Me dê motivos
Quando um casal começa a colar papel de parede, o Diabo senta em sua poltrona para assistir
Se você está bem com seu namorado, namorada, marido ou esposa, se acha que encontrou sua cara-metade e que nada pode abalar vossa paz, sugiro um teste: experimentem, juntos, forrar um quarto com papel de parede. Caso, meia hora após o início das hostilidades, digo, das atividades, ainda houver um vínculo afetivo entre os dois, pode crer: é amor de verdade, desses capazes de perdurar na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, de sobreviver a shoppings em véspera de Natal e até --Deus lhes poupe-- ao nascimento de trigêmeos.
Colar papel de parede, em casal, lembra muito estar perdido de carro, em casal: acusações mútuas, soluções antagônicas, ansiedade, desespero. A diferença é que, ao se perder de carro, você fareja o perigo, respira fundo e procura mentalmente as barras antipânico que os levarão para longe da escaldante tensão conjugal. Ao papel de parede, contudo, os amantes se entregam álacres, ternos e tenros como as criancinhas ao mar no filme "Tubarão". Afinal, trata-se de uma melhoria para a casa, um gesto em nome da beleza, um desses bucólicos projetos dominicais que parecem trazer consigo a confirmação de nossa felicidade, tipo fazer pão, tomar banho de banheira, ir à Pinacoteca. Como desconfiar que a meiga estampa colorida é o forro da tumba em que será sepultado o casamento?
Você se lembra da época não tão remota em que colávamos adesivos no carro durante as eleições? Então deve se recordar que, por mais cuidado que tomássemos, sempre ficava uma ou outra bolha de ar. Agora, imagine 18 rolos adesivos de 1,20 m x 2 m sendo aplicados a quatro mãos --é esse o tamanho da encrenca.
Subindo em duas cadeiras, você e sua cara-metade colam a pontinha do primeiro rolo, lá no alto. O desafio é os dois irem puxando o papel vegetal por trás, desenrolando e colando o troço de cima pra baixo, SIMULTANEAMENTE. Um milímetro que um lado (i.e., um cônjuge) vá mais rápido que o outro, o papel engrouvinha --e, acredite, a não ser que vocês tenham feito anos de nado sincronizado ou sido discípulos do sr. Miyagi, vai engrouvinhar.
Adiantando o lado retardatário, vocês tentam reparar o erro, mas só piora: estrias diagonais surgem de ponta a ponta. Aí, começam as acusações. Um diz que o outro foi lerdo, o outro diz que o um é que se apressou. (Toda essa discussão, lembre-se, está sendo travada em cima de cadeiras e com as mãos para cima, encostadas na parede.) O mais afoito dos dois (aquele acusado de acelerar) sugere descolarem a parte que engrouvinhou e colar de novo. O mais cauteloso (o acusado de atrasar) discorda. O afoito, contudo, não quer nem saber e puxa o papel: as bolhas e estrias somem, assim como uma faixa de 1,20 m x 10 cm de tinta e massa corrida, arrancada pelo adesivo.
O afoito tenta colar de novo, mas o volume das cascas de tinta e massa corrida fica evidente --parece um tapete estendido sobre a areia da praia. Vocês olham a parede. Só 30 cm do primeiro rolo foi aplicado. Ainda faltam 35,7 m. Vocês se olham. Estão juntos há seis anos. Pensavam em ter filhos, em fazer pão em casa aos domingos, tomar banhos de banheira, visitar a Pinacoteca e quem sabe até, um dia, forrar aquele quarto com um belo papel de parede.
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