Quando os ossos começaram a latejar achei que era sinusite. Dai foi ficando mais forte a sensação de ter uma criança gorda sentada no meu tórax e comecei a pensar em infarto. Um pouco acima dos joelhos senti uma lerdeza extrema, precisei sentar. Talvez fosse virose. A fraqueza, para médicos angustiados em não explicar o susto da existência, é quase sempre uma doença que se pega no ar.
Mas não demorou para eu entender que meu padecimento se chamava doçura. Eu estava tendo um ataque profundo e incontrolável de meiguice. Era uma síndrome nova que (não, nova não era, devo ter sofrido uma ou duas noites desse mal aos 12 anos) me assolava e eu não tinha ideia ou lembrança do que fazer com ela.
Só deu tempo de tocar de leve o antebraço de Paulo e avisar "olha, vem aí uma avalanche mas...essa não sou eu e eu não tô entendendo nada". Paulo me abraçou e eu chorei baixinho por quase uma hora. Depois dormi vencida como uma criança suja de correria, tombo e sol. A tristeza esvaziada é a única felicidade real.
No dia seguinte despertei absurdamente feminina: Paulo não havia desgrudado do meu corpo a noite inteira. Ele estava com a mão esquerda na minha cintura e a qualquer meio centímetro de deslocamento seus dedos ainda dormentes me resgatavam. Meu quarto estava quente, mas eu sentia uma brisa aliviando meus pensamentos, era uma espécie de proteção oxigenada. Um gostar possível que nem atordoava e nem era pouco. Só sei que achei tudo aquilo bem melhor que todo o resto.
Lembro que usei saia e colori o rosto. Lembro que usei um brinco maior. Fiz um bolo de fubá com erva doce (mentira, mas pensei nele). Eu queria tanto ser mulher (talvez menina) que tive de me controlar, a cada dez minutos, pra não rodopiar cantarolando no centro de qualquer sala. Eu estava contentinha daquele jeito que só se fica quando um muxoxinho de amor é acolhido e aceito. Acho que Paulo estava feliz também. Os homens gostam de nos salvar de nossas invenções macabras mesmo que seja um porre conviver com elas.
Na terapia falei sobre vitória. Eu, há tantos anos pugilista, dessa vez não tinha esmurrado o agressor. Nem mesmo o via como adversário num combate. A mágoa não invadia mais minha casa pelo ralo, vestida de ninja assassina. Eu a recebia pela porta da frente, com um chazinho. Ao invés de ironias cortantes para emascular, humilhar, diminuir e esfolar, eu tinha convidado, em silêncio, a grosseria de Paulo para me assistir entupida de amor.
Cresci disfarçando minha condição de fêmea. Adernando minha pele, meus buracos e meus líquidos com chumbo pontiagudo. Pronta a expulsar qualquer dor com metralhadoras histéricas que, confusas em sua sexualidade, vociferavam másculas como pais protegendo um feto. Nunca um homem sobrou de pé depois de me decepcionar --ainda que a carne viva fosse, muitas vezes, uma loucura apenas minha.
O mundo sempre me pareceu dividido entre florais submissas condescendentes e mulheres que compram apartamentos, chefiam equipes e opinam ao invés de sorrir. Sempre achei que aceitar um tapinha, ainda que verbal, seria enterrar viva a alma da mulher do século 21. E um blá-blá-blá chato pra cacete que, finalmente, me pareceu ser papo de baranga que não trepa.
Mas dessa vez, nessa tarde, depois de tanto fugir em círculos da delicadeza, pude me vestir de algo que, na minha ignorância, chamei apenas de nudez. Chorei, dormi e permiti, sem nenhuma inteligência, que um homem ficasse.
Tati Bernardi é escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário