domingo, 20 de outubro de 2013

Marcelo Leite

folha de são paulo
Mamar, abraçar, beijar
A biologia anda empenhada em elucidar o que se chama de natureza humana --ou será natureza mamífera?
É BEM robusta a correlação entre maus-tratos ou abandono na infância e adultos que se tornam ansiosos ou antissociais. Quem conviveu com jovens adotados tardiamente sabe bem do que se trata.
Essa associação parece algo bem básico na chamada natureza humana. Seria bobagem, contudo, sair procurando genes para esse traço comportamental, pois obviamente está em jogo um impacto do ambiente (criação) sobre as predisposições com que o indivíduo vem ao mundo.
Os primatologistas Frans de Waal e Zanna Clay estranharam a ausência de estudos sobre essa correlação em macacos. Se estamos diante de algo tão fundamental, é provável que tenha raízes ancestrais e possa ser observado também em nossos parentes mais próximos.
Waal e Clay se concentraram nos bonobos (Pan paniscus), aqueles chimpanzés miúdos que têm a fama de ser mais amorosos que seus primos corpulentos (Pan troglodytes). Em artigo na revista "PNAS" da semana passada, eles contam o que viram num santuário primata da República Democrática do Congo.
Órfãos bonobos, em geral resgatados após a morte das mães por caçadores, recebem ali cuidados individuais de mulheres tratadoras. Os adotados se revelaram menos propensos a consolar outros jovens que sofressem reveses (como apanhar numa briga) na sua frente.
Já os bonobos criados pelas próprias mães agem de maneira diferente. Quase sempre estão prontos a abraçar, acariciar e beijar os colegas que se acham na pior.
A carga emocional de experiências precoces de vida deixa marcas indeléveis também nos macacos. Mesmo quem considera duvidosos os paralelos entre primatas e humanos pode ver aí que Sigmund Freud parece ter topado com um continente que lhe foi impossível mapear, por falta dos meios adequados.
Que marcas seriam essas? Meras representações mentais ("complexos") não se qualificam como explicações científicas satisfatórias, pela dificuldade de testá-las. Como a cavalaria da genética não pode ser chamada em socorro, há pesquisadores empenhados em convocar uma sua parente, a epigenética.
Esse ramo da biologia molecular estuda não os genes, mas um sistema de marcações que se sobrepõe às longas fitas enroladas dos cromossomos. Certas moléculas se acoplam a trechos específicos do DNA compactado e dificultam seu desenrolamento, pela célula, para uso da informação neles contida. O gene está ali, mas também não está.
A hipótese é que as marcações adquiridas sejam o veículo para o ambiente influir na produção de certos hormônios ou neurotransmissores, por exemplo. Informações determinantes transmitidas entre gerações, mas não por meio de genes.
Isso começou a ser estudado não com primatas, mas com roedores. Em 2004, Michael Meaney e Moshe Szyf, da Universidade McGill (Canadá), mostraram como os filhotes de ratas que os lambiam muito se tornavam adultos menos estressados e tinham mais receptores glucocorticoides, importantes na modulação de hormônios do estresse.
Não importa se você é primata ou roedor. Se quiser ter filhos de bem com a vida, beije-os e abrace-os muito, em especial quando bebês.
Óbvio, não? Bem, a ciência biológica anda mesmo empenhada em elucidar o que o senso comum chama de natureza humana --ou será melhor dizer natureza mamífera?

