domingo, 13 de outubro de 2013

'Não dormi com o presidente', avisa consultora que inspirou 'Scandal'

folha de são paulo
Judy Smith, ex-gestora de crise na Casa Branca, diz ter ética e atitude diferentes da personagem
Série é a primeira com protagonista negra na TV americana em 35 anos; 2ª temporada é exibida aqui pelo Sony
MARCO AURÉLIO CANÔNICODO RIOOlhando para a plateia majoritariamente feminina que acabara de assistir ao piloto da série "Scandal", cuja protagonista é inspirada em sua vida, a americana Judy Smith, 54, se antecipa à pergunta que inevitavelmente viria.
"Devo deixar uma coisa clara antes de começarmos: não dormi com o presidente", diz ela, referindo-se ao ocupante da Casa Branca e diferenciando-se da protagonista.
"Com nenhum deles."
Não que Smith, uma gerenciadora de crises que atuou em casos históricos dos governos Reagan (Irã-Contras), Bush (Guerra do Golfo) e Clinton (o escândalo Monica Lewinsky), fosse admitir caso tivesse feito como Olivia Pope, seu alter ego na série.
Sigilo e discrição são essenciais em sua área de atuação, como ela ressalta para o público que assistiu a sua palestra no último domingo, durante o Festival do Rio.
Seu trabalho foi a inspiração para "Scandal", produzida por Shonda Rhimes (criadora de "Grey's Anatomy") e hoje em sua segunda temporada no Brasil, onde novos episódios são exibidos pelo canal Sony às segundas, 22h.
A série conta a história de uma ex-consultora de mídia da Casa Branca, interpretada por Kerry Washington ("Django Livre"), que abre uma empresa de gerenciamento de crises, ajudando a proteger a imagem pública de figuras da elite --políticos, executivos, celebridades e corporações.
"Scandal se tornou algo importante porque foi a primeira vez que uma mulher afro-americana interpretou a protagonista na TV, nos últimos 35 anos", diz Smith, que é também uma das produtoras e consultora de roteiro.
"O público feminino fica feliz de ver alguém com quem pode se identificar. Olivia é uma mulher forte, no ápice de sua forma, mas não é perfeita, tem uma vida pessoal um tanto tumultuada, para dizer o mínimo."
DURONA
Diferentemente do estilo "gladiadora de terno" que caracteriza a protagonista da série, Smith diz adotar uma postura mais suave e mais dentro da lei.
"Não encorajo meus investigadores a bater nos outros para obter informação ou a mexer em cenas de crimes."
Ela e Pope têm em comum o que ela chama de "compaixão pelo cliente". Mas mesmo quando eles praticaram algum crime?
"Todos cometemos erros. A diferença é que os erros que eu e você cometemos não aparecem nos jornais ou na televisão. Acredito muito no perdão e na redenção. O importante é aprender com os erros", responde.

