domingo, 27 de outubro de 2013

As paisagens sonoras da natureza selvagem

folha de são paulo
Muito além dos sabiás


REINALDO JOSÉ LOPES
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RESUMO Músico que colaborou com trilhas de Hollywood se dedica há cerca de 40 anos ao estudo dos sons da natureza, tema de livro recém-lançado no Brasil. Para o naturalista, a complexidade dos sons produzidos em ambientes selvagens segue uma orquestração complexa e clara, que se perde em habitats alterados pelo homem.
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Para o músico e naturalista americano Bernie Krause, 74, falar em "coral" ou "orquestra" para se referir à algazarra matutina dos pássaros ou ao canto noturno de rãs e grilos é mais do que mero lugar-comum poético.
Autor de "A Grande Orquestra da Natureza" [trad. Ivan Weisz Kuck, Zahar, 248 págs., R$ 54,90], Krause deixou de lado o trabalho em Hollywood, onde colaborou com a trilha sonora de filmes como "Apocalypse Now" (1979), para fazer um doutorado em bio-acústica e se dedicar à gravação do que ele chama de "soundscapes", ou "paisagens sonoras", em ambientes naturais.
Em vez de se concentrar nas vocalizações de um ou outro animal, como ainda costuma fazer a maioria dos biólogos, Krause se dedicou a captar retratos sonoros do ecossistema como um todo, ao longo de um dia inteiro e das várias estações do ano.
Sua principal descoberta: em ambientes com pouca intervenção humana, cada espécie parece ter achado seu próprio "espaço" sonoro, uma faixa de frequências na qual cada bicho se encaixa com a mesma precisão e complexidade dos instrumentos de uma orquestra sinfônica.
A sobreposição de frequências é mínima, e o timing dos "músicos" é impecável, afirma ele. Isso não acontece em ambientes desmatados, mesmo quando o corte de árvores é seletivo: a antiga orquestra sai do tom ou se cala.
Ao estudar, em paralelo, a música de povos caçadores-coletores, o pesquisador encontrou paralelos intrigantes entre complexidade biológica e sofisticação musical. Ele propõe que o conjunto dos sons naturais seria uma das principais fontes da música e da linguagem humana e defende um retorno a essa fonte para renovar a arte musical no Ocidente.
Alguns dos sons gravados por Krause podem ser ouvidos no endereço eletrônico bit.ly/orquestranatureza. Uma palestra do especialista, com legendas em português, está disponível em http://www.ted.com/talks/bernie_krause_the_voice_of_the_natural_world.html. Leia a seguir trechos da entrevista.
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Folha - O sr. acha que é possível se treinar para ficar mais consciente em relação aos sons da natureza?
Bernie Krause - Sim, é claro que isso é possível, e acho que é bastante simples. As pessoas precisam aprender a escutar, mas, para isso, precisam ir para lugares ainda selvagens e simplesmente prestar atenção nas paisagens sonoras. Infelizmente, as paisagens sonoras com as quais estamos acostumados, repletas de sons de origem mecânica ou elétrica, geram sons que tendem a ser incoerentes e caóticos, o que nos causa muito estresse, entre outros problemas.
Então não é possível, na sua opinião, aprender a ouvir melhor os sons naturais num ambiente urbano, como um parque ou uma pequena reserva florestal?
Bem, há algumas maneiras de conseguir isso -não digo no caso de um parque urbano, que nunca vai se comparar a lugares realmente selvagens. Mas um jeito de conseguir essa compreensão, que certamente não é tão bom quanto visitar esses lugares, é entrar em casa, fechar as portas e janelas e se concentrar para ouvir gravações das paisagens sonoras originais. Para a sorte de vocês no Brasil, ainda há lugares fantásticos na Amazônia e na mata atlântica, por exemplo, que me parecem relativamente acessíveis para alguém que deseje ter essa experiência.
Apesar disso, no livro o sr. conta como, mesmo numa reserva florestal da mata atlântica, a assinatura sonora que o sr. conseguiu gravar parecia bastante debilitada perto da que se ouve em florestas mais isoladas mundo afora.
Sim, isso foi uma pena. Uma coisa interessante sobre essa experiência, aliás, é que tivemos a oportunidade de nos encontrar com Tom Jobim no Rio de Janeiro e ele nos contou como, na sua infância, ele costumava ouvir uma enorme variedade de pássaros a poucos metros do restaurante onde estávamos jantando. Ele acabou gravando um disco inteiro, batizado de "Passarim" [1987], em homenagem a essas lembranças.
