domingo, 27 de outubro de 2013

Saladino e Natã - GOTTHOLD EPHRAIM LESSING tradução JACÓ GUINSBURG e INGRID DORMIEN KOUDELA ilustração ANA SARIO

folha de são paulo

Saladino e Natã



GOTTHOLD EPHRAIM LESSING
tradução JACÓ GUINSBURG e INGRID DORMIEN KOUDELA
ilustração ANA SARIO

SOBRE O TEXTO Este trecho é parte da cena 7 do terceiro ato da peça "Natã, o Sábio", de Gotthold Ephraim Lessing (1729-81). A obra do dramaturgo alemão que versa sobre as três religiões monoteístas será publicada em livro que a Perspectiva prepara para 2014. "Nathan, o Sábio", filme de 1922 inspirado no texto, será exibido hoje na área externa do Auditório Ibirapuera, às 20h, na programação da Mostra de Cinema de São Paulo.
*
Saladino (À parte: - Então o campo aqui está livre!) - Não estou voltando rápido demais? Você já se acha no fim de suas reflexões. - Agora então, fale! Não nos ouve alma alguma.
Natã - Tomara que o mundo inteiro também nos ouça.
Saladino -Tão seguro está Natã de sua causa? Ah! Isto é o que eu chamo de sábio. Nunca esconder a verdade! Por ela colocar tudo em jogo! De corpo e alma! Os bens e o sangue!
Natã - Ah sim, sim! Quando é necessário e útil.
Saladino - De agora em diante me é dado, espero, trazer com todo direito um de meus títulos, o de Melhorador do Mundo e da Lei.
Natã - Deveras, um belo título! Porém, sultão, antes que eu me confie por inteiro a você, permita que lhe conte uma pequena história?
Saladino - Por que não? Sempre fui amigo de histórias, se bem contadas.
RUBENS FIGUEIREDO,
Natã - Sim, contar bem, isso não é exatamente o meu forte.
Saladino - Já, de novo, tão orgulhosamente modesto? - Vamos! Conte, conte!
Natã - Há muitos e muitos anos vivia no Oriente um homem que possuía um anel de valor inestimável, recebido de mãos queridas. A pedra era uma opala, que cintilava com cem cores das mais belas, e tinha a força secreta, a de tornar agradável a Deus e aos homens quem usasse o anel com essa confiança. Seria de admirar que um homem no Ocidente nunca o tirasse do dedo, e tomasse a disposição a fim de conservá-lo para sempre na família em sua casa? E assim foi. Ele deixou o anel ao filho mais amado; e estipulou que este, por sua vez, também o deveria deixá-lo em herança ao filho que mais amasse; e sempre o mais amado, sem levar em conta a ordem do nascimento, por força do anel, se tornaria o cabeça, o príncipe da casa. -
Está me entendendo, magnífico sultão?
Saladino - Estou. Continue!
Natã - Foi assim que esse anel, de filhe em filho, chegou por fim a um pai de três filhos; todos os três lhe eram igualmente obedientes; e a todos três ele não podia impedir-se, por consequência, de amá-los igualmente. Apenas, de tempo em tempo, ora este, ora aquele, ora o terceiro - quando cada um deles se encontrava sozinho com ele e os outros dois não partilhavam de seu transbordante coração - parecia-lhe mais digno do anel; pois ele também tinha a piedosa fraqueza de prometê-lo a cada um deles. Isso continuou assim, enquanto continuou. Mas quando chegou a hora da morte, o bom pai viu-se em apuros. Doía-lhe ferir de tal modo dois de seus filhos que haviam confiado em sua palavra. - O que fazer? - Ele mandou procurar em segredo um joalheiro, a quem encomendou, conforme o modelo de seu anel, dois outros, e lhe ordenou que, sem poupar gastos nem labor, os fizesse iguais, perfeitamente iguais ao molde. Isso o joalheiro conseguiu. Quando ele lhe trouxe os anéis, nem o próprio pai pôde distinguir o original. Alegre e animado, ele chamou os filhos, um de cada vez, e deu a cada um em separado a sua benção - o seu anel - e morreu. - Está ouvindo, sultão?
Saladino (que, surpreendido, se afasta) - Estou ouvindo, estou ouvindo! - Chega logo ao fim com essa sua história. - Vai chegar?
Natã - Estou no fim. Pois, o que segue, compreende-se por si próprio. Mal o pai morreu, cada um dos filhos veio com o seu anel e cada qual quis ser o príncipe da casa. Examinaram, brigaram, reclamaram. Em vão; não era possível provar qual era o verdadeiro anel. (Após uma pausa, na qual espera a resposta do sultão.) - É quase tão difícil de provar, como para nós agora - a verdadeira fé.
Saladino - Como? Essa deve ser a resposta à minha pergunta?...
