domingo, 24 de novembro de 2013

O "Trem das Onze" uniu Haddad e Alckmin num palco em Paris

folha de são paulo
REPORTAGEM
Quando os políticos sambam miudinho

RESUMO Enquanto os protestos que varreriam o país tinham início em São Paulo, o governador do Estado, Geraldo Alckmin, e o prefeito da cidade, Fernando Haddad, foram à França promover a capital paulista como sede da Expo 2020. Vídeo inédito, obtido pela Folha, mostra a dupla em ação, cantando Adoniran Barbosa em Paris.
FERNANDO MELLO

"TODO HOMEM cria sem saber/Como respira", diz o primeiro verso de um dos poemas que o francês Paul Valéry (1871-1945) escreveu especialmente para a fachada do Palácio de Chaillot, em Paris. Foi ali que, em 10 de junho de 2013, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), e o governador do Estado, Geraldo Alckmin (PSDB), lançaram a candidatura paulistana para sediar a Expo 2020.
A presença da dupla na França procurava transmitir a imagem de um esforço conjunto e apartidário pela disputa ao direito de sediar a principal feira de eventos do mundo, inferior em tamanho apenas à Olimpíada e à Copa do Mundo.
O coquetel começou com garrafas de champanhe, enquanto garçons passeavam pelo salão com quitutes de salmão, carne e vegetais. Alckmin e Haddad estavam acompanhados de suas mulheres, Lu e Ana Estela.
O evento transcorria de maneira protocolar, quando, às 19h, os dois políticos foram convidados a subir ao palco onde se apresentava a cantora Daniela Mercury.
Microfones em punho, o tucano, à direita da artista baiana, e o petista, à esquerda dela, entoaram "Trem das Onze", de Adoniran Barbosa (1910-82), uma espécie de hino dos paulistas.
Pode-se dizer que o estilo de cada político em cena mimetizou o que se sabe, ou o que transparece, de suas personalidades, como mostra vídeo inédito da apresentação ao qual a Folha teve acesso.
Geraldo Alckmin vestia um terno escuro e gravata alaranjada. Ora cruzava os braços sobre o corpo, como se estivesse em posição de respeito ao hino nacional, ora arriscava passos de samba marcados por meneios de cabeça. Sorriso contido, manteve o padrão "competente" e "correto", bem de acordo com a forma como foi apresentado no jingle de sua campanha vitoriosa em 2010.
Fernando Haddad usava um terno cinza e algo amassado com gravata vermelha e roxa, balançando o corpo a todo momento. Empolgado, arriscou voo solo no verso "só amanhã de manhã", provocando reação da cantora: "O prefeito está sozinho, tá vendo?". Confiante, o político tentou comandar a banda, puxando o "eu não posso ficar" que reconhecidamente chama a recomeçar a música.
O grito, no entanto, entrou na hora errada, merecendo pronta reprimenda da cantora, que seguiu trinando o refrão, acompanhada por piano, contrabaixo, bateria e percussão. Sorriso largo, Haddad resguardava a postura jovial de "homem novo", mote da campanha que o elegeu em 2012.
Enquanto a luz arroxeada dos refletores iluminava o trio canoro, convidados vestindo trajes "passeio completo" sambavam em frente ao palco, celulares em riste, registrando a performance.
Mesmo diante do questionável brilhantismo musical de seus parceiros, Daniela Mercury intercalou os versos do compositor paulista com comentários como "a dupla é boa" e, ao final da apresentação, sentenciou: "O PSDB e o PT estão bem, né, gente?".
FALTA DE RITMO Por trás do "pascalingundum" daquela noite havia mais do que falta de ritmo e de entonação dos governantes.
Nos dias anteriores à viagem, em 6 e 7 de junho, protestos em São Paulo, convocados pela organização Movimento Passe Livre, cobrando a redução de tarifas de transporte público, tinham evoluído para confrontos com a Polícia Militar e quebra-quebra.
Numa foto na capa da Folha, no dia 8 de junho, integrantes da manifestação ocupavam as pistas da via que margeia o rio Pinheiros e voltavam-se para aqueles que tomavam o trem na estação ao lado. Entre os muitos motes levados às ruas em cartazes e faixas naqueles dias, um avisava: "Se a tarifa não baixar, São Paulo vai parar".
Folha apurou que a conveniência de ir a Paris naquele momento de tensão foi sopesada por Alckmin, Haddad e assessores. As equipes preferiram manter a agenda, em vista dos potenciais benefícios da Expo 2020 para São Paulo. Antes de embarcar para a Europa, afinados, os dois defenderam a ação da Polícia Militar.
