927-2007) e os bastidores da passagem de José Dirceu pelo governo federal.
Ele diz ainda ter em casa "umas 50 caixas" com papeis de outros personagens biografáveis.
CARTA DE FORTALEZA
A controvérsia que opõe biógrafos e editores ao Procure Saber terá novo capítulo na semana que vem, quando haverá, nos dias 21 e 22, uma audiência pública no STF (Supremo Tribunal Federal) para debater a ação de inconstitucionalidade movida por uma associação de editoras que tenta alterar a legislação.
Durante o debate de hoje, Morais reforçou a proposta, que antecipara à Folha, para que os 11 biógrafos reunidos no festival redijam uma carta a ser enviada aos ministros do Supremo, em especial à ministra Cármem Lúcia, relatora da ação das editoras.
Segundo o escritor, o documento não deve ultrapassar dez linhas. "Sugiro que a redação seja do Mário Magalhães [autor da "Marighella - O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo" e curador do Festival de Biografias]. É uma convocação que chegou do Comitê Central", brincou.
Morais e Paulo César de Araújo batizaram na hora o futuro documento de "Carta de Fortaleza".
O jornalista FABIO VICTOR viajou a convite da organização do Festival Internacional de Biografias

Tati Bernardi

folha de são paulo

Conexões de amor sobre IP

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- Eu fui ao dermatologista e ele achou estranha uma pinta da minha perna e arrancou. Até hoje não saiu o resultado. Tô meio nervosa.
- Eu tava atrasado e corri tanto que desmaiei. Era um subidão...eu tô sempre atrasado.
- Eu adoro batata. Eu quero comer batata o tempo todo, pro resto da vida. Com queijo. Eu adoro queijo e batata.
- Eu deveria ler mais. Eu sou um cara meio sozinho, deveria ler mais.
- O Lobo da Estepe é sobre um cara solitário. Todo cara solitário é na verdade um egocêntrico... talvez você só consiga ler o que fala sobre você. O excêntrico é o egocêntrico que se excedeu. Eu sempre me apaixono por falsos fofos.
- Eu não sou falso fofo. Eu sou falso e sou fofo, mas não um falso fofo.
- É sempre por esses tipos que eu me apaixono.
- Eu adoro Red Hot.
- Aff...já era né? Eu adoro Hot Chip.
- Preciso ir.
- Ontem eu sai com um cara. Ele tem uma tatuagem de nuvem na nuca. Achei que o cheiro forte que eu sentia era cheiro de homem, mas comecei a perceber que ele ia muitas vezes ao banheiro do restaurante e nunca pedia comida. Aquele cheiro era de pó. Gente que cheira tem um cheiro de azedo perto do coração.
- Preciso mesmo ir. Depois te chamo.
- O tempo do outro demora uma eternidade. O tempo do outro demora duzentas mil vezes o espaço que eu dou para o tempo do outro. Eu preciso ver a outra pessoa para saber se de fato gosto dela, mas não consigo. Minha ânsia de amar é tão grande que me apaixonei criança por um vulto e até hoje fico pegando coisas reais para tentar preenchê-lo, mas o amor vive vazio. É como se eu tivesse te comprado, ou melhor: te inventado. A pior vingança de quem ousa inventar um amor é o personagem criar vida própria. Eu não respeito você. Não me importa sua hesitação. Qualquer tempo seu longe de mim é uma ofensa pessoal.
- Eu só tô te conhecendo, entende? Foi legal e tudo. Mas amor? Quem é que ama em uma semana?
- Eu
- Você acha que me ama, mas você não ta me vendo. Você tem uma sala na sua cabeça. Uma sala com um homem sentado no centro dela. Esse homem tem uma xícara de chá e um quadro e um tapete. Você não ama, você faz entrevista de ator pra cena que tem na sua cabeça. Você quer saber exatamente o que eu penso desde que seja exatamente o que você quer que eu pense. Você me chama de frio mas frieza é desconsiderar totalmente a outra pessoa como você faz. É desrespeitar o tempo dessa pessoa. É impor a sua realidade a essa pessoa. A maior vingança de um personagem é ter vida real e eu tenho vida real e você não suporta essa vingança. Toda a sua inteligência não foi capaz de colocar roteiro no mundo e então você anda por aí com suas olheiras e enjôos e medos e dores nas costas e cinismos e maldades. Como se todo mundo te devesse desculpas por não estar se movimentando de acordo com a sua direção. O amor é bem mais humilde que isso. Isso é desejo e desejo torto. E porque ainda não é amor, você cava a terra como um cachorro que precisa esconder o ossinho da dor. Você quer roer eternamente o seu vazio escondido no lugar onde sua flor idealizada nunca nasce e nem nunca vai nascer.
- Tá, depois me chama então.
tati bernardi
Tati Bernardi é escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados.