    Marcelo Gleiser

    folha de são paulo
    Cinco bilhões de anos de solidão
    Mesmo se houvesse mais seres inteligente na galáxia, estariam tão longe que, para todos os efeitos, estamos sós
    Cinco bilhões de anos de solidão. Esse é o nome do novo livro do jornalista Lee Billings, lançado na semana passada nos EUA. O título, obviamente, faz menção ao romance de Gabriel García Márquez, com os cem anos mudados para 5 bilhões.
    Os 5 bilhões aqui retratam, em números arredondados, a idade da Terra e do Sistema Solar. O número mais preciso é 4,5 bilhões de anos, mas ficaria meio estranho no título de um livro.
    A afirmação de que são 5 bilhões de anos de solidão vem do fato de que não temos indicação de que haja outras formas de vida no Cosmo, especialmente inteligentes. Billings traça a história da busca pela vida extraterrestre, incluindo entrevistas com alguns de seus protagonistas.
    Quando falamos de vida extraterrestre, temos de ter cuidado para diferenciar entre vida simples e vida complexa. Por vida simples, entende-se seres unicelulares, como bactérias. A vida surgiu há cerca de 3,5 bilhões de anos, 1 bilhão de anos após a formação do nosso planeta.
    Por que a demora? Durante seus primeiros 600 milhões de anos, a Terra foi bombardeada por asteroides e cometas, que tornavam sua superfície um inferno. Só em torno de 3,9 bilhões de anos atrás é que a coisa se acalmou e os oceanos fincaram pé. Se a primeira vida de que temos informação surgiu cerca de 3,5 bilhões de anos atrás, foram apenas 400 milhões de anos entre a calmaria dos bombardeios celestes e a vida. Não é muito tempo quando se pensa em bilhões de anos.
    A vida na Terra foi dominada por bactérias por quase 3 bilhões de anos. Houve uma sofisticação em que células simples (procariotas) tornaram-se mais complexas (eucariotas, com o material genético protegido num núcleo), mas ficou por aí. A transição da vida unicelular para a multicelular deu-se em torno de 600 milhões de anos atrás e, na explosão do Cambriano (540 milhões de anos atrás), tomou força.
    Se as leis da física e da química são as mesmas no Cosmo, e se só na nossa galáxia há cerca de 200 bilhões de estrelas e mais de 1 trilhão de planetas e luas, é natural especularmos que há a probabilidade de existirem outras terras --planetas com água, carbono e oxigênio, onde a vida também é sofisticada.
    Mas esse raciocínio é simplista, como explico no livro "Criação Imperfeita". A história da vida em um planeta reflete sua história.
    A trajetória da vida na Terra é única e depende de vários fatores geofísicos: a existência de uma Lua grande, que estabiliza a inclinação do eixo de rotação do planeta; de um campo magnético forte o suficiente para refletir radiação cósmica nociva a seres vivos; de placas tectônicas que, ao moverem-se, regulam o gás carbônico na atmosfera, que por sua vez é densa e rica em oxigênio. A lista é longa. Seres complexos precisam de planetas estáveis, com muita energia disponível. Não basta o planeta ter água líquida e carbono para que tenha vida.
    Quando vemos as várias barreiras que a vida simples transpôs para tornar-se inteligente, entendemos o título do livro de Billings. Mesmo se outros seres inteligente existirem na galáxia, estariam tão longe que, para todos os efeitos, estamos sós.
    E se estamos sós neste planeta mágico, temos de aprender a celebrar nossa existência e a proteger o que temos a todo custo.

      Mônica Bergamo

      folha de são paulo

      Fenômeno na internet, humorista Felipe Neto já fez seu primeiro milhão

      Quem só conhece o carioca Felipe Neto, 25, pela fama conquistada na internet, com vídeos em que mistura humor e palavrões para reclamar de tudo e de todos, não reconheceria o rapaz tímido e ponderado que acompanha o repórter Marco Aurélio Canônico a um restaurante mexicano, na Barra da Tijuca, no Rio.
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      "Aquele não sou eu, é um personagem", diz o criador do Não Faz Sentido, canal hospedado no YouTube desde 2010, com mais de 2,5 milhões de inscritos e 49 vídeos que somam quase 180 milhões de visualizações --a maior média por vídeo dos canais nacionais no site.
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      "Meu objetivo era interpretar, porque eu estava muito afastado do teatro, onde comecei com 12 anos. Coloquei óculos escuros e incorporei uma coisa mais agressiva, para transformar num projeto de vídeo", explica.