Procurada pela reportagem,a Prefeitura de São Paulo informou, por meio de sua assessoria, que a decisão da viagem foi tomada pela importância da Expo 2020 e porque, até então, os protestos tinham magnitude considerada normal e compatível com outros atos que ocorrem pela cidade. Segundo a assessoria, o convite para cantar foi feito espontaneamente por Daniela Mercury. O governo do Estado não respondeu à reportagem até a conclusão desta edição.
Em 11 de junho, no entanto, os protestos pela diminuição das tarifas explodiriam. A avenida Paulista, onde o ato daquele dia tinha tido início, parou: dois ônibus foram parcialmente incendiados, e cinco agências bancárias, quebradas.
A manifestação durou até quase as onze da noite --a hora cantada por Adoniran Barbosa, que fizera não muito longe dali, no começo de 1964, numa boate da rua Augusta, a "première" da canção, com os Demônios da Garoa.
DISCURSOS Na véspera, no Palácio de Chaillot, sob o lema "poder da diversidade e harmonia do crescimento", prefeito e governador de São Paulo faziam seus discursos em defesa da candidatura da capital paulista. Foram acompanhados, na fala a empresários e convidados franceses e brasileiros, pelo vice-presidente da República, Michel Temer (PMDB), que não participou do número musical.
O evento teve por cenário a torre Eiffel, vista através das grandes vidraças do palácio, considerado um dos melhores pontos da cidade para a observação da atração.
Construído para a Exposição Universal de 1937 no mesmo local onde se erguera, para a Expo de 1878, o antigo Palácio de Trocadéro, o Chaillot abrigou a Assembleia Geral das Nações Unidas que sagrou a Declaração Universal dos Direitos Humanos no dia 10 de dezembro de 1948.
O documento foi recordado durante a onda de protestos que varreu o Brasil, marcada pela atuação violenta da polícia, muitas vezes arbitrária, contra manifestantes.
DISTANCIAMENTO Uma das explicações mais adotadas para a onda de protestos irradiada de São Paulo para todo o país a partir de junho é a de que ela seria fruto do distanciamento entre os políticos, principais alvos das ruas, e a população que representam.
De acordo com o mais recente "Latinobarómetro" --pesquisa de opinião pública realizada anualmente desde 1995 em 18 países latino-americanos, pelo instituto chileno de mesmo nome--, divulgado no começo deste mês, a confiança dos brasileiros na democracia representativa e nos políticos é uma das menores do continente.
Segundo os dados (referentes a 2011), 26% dos brasileiros se dizem "muito" ou "algo" satisfeitos com o funcionamento da democracia no país --índice próximo à menor média de satisfação com o regime jamais registrada no continente (25%, em 2001).
Além disso, a democracia está longe de ser consenso no país. Enquanto a preferência por ela é expressiva em países como Venezuela (87%), Argentina (73%) e Bolívia (61%), no Brasil ela é considerada a melhor opção por 49% dos entrevistados para o estudo.
Para a diretora do instituto Latinobarómetro, Marta Lagos, a população de diferentes países da América Latina está enviando um recado aos políticos: "Não importa como, mas alguém vai ter que me ouvir". "Os brasileiros aprenderam que mobilidade social é possível. Agora muitos a almejam", diz Lagos à Folha.
LENTES Na opinião de Charles King, professor de relações internacionais da Universidade de Georgetown, é importante que os analistas políticos não se valham de lentes ultrapassadas para observar os protestos atuais.
Falando no âmbito de um debate, em Washington, no qual as revoltas brasileiras foram comparadas por professores de diversas áreas às ocorridas na Turquia e no Egito, King afirmou que as categorias já conhecidas "não se encaixam perfeitamente ao que está acontecendo nas ruas".
Segundo o professor, conceitos como transição entre regimes ou consolidação da democracia estão ligados mais à década de 1990 e não explicam os acontecimentos mundiais nos últimos anos. "Não temos um jeito muito bom para falar sobre como as democracias se comportam", resume King.