Ação contra pedofilia leva ao resgate de 386 crianças

folha de são paulo
Operação prendeu 348 pessoas em vários países
DAS AGÊNCIAS DE NOTÍCIASUma grande investigação internacional contra a pornografia infantil e a pedofilia levou ao resgate de 386 crianças e à prisão de 348 pessoas, informou ontem a polícia canadense.
O projeto Spade é uma das maiores operações já realizada, segundo a polícia da cidade de Toronto.
Investigadores e policiais apreenderam centenas de milhares de vídeos que mostram atos sexuais degradantes contra crianças muito jovens, "alguns dos quais são os piores que eles já viram", disse a inspetora Joanna Beaven-Desjardins.
Foram presas 108 pessoas no Canadá, 76 nos EUA e 65 na Austrália, onde seis crianças foram resgatadas.
Professores, médicos e atores estão entre os presos.
As investigações começaram em 2010, em 50 países, como Canadá, Espanha, México, EUA, Grécia e Noruega.

    Barbara Gancia

    folha de são paulo

    Abriram-se as comportas

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    Qualquer um que se disponha a discutir a relação entre a gestão Haddad e eventuais delitos de corrupção ou que queira traçar uma conexão entre atos es­púrios e a administração Kassab deve respirar fundo e fazer uma pausa para reflexão.
    São Paulo é ingovernável, dividida não por bairros nem por zonas, mas por máfias institucionalizadas -nós conhecemos bem: nos transportes, na limpeza, na liberação de alvarás, em qualquer coisa, enfim, que gere dinheiro. E, quando pessoal perce­be que foi tudo dominado, bora in­ventar uma inspeção veicular aqui, uma licitação milionária de reló­gios assinada no apagar das luzes da última gestão ali, qualquer coisa que abra mais uma possibilidade que seja.
    Quando sou abordada na rua, é frequente que me perguntem: "Não entendi sua última coluna, você é contra ou a favor dos "black blocs"? Contra ou a favor dos bea­gles? Contra ou a favor dos mensa­leiros?" Ora bolas, pela graça de Nosso Senhor do Alto da Serra eu não vim ao mundo para ser contra ou a favor. Não tenho esse incômo­do cacoete de reduzir as coisas a mocinhos e bandidos, e não sinto necessidade de ficar encaixotando em embalagens distintas coisas que, no Brasil de hoje, andam indis­sociáveis.
    Não adianta simplificar: o panora­ma político está tão degradado que não dá mais para fazer uma distin­ção entre quem trilha o caminho da luz, e quem o das trevas.
    Até a velha máxima dos tempos do idealismo mais "naïve", "os fins justi­ficam os meios", foi pra cucuia.
    Não se aplica mais nem mesmo a radicais muçulmanos suicidas que, na maioria, são cooptados em troca de dinheiro para a família ou iludi­dos pela ideia de que vão papar um ônibus lotado de odaliscas quando chegarem do outro lado.
    A questão fundamental a ser res­pondida se quisermos entender o que acontece em sucessivas admi­nistrações paulistanas, nos gover­nos estaduais, em todas as maracu­taias que envolvem peixe grande, seja na forma de teles, de megaobras públicas envolvendo suas majestades, as construtoras, nas mudanças de regras no setor imo­biliário ou mesmo no emblemático episódio do mensalão é a seguinte: o que é que a gente entende hoje por "Crime Organizado"?
    Eu duvido que para a presidente da Petrobras, Graça Foster, que es­tá tentando juntar os escombros do cataclisma nuclear que atingiu a es­tatal, a definição de crime organi­zado restrinja-se apenas aos PCCs da vida. Rombos milionários, con­tratos fajutos, não é à toa que as contas da Petrobras estejam sendo questionadas pelo TCU.
    Tá ligado no grau de descaramen­to da turma? As teles tomam mul­tas colossais das agências regulado­ras, não pagam e continuam ope­rando e cometendo as mesmas ir­regularidades. Costas quentes?
    Sem corar, governador do Rio usa helicóptero para ir na esquina comprar papel higiênico ou insta­grama de Paris seu prato de orca mal passada ao molho pardo de ur­so panda em jantar com amigos da construtora a quem favoreceu (a­tenção: isto é sarcasmo, não deve ser levado ao pé da letra). Está co­meçando a ficar difícil conter o es­cracho. A lama anda permeando tudo. Abriram-se as comportas, os profissionais tomaram o país. E não estão conseguindo conter o es­banjamento, a compra de 80 imó­veis, viagens, barcos, carrões...
    A qualquer minuto você pode aca­bar atropelado por uma Ferrari e o segurança que vier atrás só terá o trabalho de jogar seu corpo na lixei­ra, apagar os rastros e dar o fora.
    E Haddad já foi avisado pela cúpu­la do PT. Esse negócio de mexer em vespeiro sempre acaba mal na polí­tica. Collor e Dirceu tentaram e...
    Barbara Gancia
    Barbara Gancia, mito vivo do jornalismo tapuia e torcedora do Santos FC, detesta se envolver em polêmica. E já chegou na idade de ter de recusar alimentos contendo gordura animal. É colunista do caderno "Cotidiano" e da revista "sãopaulo".