Natã - Queira desculpar-me se não ouso diferenciar os anéis que o pai mandou fazer com o propósito de que com isso eles não fossem diferenciáveis.
Bruno Poletti / Folhapress
Ilustração da artista Ana Sario
Ilustração da artista Ana Sario
Saladino - Os anéis! - Não brinque comigo! - Eu pensaria que as religiões, que eu lhe mencionei, fossem de fato diferentes uma da outra, até no vestuário, até na comida e na bebida!
Natã - E apenas nos seus fundamentos, não. Pois, elas não se fundamentam todas na história? Escrita ou transmitida oralmente! - E a história decerto tem de ser aceita, ela própria, por fé e crença? - Não é? -Ora, que fé e crença a gente põe menos em dúvida? A nossa? Aquela a cujo sangue nós pertencemos? Aquela que, desde a infância, nos deu provas de amor? Que nunca nos enganou, senão lá onde ser enganado era para nós mais benéfico? - Como posso eu acreditar menos nos meus pais do que você nos seus? Ou o inverso. - Posso eu exigir de você que desminta seus antepassados para que não contradigam os meus? Ou o inverso? O mesmo vale para os cristãos. Não é verdade?
Saladino - Pelo Vivente! O homem tem razão. Eu devo emudecer.
Natã - Permita que voltemos de novo aos nossos anéis. Como dissemos, os filhos acusaram-se uns aos outros; e cada qual jurou perante o juiz que havia recebido o anel diretamente da mão do pai. - O que também era verdade! - Isso, depois de ter tido, já de há muito, a sua promessa de que, um dia, desfrutaria do privilégio do anel. - O que não era menos verdade! - O pai, cada um deles afirmou, não poderia ter sido falso contra ele; e para não suspeitar isso dele, de um pai tão querido, era obrigado a acusar os irmãos pelo jogo desleal, por mais propenso que estivesse em outras coisas a crer somente o melhor respeito deles.
Saladino - Bem, e o juiz? - Tenho muita vontade de ouvir o que você deixou para o juiz dizer. Fale!
Natã - O juiz disse: "Se vocês não me trouxerem logo o pai até aqui, ordeno-lhes que saiam da frente de minha curul de magistrado. Pensam que estou aqui para decifrar charadas? Ou esperam que o anel verdadeiro abra a boca e fale? Mas esperem! Ouço que o anel verdadeiro tem o poder miraculoso de tornar amado o seu portador, agradável perante Deus e perante os homens. Isso é o que deve decidir! Porque os anéis falsos não poderão certamente fazê-lo! Pois bem; quem de vocês é o mais amado pelos outros dois? - Vamos, digam! Vocês calam? Os anéis só atuam para trás? E não para fora? Cada um de vocês só ama a si próprio, sobretudo? - Ah! Então todos os três são trapaceiros trapaceados. Seus anéis não são todos os três autênticos. O autêntico provavelmente foi perdido. Para esconder isso, para substituir essa perda, o pai mandou fazer os três por um".
Saladino - Esplêndido! Esplêndido!
Natã - "E assim", prosseguiu o juiz, "se vocês não querem o meu conselho, em lugar de minha sentença: Vão em frente! - Meu conselho, porém, é o seguinte: tomem a coisa como ela se apresenta. Cada um de vocês tem o seu anel de seu pai, de modo que cada qual crê com certeza que seu anel é o autêntico. - É possível que o pai não quisesse mais tolerar a tirania de um anel único em sua casa! - E sem dúvida ele amava vocês, a todos os três, e os amava igualmente: visto que não quis preterir dois para favorecer apenas um. - É isso! Que cada um de vocês rivalize com ele apenas no amor incorrupto, livre de preconceitos. Que cada um de vocês se esforce nesse desafio a pôr à mostra o poder da pedra de seu anel. Que venha em ajuda desse poder com benignidade, com cordial espírito de conciliação, com prática do bem, com a mais entranhada devoção a Deus! E quando então o poder do anel se revelar aos filhos de seus filhos de seus filhos, daqui a mil, mil anos, eu os convidarei de novo a comparecer perante esta curul de tribunal. Então, um homem mais sábio do que eu estará sentado nela e lhes falará. Podem ir!" - Assim disse o modesto juiz!
GOTTHOLD EPHRAIM LESSING (1729-81) é poeta e dramaturgo alemão, autor de "Natã, o Sábio".
JACÓ GUINSBURG, 92, crítico, ensaísta e professor, é fundador da editora Perspectiva.
INGRID DORMIEN KOUDELA, 65, é docente da pós-graduação em artes cênicas da USP.

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