      Felipe Neto é fenômeno na internet

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      Rony Maltz/Folhapress
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      Felipe Neto, ator e empresário, no escritório de sua empresa, Parafernalha, no Rio de Janeiro, com o cenário de videogame que é usado na gravação de esquetes e programas
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      A repercussão dos vídeos --principalmente daqueles em que ataca alvos da idolatria adolescente, como o cantor Fiuk e os filmes da série "Crepúsculo-- transformou o rapaz em celebridade da web e trouxe anunciantes e dinheiro (segundo ele, seu faturamento com publicidade ultrapassou US$ 1 milhão, cerca de R$ 2,1 milhões).
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      "Quando ganhei meu primeiro dinheiro com o Não Faz Sentido, comecei a perceber que o estilo do canal tinha prazo de validade. É um projeto repetitivo, estridente, agressivo, não tinha como fazer aquele modelo se perpetuar." Criou então a Parafernalha, produtora de vídeos de humor lançada em 2011, espécie de precursora teen do Porta dos Fundos.
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      A escolha do nome da produtora foi tão aleatória que Felipe nem sequer sabia a grafia correta (parafernália). "Quando fui registrar um CNPJ, dei o primeiro nome que veio à cabeça, e não sabia como se escrevia."
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      Hoje, a Parafernalha emprega mais de 30 pessoas e coloca no YouTube dois vídeos por semana (às quartas e aos sábados), conseguindo mais de 20 milhões de acessos por mês e atraindo anunciantes como Pepsi e Credicard. Também lançou, no início deste ano, a primeira minissérie brasileira da Netflix, "A Toca", inspirada na britânica "The Office", com três episódios de meia hora.
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      Ele passou pela televisão, com duas séries no Multishow e um quadro no dominical "Esporte Espetacular", da Globo. "Eu tinha o sonho de fazer TV, mas, quando fiz, perdi o tesão. Os anunciantes controlam tudo, você tem quase zero liberdade criativa. Eu vinha da internet, onde tinha 100% de liberdade."
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      Quando fala de conquistas e de planos futuros, Felipe incorpora um empresário ambicioso e meticuloso, versado no linguajar dos livros de RH e calejado no trato com a imprensa --fez "media training" após "sofrer muito preconceito de jornalistas".
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      Narra sua história ao estilo "self-made man": nasceu em uma família de classe média baixa no subúrbio carioca de Engenho Novo e, na base do autodidatismo, aprendeu inglês ("Não tinha grana para o cursinho") e webdesign.
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      Começou a trabalhar aos 13 anos fazendo bico como vendedor durante as férias. Juntou dinheiro e arriscou na internet. Montou um serviço de telemensagens e criou o Is Free, site de compartilhamento de séries de TV (já extinto).
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      Diz ter nascido com "essa gana por empreender". Encontraria o caminho para a fama ao gravar e colocar no YouTube os vídeos em que incorporava seu personagem mal-humorado e reclamão.
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      "Sempre tive interesse pela internet. Quando eu tinha 11 anos, a família inteira se uniu para me dar um computador de Natal. Chorava pedindo. Me interessei pelos websites, me tornei designer gráfico. Estudei sozinho, como tudo que estudei na vida", diz. Chegou a fazer faculdade de desenho industrial e de direito, mas abandonou ambas.
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      Na mesma época em que ganhou o computador, foi diagnosticado com deficit de atenção --a falta de interesse na escola fez a mãe o levar a um psiquiatra. "Ele me deu receita para tomar Ritalina, mas minha mãe não quis e eu também fiquei com medo."
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      Hoje em dia vai ao psiquiatra semanalmente e toma Ritalina desde os 23 anos, "porque meu problema tem de ser controlado mesmo. Quando a Parafernalha começou a dar certo, eu comecei a ter obrigações que eram muito chatas, e não fazia. Aí comecei a tomar o remédio".
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      A outra droga que consome é o cigarro. Cioso de sua imagem, pede para não ser fotografado com um dos dois que acende ao longo das seis horas em que a Folha o acompanha. "Muito adolescente me trata como ídolo. Se me vê fumando, pode até condenar, mas já cria uma maior naturalidade, entendeu? Eu tratava com mais naturalidade porque minha mãe fumava."
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      Felipe morou sempre com a mãe, Rosa, que é pedagoga e funcionária de creche há 27 anos ("Suga muito dela, ela trabalha 12 horas por dia"). Alexandre, o pai, é psicólogo; tinha 19 anos quando o filho nasceu e separou-se da mulher três meses depois.
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      Há três anos, Felipe vive com a gaúcha Maria Eduarda Magalhães, 24, que não o conhecia até vê-lo no "Programa do Jô", em 2010. Gostou do que ouviu e escreveu para ele. O encontro demorou alguns meses, até que ela foi passar férias no Rio e não voltou mais.
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      O casal mora próximo ao escritório. "Tenho zero luxo, não tenho carro, moro num apartamento alugado, pequenininho. Tudo que ganhei investi nas empresas."
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      Seu investimento mais recente é a Paramaker, uma agenciadora de canais de vídeo. "A gente agencia hoje mais de 2.500 canais do YouTube brasileiro, com 250 milhões de visualizações por mês. Dos dez canais mais vistos do país, cinco são nossos: o do Cauê Moura [Desce a Letra], Mundo Canibal, Parafernalha, Não Faz Sentido e o da Kéfera [5inco Minutos]."
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      A empresa surgiu da união com os americanos do Maker Studios, líderes mundiais em gerenciamento de canais do YouTube. A rotina de Felipe é hoje mais empresarial e menos artística (quase não participa de vídeos). Mas nos fins de semana ele experimenta a vida de celebridade, viajando para promover seu livro "Não Faz Sentido - Por Trás da Câmera" (ed. Casa da Palavra).
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      Lançada em agosto, a obra está na lista das mais vendidas e esgotou a primeira edição (15 mil exemplares). Felipe é um dos autores que Paulo Coelho sugeriu que fossem levados para a Feira de Frankfurt --as ausências teriam feito o mago recusar o convite do governo brasileiro.
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      "As pessoas, assistindo a 30 segundos de um vídeo, criavam uma imagem sobre mim, como se eu fosse um cara rebelde que falava dos adolescentes para fazer sucesso. E não faziam a menor ideia de como eu tinha chegado até ali", diz Felipe, sobre o que o levou a escrever o livro.
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      "Sofro com esse estigma. Não estou mais fazendo reunião com o Multishow, mas com o presidente de uma empresa de mídia que controla, sei lá, R$ 2 bilhões por ano. Esse cara ter essa imagem de mim, do tipo 'ah, vou conversar com um moleque', é muito pior do que um jornalista me metendo o pau."
      Mônica Bergamo
      Mônica Bergamo, jornalista, assina coluna diária publicada na página 2 da versão impressa de "Ilustrada". Traz informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999.