    Marcos Troyjo

    folha de são paulo

    Mundo errado, Brasil certo
    Adotar uma retórica reformista profunda desde agora faria muito bem ao Brasil
    O que terá sido pior: um Brasil atingido pela crise de 2008 ou haver por ela passado de maneira quase ilesa?
    O primeiro cenário forçaria o país à revisão da pretensa estratégia de desenvolvimento e inserção internacional. Daria largada às urgentes reformas estruturantes e à indispensável reformulação da política externa.
    O segundo convidou as autoridades brasileiras a um discurso moral. Nosso bem-intencionado modelo é de expansão econômica com inclusão social. A crise foi fabricada por "gente de olhos azuis".
    Nesses últimos três anos, pregamos crescimento em vez de austeridade à chanceler alemã. Sugerimos a Obama corrigir a política monetária dos EUA (sem provavelmente saber que, em suas decisões, o Fed é independente da Casa Branca).
    Denunciamos o "tsunami financeiro" e o "protecionismo monetário" com que os países ricos conflagram "guerras cambiais". Desemprego elevado nos países da OCDE seria prova da fadiga desta fase mais recente do capitalismo.
    Mesmo agora, evidenciadas as limitações de nosso padrão de crescimento, estaríamos sofrendo um "ataque especulativo fiscal" de parte dos donos do "dinheiro grosso".
    Do alto de suas certezas morais, caberia ao país perseverar no rumo em que está. Sua ascensão é inevitável. Até os protestos de junho seriam amostra de que "o Brasil está dando certo". Isso se percebe nas ações e no discurso do governo brasileiro.
    Se o país distrair-se com essas ilusões autocongratulatórias, não perceberá o rearranjo nas camadas tectônicas da ordem mundial.
    Pactos envolvendo EUA, Europa, Ásia e parte da América Latina. Transformação de cadeias de suprimento em redes de produção global. Metamorfose da China. Surgimento da nova Era do Talento que ofusca vantagens comparativas advindas das commodities.
    Mudanças profundas a clamar por uma nova estratégia ""e uma nova retórica. Vários países reorientam seu discurso para "adaptar-se competitivamente ao mundo". Em relações internacionais, fazer --e falar-- são igualmente importantes.
    "Mudança" foi a palavra-conceito da primeira eleição de Obama. "Reforma" é a bússola do futuro europeu segundo Merkel e Cameron.
    "Revolução" é a melhor forma de descrever a agenda reformista que Peña Nieto busca empreender nos bastiões esclerosados de governo e sociedade no México.
    "Grande rejuvenescimento da nação chinesa" é o que Xi Jinping pretende com reformas pró-mercado anunciadas nesta semana.
    "Segunda geração de reformas" (aumento da participação do setor privado na economia) é, para Raghuram Rajan, economista de Chicago e atual presidente do BC indiano, o caminho de seu país à prosperidade.
    Algo do ceticismo que hoje ronda o Brasil emerge da deterioração do quadro fiscal e dos iminentes refluxos da liquidez internacional. Muito se deve, porém, à percepção quanto ao discurso "continuísta" do governo.
    Com a vitória da oposição --ou num surto de lucidez da atual mandatária e equipe--, o Brasil só implementará reformas profundas a partir de 2015. Ainda assim, uma retórica reformista desde já faria muito bem ao Brasil.
    mt2792@columbia.edu