    Paula Cesarino Costa

    folha de são paulo
    O poço do Visconde
    RIO DE JANEIRO - "Que é digressão, Visconde?", pergunta Pedrinho.
    "É sair do assunto principal, como nós saímos...", ensina o Visconde de Sabugosa no terceiro capítulo de "O Poço do Visconde", clássico prenunciador de Monteiro Lobato, ao justificar por que falava de ar e pressão atmosférica quando explicava o que é petróleo.
    As discussões sobre o primeiro leilão de um poço do pré-sal --razão de preocupação da presidente Dilma Rousseff, de ansiedade do mercado e de sofrimento para nacionalistas e sindicalistas-- parecem às vezes menos instrutivas do que a conversa do Sabugosa com as crianças do sítio do Pica-Pau Amarelo.
    Polemista e crítico severo do atraso do país, o escritor fez do livro infantil, lançado em 1937, parte de sua campanha pela exploração do petróleo.
    É leitura dominical ideal para a véspera do leilão do campo de Libra, na bacia de Santos, que tem reservas estimadas entre 8 e 12 bilhões de barris.
    Muito antes da abertura do primeiro poço de petróleo no Brasil, o Visconde explicava que os brasileiros "bobamente" não exploravam petróleo por causa da ação e do interesse de companhias estrangei- ras "espertalhonas".
    Lobato teve empresa que buscava extrair petróleo. Faliu. Crítico da política de exploração de Getúlio Vargas, sofreu a censura do seu livro "O Escândalo do Petróleo", em que denunciava a venda de segredos do subsolo a empresas estrangeiras. Foi preso.
    "No dia em que o Brasil passar de comprador a vendedor de petróleo, então deixaremos de ver essa coisa tristíssima de hoje --milhões de brasileiros descalços, analfabetos, andrajosos-- na miséria. O Brasil tem todos os elementos para tornar-se um país riquíssimo --mas riquíssimo de verdade, e não, como hoje, apenas rico de possibilidades'-- ou de garganta'", sentenciou o Visconde.
    O "país do futuro" continua rico em "possibilidades". Agora é o pré-sal.

      Helio Schwartsman

      folha de são paulo
      Finalidade sem fim
      SÃO PAULO - Sempre instigante, Contardo Calligaris aproveitou a publicação de um estudo sugestivo de que ler ficção pode melhorar nossa capacidade de empatia para decretar que não devemos confiar em quem não esteja sempre com um romancezinho à cabeceira. Como Contardo, prefiro gente que lê a quem não o faz, mas hesito em erigir a literatura em critério de probidade.
      O trabalho é muito interessante. Os autores submeteram voluntários a diferentes tipos de texto (literários, populares e de não ficção) e, logo em seguida, compararam a performance de cada grupo em testes que avaliam a habilidade para deduzir estados cognitivos e emocionais de terceiros, a famosa Teoria da Mente. Quem leu trechos de romances de qualidade se saiu melhor do que quem ficou com "best-sellers" e textos não ficcionais.
      O problema com esse estudo é que ele suscita mais questões do que responde. Não indica, por exemplo, se esses efeitos são cumulativos ou duradouros. E, se forem apenas transitórios, como parece mais provável, desaparecendo ao cabo de dias ou horas, será que ainda conservam valor intrínseco? Nesse caso, a melhora da empatia seria só o resultado inconsciente de um estímulo manipulado pelos pesquisadores. Isso se parece mais com lavagem cerebral do que o exercício de uma virtude.
      Cabe lembrar, como já ensinava Kant, que um homem pode fazer a coisa certa movido ou por constrangimentos externos ou por reconhecer a racionalidade por trás de uma norma ou regra. Só na segunda hipótese ele age de forma moral e livre.
      Aqui, numa reviravolta à la Conan Doyle, a defesa da literatura como instrumento para cultivar pessoas melhores paradoxalmente esvazia o valor moral dos gestos empáticos executados por influência de livros.
      Suponho que, nesse caso, seja mais prudente continuar fiel a Kant sustentando que, no plano filosófico, a literatura e a arte permaneçam como uma "finalidade sem fim".