      Mauricio Stycer

      folha de são paulo
      Cortina de números
      A divulgação de índices de audiência nunca ocorreu de forma tão aberta e agressiva quanto nos dias de hoje
      A ombudsman da Folha tratou em recente coluna (15/9) dos riscos que os jornalistas especializados em televisão correm ao divulgar números de audiência.
      No texto, Suzana Singer observa: "Ao jornalista cabe desconfiar dos números mais vistosos e lembrar-se da máxima de que estatísticas bem torturadas dizem qualquer coisa'. Os canais de TV, do mesmo modo que as empresas, produzem centenas de dados positivos, oferecidos diariamente à imprensa. É a aposta no vai que cola..."
      O alerta não poderia ter sido feito num momento mais apropriado. Não me lembro de nenhum outro período em que a divulgação de índices de audiência tenha ocorrido de forma tão aberta e agressiva quanto hoje.
      Os números informados em colunas de jornal e sites, como lembra a ombudsman, "são sempre obtidos de segunda mão", uma vez que o Ibope não os fornece ao público, mas apenas a seus clientes.
      O instituto, porém, não se opõe a que as emissoras passem adiante os dados consolidados de audiência (somente a divulgação dos dados "prévios" não é autorizada). Record e SBT informam diariamente a jornalistas da área, por e-mail, números que consideram interessantes divulgar.
      A Band, quando algum programa seu consegue algum resultado extraordinário, faz o mesmo. Já a audiência da maior parte dos programas da Globo é publicada, também de forma diária, em diferentes blogs.
      Essa divulgação, quase simultânea, eventualmente dá margem a confusões. Há poucas semanas, vi que Record e SBT festejaram, nas respectivas comunicações que enviaram à imprensa, a conquista da vice-liderança num mesmo horário. Como seria possível? Uma análise mais detalhada dos números, sem eufemismos, mostrou que não houve vencedoras na batalha, mas um empate.
      Na luta agressiva que travam pela vice-liderança, posição fundamental do ponto de vista do mercado publicitário, Record e SBT naturalmente não fazem estardalhaço sobre uma informação que diz muito das transformações pelas quais passa a indústria audiovisual: a rigor, nenhuma das duas está em segundo lugar.
      Com exceção da manhã, nas demais faixas do dia, o conjunto que o Ibope chama de "Outros Canais" já ocupa o segundo lugar no ranking das audiências. Ou seja, depois da Globo, o segundo maior contingente de espectadores está sintonizado em coisas como TV paga, internet conectada à TV, UHF, games etc.
      A frenética divulgação de números de audiência ajuda a dar relevo ao impacto que a Globo, por ter a grade mais estável e longeva, tem sofrido em meio ao processo de mudanças nos hábitos dos telespectadores.
      Pelo menos uma vez por semana, algum levantamento de dados feito pela concorrência chega aos sites ou colunas de jornais informando que determinado programa da Globo atingiu a sua mais baixa audiência na história. Um ponto menos destacado nestes estudos é que a audiência perdida não está migrando para os seus concorrentes diretos.
      Por fim, chama a atenção neste ambiente agitado a iminente chegada ao Brasil de um concorrente ao Ibope, o grupo alemão GfK, contratado pelas principais emissoras de TV aberta, exceto a líder. É um sinal de que a guerra descrita neste texto tende não apenas a continuar, como a ganhar novos contornos.