      Mais atenção às Marias da Penha - Mariane Pinotti

      folha de são paulo
      MARIANNE PINOTTI
      Mais atenção às Marias da Penha
      O combate à violência contra a mulher é uma causa sem fronteiras, mas demanda ações locais e um esforço da Justiça para punir com rigor
      A violência em todos os seus níveis e contra toda e qualquer pessoa é inadmissível.
      Quando nos deparamos com situações de violência contra meninas e mulheres, principalmente aquelas com deficiência e consequentemente mais vulneráveis, o sentimento de abominação e desejo de justiça imediata é ainda mais latente.
      Sensação essa que toma proporções enormes quando se é mulher, médica ginecologista, mãe de filhas adolescentes e lida diariamente com pessoas com deficiência.
      A Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006, trouxe enorme avanço com penas mais rigorosas, incluindo o aumento de um terço na punição quando a vítima é uma mulher com deficiência. Apesar disso, todos os dias são registrados novos casos.
      Além de sofrerem os mesmos atos de brutalidade que mulheres comuns sofrem, as com deficiência estão expostas a outros tipos de abusos, como laqueadura compulsória, confinamento na própria residência, negação de cuidados necessários e estupro por parte de cuidadores.
      Procedimentos médicos intrusivos, sem fins terapêuticos e administrados sem o livre consentimento da pessoa podem também constituir tortura, cujas motivações podem estar atribuídas ao preconceito.
      É impressionante a história da mulher que deu origem ao nome da lei. Maria da Penha Maia Fernandes foi espancada pelo marido durante seis anos e foi vítima de duas tentativas de assassinato por ciúme. Na primeira, ele atirou nela de costas enquanto dormia, deixando-a paraplégica. Na segunda, empurrou-a da cadeira de rodas e tentou eletrocutá-la no chuveiro.
      Após as agressões, ela o denunciou. O marido foi punido após 19 anos de julgamento e ficou apenas dois anos em regime fechado. Revoltada com a falta de justiça, Maria da Penha conseguiu, com a ajuda de ONGs, enviar o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), que, pela primeira vez, acatou uma denúncia de violência doméstica. A OEA condenou o Brasil por negligência e omissão. Uma das punições foi a recomendação para que fosse criada uma legislação adequada à violência doméstica.
      O combate à violência contra a mulher é uma causa sem fronteiras, mas demanda ações locais. Recentemente, o prefeito Fernando Haddad assinou o termo de adesão ao programa do governo federal Mulher, Viver sem Violência.
      A região central de São Paulo ganhará, nos próximos meses, uma unidade da Casa da Mulher Brasileira, equipamento público especializado no atendimento às vítimas.
      Na ocasião, foi assinado o termo de adesão ao Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher, parceria entre as três esferas de governo com o intuito de fortalecer as políticas públicas, visando ampliar e integrar os serviços de acolhimento e orientação às mulheres nessa situação.
      Como gestora pública de ações voltadas para as pessoas com deficiência, vislumbro que o Estado precisa agir na prevenção, com campanhas educativas, e no amparo às vítimas de abusos. Mas é preciso também que haja esforço da Justiça para punir com rigor qualquer situação de violência em relação às mulheres. Essa é a melhor forma de coibir novos casos.