        Na arapuca chavista

        EDITORIAIS folha de são paulo
        editoriais@uol.com.br
        Na arapuca chavista
        Quando governou a Venezuela de forma interina por mais de cem dias, Nicolás Maduro mostrou-se um presidente fraco. Analistas condescendentes imaginavam que a sombra de seu mentor e padrinho político, Hugo Chávez, o impedisse de arriscar passos próprios.
        Não era o caso. Maduro já está há seis meses na Presidência efetiva da Venezuela, e os problemas se acumulam --administrar o país parece um trabalho além de sua capacidade. A inflação anual beira 50%; o PIB crescerá cerca de 1%; o desabastecimento de alimentos aumenta; a insegurança campeia.
        Vencedor de uma disputa apertada em 14 de abril, Maduro beneficiou-se eleitoralmente da comoção pela morte de Chávez (1954-2013) e, agora, aferra-se à cartilha populista deixada pelo antecessor.
        Repetindo o que Chávez fez quatro vezes no poder, tenta aprovar uma lei habilitante para governar por decreto, durante um ano, na economia e na luta anticorrupção.
        Não há sinais, porém, de que Maduro pretenda promover mudanças profundas e necessárias na economia venezuelana. O câmbio, por exemplo, permanecerá controlado, apesar de o dólar ser vendido no mercado paralelo a um preço seis vezes maior do que a taxa oficial.
        O aprendiz de caudilho tampouco mexerá no preço da gasolina, a mais barata do mundo --um litro custa R$ 0,03. Mantém-se o populismo, mesmo que signifique não enfrentar o deficit no Orçamento, já de 8,5% do PIB no ano passado.
        Enquanto isso, itens básicos, como leite e carne, escasseiam nas prateleiras, já que são pouco produzidos no país e têm a importação dificultada pela falta de dólares.
        O descontrole geral anima criminosos organizados, que se sentem à vontade para ampliar remessas de cocaína ao exterior. No mês passado, a polícia da França encontrou 1,3 tonelada da droga num avião comercial que partiu de Caracas --foi a maior apreensão do tipo na história francesa.
        Ante fatos negativos, Maduro recorre a outra fórmula chavista: criou o Centro Estratégico de Segurança e Proteção da Pátria. Dirigido por um general e responsável por monitorar "atividade inimiga interna e externa", decide quais dados do governo são secretos ou não. Além disso, qualquer entidade é obrigada a entregar informações solicitadas pelo órgão.
        Num país em que a imprensa sofre restrições amiúde, fica ainda mais difícil avaliar o real apoio que o presidente encontra na população. As eleições municipais de dezembro, sem dúvida pouco livres, serão, de todo modo, um termômetro inicial do mandato de Maduro.