        Ferreira Gullar

        folha de são paulo
        Um novo Carnaval
        Hoje, ninguém sabe de cor os sambas das escolas, que antigamente eram cantados por todos
        Fernando Pamplona revolucionou o Carnaval carioca, mas, antes dele, eu já assistia ao desfile das escolas de samba. É que me casara com uma moça da Tijuca, Thereza Aragão, que amava o Carnaval e a música popular. Ela seria, anos mais tarde, responsável, com suas segundas-feiras de samba, no Teatro Opinião, em Copacabana, por levar o samba de subúrbio para a zona sul do Rio.
        Naqueles anos, o desfile era na avenida Presidente Vargas, no trecho próximo à Candelária, e não havia nem passarela nem arquibancada. A gente assistia ao desfile inteiro, em pé, nas calçadas. Depois, o desfile foi transferido para a avenida Rio Branco, o que melhorou para nós que passamos a assisti-lo das janelas da Redação do "Jornal do Brasil", onde eu trabalhava.
        Foi quando Pamplona surgiu, emprestando ao Salgueiro uma concepção nova do desfile carnavalesco, não só plasticamente, mas também tematicamente. Aí ele nos ganhou. Thereza, eu, Vianinha e a turma inteira do grupo Opinião nos tornamos frequentadoras do desfile e dos ensaios do Salgueiro.
        As alegorias e fantasias das escolas de samba, até então, tinham gosto acadêmico, mesmo porque seus autores eram gente da Escola Nacional de Belas Artes e o pessoal mais conservador, para quem vestir-se de princesa é que era beleza.
        Deve-se reconhecer, também, que fantasiar-se de nobre correspondia à aspiração dos sambistas, que viam a nobreza como um sonho inalcançável, a não ser no Carnaval. Fantasiar-se de conde era tornar-se conde por algumas horas.
        Pamplona rompeu com isso, não só acabou com as fantasias de príncipes e princesas, como pôs como enredo a história do negro, descendente de escravos. Foi o caso do enredo "Quilombo dos Palmares", que assinalou mais uma vitória do carnavalesco inovador.
        Se do ponto de vista do enredo, como se viu, Pamplona rompeu com a tradição, creio que foi no plano visual que seu ímpeto inovador foi mais determinante. Lembro-me do entusiasmo de que fomos tomados ao ver as alas do Salgueiro vestidas com fantasias de grande beleza e despojamento.
        Foi a visão moderna das artes plásticas --particularmente a tendência abstrata geométrica-- que inspirou Pamplona e sua equipe. Mais que os adereços e enfeites, o que encantava era a beleza do vermelho e do branco, explorados em sua simpleza e plenitude. E mais o contraste com a pele negra dos passistas e das passistas, revoando no asfalto. Ver aquelas alas desfilando foi uma experiência inesquecível.
        E, como tinha que ser, a nova concepção do desfile carnavalesco conquistou outras escolas. Nem todas com a mesma facilidade, especialmente aquelas mais antigas e de mais arraigadas tradições. A Mangueira, por exemplo, resistiu à inovação, até onde pôde e, de qualquer modo, jamais se deixou subverter pela revolução salgueirense.
        Mas essa revolução não se limitou ao âmbito das escolas e dos desfiles. Fascinou uma nova geração de artistas e intelectuais da zona sul do Rio, que passaram a frequentar não só os desfiles, como também os ensaios das escolas e até desfilar nelas. Era branco no samba? Era, mas com paixão.
        Alguns anos depois, construiu-se a Passarela do Samba, mal apelidada de Sambódromo. As antigas arquibancadas de madeira e tubos de metal eram montadas para o desfile e desmontadas depois. A nova passarela, em concreto armado, é permanente, custou caro e fica grande parte do tempo sem utilidade.
        O desfile, por sua vez, sofreu mudanças. Porque as escolas cresceram, foi necessário estabelecer um limite de tempo para cada uma desfilar, o que levou à aceleração do ritmo dos sambas-enredo, que viraram marchas.
        Hoje, ninguém sabe de cor os sambas das escolas, que antigamente eram cantados por todos. O som dos alto-falantes estendidos por toda avenida torna inaudível o canto das alas, o que reduz a emoção e a participação do espectador. As escolas passaram a alugar fantasias para estrangeiros desfilarem, gente que não sabe cantar nem dançar o samba da escola.
        Depois de tudo isso, Fernando Pamplona, que trazia o Carnaval no sangue, nunca mais foi assistir aos desfiles. Nem eu.