Para Diana Kapiszewski, especialista em política brasileira, os protestos no Brasil ganharam força por terem mobilizado grupos ansiosos por governos melhores e com menos corrupção.
Na sua opinião, o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo e outras capitais foi apenas uma faísca, mas a causa principal dos protestos pode ser achada na "desigualdade financeira brasileira e no desgosto dos cidadãos com os políticos". Entre os alvos populares, estavam o governador e o prefeito de São Paulo.
No Palácio de Chaillot, Alckmin e Haddad se mantiveram conectados aos celulares, segundo assessores ouvidos pela Folha, e trocavam informações sobre o que acontecia em São Paulo. Para aliviar a tensão, entre um e outro canapé, chegaram a contar piadas, de acordo com relatos de convidados do evento.
A resposta inicial aos protestos foi articulada entre petista e tucano. Ainda em Paris, o governador chamou os manifestantes de "baderneiros" e "vândalos", acionou a Tropa de Choque da Polícia Militar e disse que iria cobrar o ressarcimento dos prejuízos aos cofres públicos. Fernando Haddad fez coro, dizendo que os manifestantes não usavam de forma adequada a liberdade de expressão e que seus métodos não eram "aprovados pela sociedade".
No dia 19 de junho, Alckmin e Haddad anunciaram em conjunto que as tarifas de transporte cairiam, voltando aos valores anteriores ao reajuste.
COQUETEL O coquetel no palácio foi um evento privado. Na ocasião, o governo paulista tornou pública uma foto de Geraldo Alckmin e sua mulher sorridentes em frente à Torre Eiffel.
O vídeo do show daquela noite não foi divulgado. Não é difícil imaginar que o "Trem das Onze" dos governantes poderia ter jogado gasolina nos protestos.
Uma mostra em cartaz até janeiro no Newseum, em Washington, compila bons exemplos de como as imagens são poderosas na constituição de ideias políticas.
"Creating Camelot" destrincha a longa história do fotógrafo Jacques Lowe ao lado da família Kennedy. Iniciada quando John Fitzgerald Kennedy era candidato à reeleição no Senado (1958), a parceria perdurou até os primeiros anos de presidência do democrata.
A família harmônica e o líder vigoroso registrados naquelas fotografias ajudaram a criar o que se conheceu como mito de Camelot, que aproxima a figura de JFK e seus anos à frente dos EUA à corte do lendário rei Arthur, com um soberano sábio, sua bela rainha e seus valentes cavaleiros.
Porém, como nos recorda o poema de Valéry inscrito nas paredes do Chaillot, muitas vezes a criação nos escapa ao controle racional, e seus produtos, palavras ou imagens, ganham força espontânea.
Três dias após a gravação da cantoria de Alckmin e Haddad, a Folha publicou em sua primeira página a foto do policial militar Wanderlei Vignoli, ferido e apontando a arma para um manifestante. A imagem, feita pelo fotógrafo Drago, do coletivo SelvaSP, ganhou neste mês o Prêmio Esso de Jornalismo de 2013.
O contraste entre a violência das imagens publicadas e a despretensiosa apresentação musical causa, agora, um imponderável estranhamento.
Vistos lado a lado, o policial sangrando e o trio sobre o palco parecem tão distantes quanto os versos do simbolista Vale?ry, sempre em busca de um "eu puro" por meio do "culto ao intelecto", imortalizado nas paredes do palácio, e os do popular Adoniran, com sua prosódia peculiar, entoados naquela noite no interior do edifício.
O anúncio sobre a cidade escolhida para sediar a Expo 2020 está previsto para os próximos dias. São Paulo está no páreo, mesmo que as imagens que ganharam mundo durante os protestos não tenham contribuído para a campanha. Músicas de Adoniran Barbosa são esperadas em uma eventual festa de comemoração.
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Microfones em punho, o tucano, à direita de Daniela Mercury, e o petista, à esquerda dela, entoaram "Trem das Onze", de Adoniran Barbosa, uma espécie de hino dos paulistas
A conveniência da viagem foi sopesada por Alckmin, Haddad e assessores. Optaram por manter a agenda, em vista dos potenciais benefícios da Expo 2020 para São Paulo
No evento, Alckmin e Haddad se mantiveram conectados e trocavam informações sobre o que acontecia em São Paulo. A resposta inicial aos protestos foi articulada entre ambos

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