        Antonio Risério

        O sertão e muito mais
        FOLHA DE SÃO PAULO
        Luiz Gonzaga e as fronteiras do Nordeste
        ANTONIO RISÉRIORESUMO Mais do que o praiano Dorival Caymmi, o músico de Exu (1912-89) exportou a cultura do Nordeste para os núcleos urbanos do Sul e do Sudeste. Elemento agregador para os migrantes, Gonzaga ganha, em dezembro, um museu que busca refletir a dialética entre tradição e tecnologia que ele próprio imprimiu a sua música.
        Costumo dizer que Luiz Gonzaga e Dorival Caymmi eram sociologicamente previsíveis. Não que fossem necessariamente acontecer, como efeitos de alguma lei inflexível que regesse as coisas do mundo. Mas porque os ambientes ecológicos e sociais eram propícios à aparição de um e do outro.
        Caymmi nasceu num recôncavo negro-mestiço impressionantemente aquático, pleno de orixás. Um espaço de praias, rios, jangadas, saveiros, marcado pela poesia e pela música do samba de roda e dos terreiros do candomblé.
        Não foi apenas por acaso que nasceu na Bahia, dona da maior fatia do litoral brasileiro, um poeta como ele --o raro e claro cantor das canções praieiras, cultivando um samba diverso do samba já estilizado do Rio de Janeiro. Gonzaga, por sua vez, nasceu entre jagunços e vaqueiros, na região da pecuária e da cultura do couro, marcada por longos períodos de seca.
        Era esperável que as circunstâncias socioecológicas se gravassem ou se imprimissem um dia, funda e profundamente, nas criações poético-musicais de ambos (no caso de Gonzaga, incluindo seus principais parceiros, Humberto Teixeira e Zé Dantas). E de fato elas se encarnaram. Não é por outro motivo que devemos tratar Caymmi como uma expressão estética concentrada da cultura tradicional litorânea da Bahia de Todos os Santos e seu Recôncavo. E Luiz Gonzaga como uma expressão estética concentrada do amplo e rico contexto em que se configurou a cultura nordestina --vale dizer, sertaneja.
        PAISAGEM Em "Os Sertões" (1902), Euclydes da Cunha contrapôs a lonjura sertaneja à extensão praieira. E o que ele vê no sertão é a paisagem atormentada. O "martírio da terra", que se deixa ler "no enterroado do chão, no desmantelo dos cerros quase desnudos, no contorcido dos leitos secos dos ribeirões efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo de uma flora decídua embaralhada em esgalhos".
        No interior desse martírio da terra é que ele vai situar o martírio humano, "reflexo da tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da vida". O ser humano em questão é, obviamente, o sertanejo, "rocha viva da nacionalidade". É o Nordeste das "figuras de homens e de bichos se alongando quase em figuras de El Greco". Nordeste das ossadas esbranquiçadas. Dos "sertões de areia seca rangendo debaixo dos pés". Das "paisagens duras doendo nos olhos".
        Um é o Nordeste barroco-canavieiro, místico-erótico, com suas praias e seus orixás. Outro é o Nordeste do gado e do couro, seco-ascético-milenarista, com procissões que se arrastam pedindo chuva.
        O rei do baião pertence ao Nordeste messiânico da caatinga abrasada, do sol sinistro e do chão malcriado. "O sertão é ele", declarou Câmara Cascudo, à lembrança dos ritmos e das paisagens dos sertões pernambucanos.
        É por isso que foi ele --e não Dorival Caymmi-- a estrela das migrações nordestinas. Luiz Gonzaga se projetou no contexto dessa migração massiva, e desempenhou aí o papel de referencial de cultura, influenciando na coesão psicossocial do migrante e, graças ao sucesso que alcançou no sul, no processo de integração do "baiano" à nova realidade sudestina.
        Circulando no eixo das cidades mais modernas do Brasil, tocando nas emissoras de rádio e gravando discos, entrou com o Brasil sertanejo país adentro. Ali onde milhares e milhares de camponeses passavam, de repente, à condição de urbanitas.
        A história da cidade, no Brasil, foi marcada por isso. Por este deslocamento massivo da "Communitas" à "Gesellschaft", da comunidade à sociedade. Mais do que de uma transição brusca, trata-se de um corte profundo e radical.
        O sujeito caía na roda-viva de um novo universo geográfico, climático, social e cultural. E jamais se dá sem dificuldade este salto em direção a uma outra ordem, em que passavam a vigorar direitos e modos associativos definitivamente dessemelhantes aos que as pessoas conheciam em seus lugares de origem.