          Pão e Circo - Paula Cesarino Costa

          folha de são paulo
          Pão e Circo
          RIO DE JANEIRO - A farra era total sob a tenda montada no verão carioca de 1982. Um grupo de jovens, magros e animados, inventou um jeito diferente de levar ao público teatro, circo, música, dança.
          O documentário "A Farra do Circo", de Roberto Berliner e Pedro Bronz, não pretende contar a história definitiva do Circo Voador e da geração capitaneada por Perfeito Fortuna. Mas, ao mostrar parte dela, revela como, há 31 anos, um grupo de malucos beleza decidiu erguer uma lona no Arpoador e criar um espaço cultural onde, de dia, 300 jovens eram funcionários, professores e praticantes das mais diversas artes.
          A ideia era boa, mas durou pouco. O poder público apontou irregularidades e fechou o lugar. Atrapalhou o que se construía. A lona foi para a Lapa, região degradada do centro.
          Premiado no Festival do Rio e programado para a Mostra de Cinema de São Paulo, "A Farra do Circo" mostra como a originalidade artística pode dar vigor a uma cidade. No caso, como o Circo Voador deu início à revitalização (que ainda iria demorar) da Lapa, hoje lotada e moda entre cariocas e turistas.
          Só com imagens de arquivo, algumas precárias, o documentário --sem usar o corte para o close de alguém careca, gordo ou ressentido contando como era ser cabeludo, magro e sonhador-- registra como uma trupe desorganizada, sem dinheiro e quase sem patrocínio mudou o panorama da cultura carioca.
          Ali surgiu o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone --que trouxe uma lufada de novidade num país sob o efeito dos anos de ditadura--, com gente como Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Evandro Mesquita, Deborah Colker, Gringo Cardia e Chacal.
          O filme tem o mérito de lembrar que cultura é arma de transformação. O Circo Voador parecia um projeto de desbunde de quem ganhava dinheiro para o pão de cada dia, mas foi uma ação política efetiva.

            Helio Schwartsman

            folha de são paulo
            Imaginando biografias
            SÃO PAULO - Que me perdoem os músicos que defendem a necessidade de autorização do retratado para a publicação de biografias, mas essa é uma posição insustentável. Ela contraria não só o ordenamento constitucional como também princípios elementares da razoabilidade. Alguns experimentos mentais mostram isso com clareza.
            Imagine um vilão bem malvado, tipo Hitler ou Stálin. Imagine ainda que ele esteja vivo e morando no Brasil. Pelo artigo 20 do Código Civil, ninguém pode escrever e comercializar uma biografia desse personagem sem seu aval. E será que um retrato de Hitler que contasse com sua aprovação poderia ser fiel à história?
            O problema, obviamente, não está restrito a biografias. Imagine que um historiador tenha redigido uma obra sobre acontecimentos recentes do país e, de passagem, ele tenha citado um político que, por alguma razão, não tenha ficado bem na foto. Bem, pelo nosso Código Civil, esse representante do povo, se julgasse que sua honra, boa fama ou respeitabilidade foram atingidos, poderia pleitear e obter da Justiça a proibição do texto. E isso mesmo que ele não seja o fulcro da obra e os fatos relatados sejam rigorosamente verdadeiros.
            Vamos agora dar asas à imaginação. Suponha que alguém decida publicar um índice de todas as condenações judiciais sofridas por um homem público que não goza do favor da mídia, com hiperlink para as sentenças. Obviamente, a vítima dessa biografia tecnológica poderia considerar que sua reputação foi prejudicada e recorrer aos sempre justos magistrados. O que eles deveriam fazer? Deveriam censurar uma publicação que remete a documentos oficiais?
            Não tenho nada contra o biografado abocanhar parte dos lucros. Mecanismos de mercado já incentivam acordos, uma vez que é muito mais fácil escrever esse tipo de obra com a ajuda da pessoa retratada. Resta óbvio, porém, que a regra vigente, na forma em que está, é absurda.
            helio@uol.com.br