No livro, o sr. explica como é possível notar que determinado ambiente foi degradado simplesmente olhando para as faixas do espectro sonoro que aparecem numa gravação, porque a diversidade e a organização dos sons é muito menor num habitat alterado. Seria possível usar isso para fazer avaliações rápidas da saúde ambiental de um ecossistema, por exemplo?
Isso já foi feito diversas vezes por muitas instituições de pesquisa, aqui nos EUA, na Itália, pela Universidade de Urbino, e em outros lugares. É um modelo que está "pegando" cada vez mais.
O sr. compara essa estrutura das paisagens sonoras naturais à de uma orquestra. Em certo ponto, porém, a analogia não deixa de valer, já que uma orquestra humana depende de uma colaboração intencional entre os músicos?
Acho que existe uma colaboração evolutiva, de longuíssimo prazo, entre os animais que produzem os sons da natureza, embora de fato ela seja diferente da colaboração numa orquestra humana. Trata-se de uma colaboração contínua, que atravessa a noite e o dia, mantém-se ao longo das estações, e é impressionante pela complexidade e pela estrutura clara que ela é capaz de produzir num ambiente saudável. Para mim, a percepção dessa estrutura complexa é o principal achado do que chamo de ecologia da paisagem sonora.
Existe uma ligação estreita entre biodiversidade e complexidade musical? A música das populações de caçadores-coletores que vivem em florestas tropicais, onde está concentrada a biodiversidade do planeta, também tende a ser a mais variada e complexa?
Com certeza. É claro que cada ambiente tem sua própria paisagem sonora, mas as florestas úmidas equatoriais, em qualquer lugar do mundo, são sempre as que apresentam máxima diversidade de espécies e máxima densidade de seres vivos, e isso se reflete em suas paisagens sonoras.
De modo geral, quanto mais "básica" a cultura dos povos que vivem nesses lugares, quanto mais conectada ao seu ambiente, maior é a complexidade de sua música, creio. Outra coisa interessante é que a compreensão da paisagem sonora por parte das comunidades tradicionais se expressa num espectro muito amplo dessas culturas, desde o gerenciamento dos recursos naturais -a capacidade de localizar fontes de água ou de alimento com base nas pistas sonoras do ambiente, por exemplo - até a religião. Todas essas histórias podem ser contadas a partir da paisagem sonora de um ambiente.
Qual sua paisagem sonora favorita?
Bem, qualquer paisagem sonora selvagem, não adulterada, sempre é envolvente para mim, tem até um elemento de experiência religiosa. Dito isso, as que mais têm apelo para mim hoje em dia são as do Alasca e dos territórios do noroeste do Canadá.
Por quê?
Porque são lugares onde ainda há pouquíssima gente, por causa da distância e do isolamento, então é possível ouvir e gravar paisagens sonoras durante dias a fio sem interrupções -sem estradas, sinais de trânsito, lojas de lembrancinhas ou guias florestais tentando explicar o tempo todo o ciclo de vida das renas ou dos ursos.
Reduzir o ruído produzido por seres humanos para que seja possível voltar a ouvir os panoramas sonoros naturais é um objetivo factível?
Depende da nossa vontade de voltarmos a nos relacionar com outros seres vivos. Esta talvez seja a nossa última chance de ouvir os panoramas sonoros naturais, essenciais para construirmos uma narrativa para a cultura humana que afirme a vida, em vez de ignorá-la. Como dizia o ecologista Aldo Leopold [1887-1948], se você quer mexer com a natureza, é melhor ter certeza de que não vai perder nenhuma das peças dela.
Hoje, mesmo a música clássica tradicional é totalmente esotérica para a maioria das pessoas. O sr. vê alguma esperança de uma música baseada nos panoramas naturais que não pareça hermética demais?
Tenho de acreditar que sim, porque foi do mundo natural que veio a nossa música e é para ele que precisamos retornar se quisermos que ela mantenha sua vitalidade. E eu acho que estamos caminhando em direção a isso.
Em 1970, eu e Paul Beaver lançamos o álbum "In a Wild Sanctuary" [num santuário selvagem], o primeiro a incorporar panoramas sonoros naturais como parte da orquestração. E, em julho de 2014, deve estrear no Reino Unido uma sinfonia de minha autoria, feita a pedido da BBC, cujo nome é "The Great Animal Orchestra" [a grande orquestra animal"], que fortalece esse conceito. Não é música pop, admito, mas creio que será capaz de agradar a um público amplo.
REINALDO JOSÉ LOPES, 34, é jornalista, assina o blog "Darwin e Deus" no site da Folha.

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