        Entrava em jogo, em São Paulo e em outras partes do país, e num horizonte de crise, toda uma teia de valores, padrões de comportamentos, estruturas de crenças, relações de trabalho etc. E tudo se desdobrando num meio muitas vezes hostil, em cujo âmbito se multiplicavam, por falar nisso, as "piadas de baiano".
        FORÇA Gonzaga desempenhou o papel nada insignificante, social e culturalmente, de força antidesagregadora. Atuando na dimensão dos signos --e em plano de massas--, ele trazia consigo um universo familiar aos nordestinos, com suas representações conhecidas e seus referenciais nítidos.
        Desse modo, evitou que se esgarçasse ou se rompesse, na migração, o tecido original da cultura sertaneja nordestina. E ainda contribuiu para a sua afirmação nos bairros que hoje compõem o cinturão mais colorido e mais vivo da periferia da maior cidade que os brasileiros construíram.
        Luiz Gonzaga viu que era possível reconstruir uma unidade na dimensão da cultura. E isto a partir de uma adequação não subordinada do subsistema cultural sertanejo às realidades em movimento numa nova esfera metropolitana.
        Luiz Gonzaga foi o primeiro produto industrial que o Nordeste exportou. E se impôs. Conheceu herdeiros e futuros herdeiros. No final da década de 1950, podia olhar para trás e se congratular pela espetacular vitória cultural de seu projeto nordestino.
        Depois disso, veio o declínio, no horizonte da cultura de massa de um país que se atualizava e procurava se afirmar no mundo como nação moderna. Era o Brasil sob o signo de Brasília.
        No campo especificamente musical, o rock and roll, a bossa nova e, em seguida, a jovem guarda ocuparam o centro da cena. Com o tempo, porém, Gonzaga renasceria para o país, na voz da novíssima geração da década de 1960. E o baião continuou dando frutos, e os frutos do baião são muitos, encarnando a cultura tradicional como a encarnação do novo.
        Vale dizer, Luiz Gonzaga não se presentifica, no Brasil, como exótico ou folclórico. Ele não apenas retrata uma tradição. Ele a reinventa. Recria a cultura nordestina para inserir suas formas e conteúdos na sociedade urbano-industrial que então se configurava no país. E isto a partir de uma estratégia estética claramente definida.
        CAIS Daí se extrai a base, a forma-função arquitetônica e tecnológica do novo espaço que nasce em Recife para celebrar o sertão e Gonzaga, o Cais do Sertão, que se compõe entre o "vernacular" e o "high-tech". O rei do baião usou a tecnologia de ponta de sua época. Para homenageá-lo, acionaremos a tecnologia de ponta da nossa.
        Mas sem tecnolatria. Bem vistas as coisas, um novo museu pode ser "high" ou "low-tech" --porque tecnologia alguma é capaz de fazer sozinha um museu. O que tem de estar no cerne e acima de tudo são o conceito e os conteúdos. Se não for assim, o que se vai ter, no máximo, sob a denominação de museu, não passará, na verdade, de um papel de parede tecnológico, de pura (ou impura) maquiagem, sem qualquer densidade ou intensidade cultural.
        O Cais do Sertão terá um caráter simultaneamente histórico-antropológico, estético e "high-tech", referenciado no horizonte coetâneo da vida sociotécnica brasileira, com todas as suas implicações culturais. Sempre campo de uma dialética entre a tecnologia e tradição. A obra gonzaguiana chamava irresistivelmente nessa direção.
        Afinal, Gonzaga foi a própria encarnação do diálogo criativo entre a tradição e a invenção, entre o velho e o novo. Ele recriou formas musicais arcaicas num produto inédito. Trouxe a cultura tradicional nordestina para a sociedade e a cultura de massas. Nunca hesitou diante de nenhuma nova situação técnica. Atuou sem inibição nos "mass media", gravou discos, lidou com a publicidade e o marketing político (já desde a campanha presidencial de José Américo, em 1937), compôs jingles.
        Ou seja: ele mesmo representa e significa essa dialética entre a invenção técnica e a criação popular tradicional. Um sujeito inteiramente à vontade tanto num estúdio de gravação, entre mesas de som, quanto no ambiente colorido das feiras nordestinas.
        Natural que o Cais do Sertão tenha ido por esse caminho. Isso estava claro desde a formulação inicial do projeto, quando dizíamos, parafraseando Walter Benjamin, que Gonzaga foi a refundação da "poemúsica sertaneja" na época de sua reprodutibilidade técnica, num Brasil que começava a se modernizar, tomando o rumo urbano-industrial.
        No Cais do Sertão o mundo de Luiz Gonzaga se revela. Ali onde as raízes deixam de estar na terra, para se projetarem no ar. Ele é um sertanejo --mas o mundo é o sertão e muito mais.

          José Simão

          folha de são paulo
          Biografia! A Vida É um Buraco!
          E a biografia do Malafaia: 'Minha Mala é Feia!'. Ou: 'Malafaia é Nosso Pastor e Nada nos Sobrará!'
          Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E um amigo de Londrina foi ao supermercado e a caixa: "Encontrou tudo que queria?". "Encontrei até o que não queria". "O que?". "A minha ex-mulher!".
          Telerreportagem da Band na avenida Paulista: "A senhora sabe onde fica o Ponto G?". "Não, eu não sou daqui, sou de Belo Horizonte."
          Pensamento da semana: duas coisas que nunca deram certo --humor a favor e biografia autorizada! Biografia da Lassie pode? Pode! Contanto que não chamem ela de cachorra. Rarará!
          Diz que biografia não autorizada de político pode. Então vou lançar a biografia do Maluf: "Minha Vida é uma Esfiha Aberta" ou "Minha Vida Foi uma Roubada". Rarará.
          E o Maluf escreveu mesmo uma biografia chamada: "Ele!". Aí os advogados de defesa sugeriram mudar para "Não Foi Ele!".
          E vou lançar a biografia do Sarney: "Moribundo de Fogo". E vender pro cinema: "Duro de Matar 5". Rarará.
          E vou lançar uma biografia do Edir Macedo: "EDÍRZIMO". Edírzimo Macedo! E a biografia do Kid Bengala: "O Gigante Acordou". E a biografia do Malafaia: "Minha Mala é Feia!". Ou: "Malafaia é o Nosso Pastor e Nada nos Sobrará!". Virei black biógrafo!
          E daqui a pouco vai ter manifestação de biógrafos. Na Cinelândia! Black biógrafos!
          E saiu a nova versão do hit do Roberto Carlos: "Quem é que censura toda hora/ Qualquer livro da Jovem Guarda/ Esse cara sou eu". E como é que um cara que escreveu "Emoções", um gênio, fica com essa perrenga mal resolvida?
          E acho que os artistas estão confundindo biografia com revista de fofoca.
          E a manchete do Sensacionalista: "Supremo admite que as biografias de Fiuk e Geisy Arruda não deveriam ser autorizadas". Aí, sim!
          E a biografia do Frota é problema da Anvisa, Vigilância Sanitária! Rarará!
          E eu gosto de biografia chapa quente: sexo, sangue e Doritos com Coca-Cola! E eu vou lançar a minha autobiografia não autorizada chamada "A Vida é um Buraco". Você nasce por um buraco, come por um buraco, transa por um buraco e quando morre: vai pro buraco! Rarará! Viva o buraco!
          Nóis sofre, mas nóis goza.
          Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

            Antonio Prata

            folha de são paulo

            Veni, vidi, perdidi

            Enquanto perdurarem meus dias sobre a terra, trarei no peito a cicatriz do Massacre de Frankfurt; batalha inglória em que 11 galhardos e desentrosados escritores brasileiros foram trucidados pelo azeitado escrete de escribas alemães. Mesmo no silêncio da alcova, recostado nos braços da madrugada, buscando na breve morte do sono o consolo para as tormentas da vigília, visitar-me-ão em pesadelo os três atacantes teutões que, por 90 minutos, esbaforido, tentei marcar -o altão, o gigante e o Golias-, embalde.
            Quem sabe, até, ao fechar os olhos, no apito derradeiro de meu tempo regulamentar, verei as três bestas loiras galopando, bufando, passando por mim como se eu fosse um campônio ignaro ou um cone de treino e marcando não uma nem duas nem cinco, mas nove vezes, como fizeram na noite infame daquela sexta-feira, 11 de outubro do ano da (des)graça de 2013.
            Ora, pra que tanto drama? O que eu esperava? O Autonama (Autorennationalmannschaft), time de escritores germânicos que enfrentamos (sic) durante a feira de Frankfurt, joga desde 2005, com técnico, uniforme, juiz e bandeirinha. Já nós, o Pindorama FC, tínhamos apenas dois meses e o sentimento do mundo; no currículo, somente um par de treinos, sete contra sete no Playball da Barra Funda -os 11 nunca haviam estado do mesmo lado num campo oficial.
            Dadas as circunstâncias, 9 x 1 (o nosso saiu aos 40 do segundo tempo, num pênalti pra lá de duvidoso) nem foi tão mau assim. Veja o Taiti, por exemplo, é uma seleção profissional e tomou de 10 x 0 da Espanha, na Copa das Confederações. Bem pior, não?
            Devo dizer, ainda, em defesa da nossa honra -se é que restou alguma a ser defendida-, que nem todos no Pindorama eram pernas de pau, como eu: Rogério Pereira, o Pelé Polaco, Marcelo Moutinho, o Canhão de Madureira, Zé Luis Tahan, o Trator da Baixada, Celso de Campos Jr., El Capitán, Vladir Lemos, a Estrela de Santos, e Flávio Carneiro, o melhor jogador goiano de Teresópolis, são craques que, entrosados, colocariam nosso time em condições de ganhar não só de escritores alemães, mas até de engenheiros ou, quem sabe, de um selecionado de imigrantes turcos e africanos.
            Éramos, no entanto, 11 homens contra um time -e nem a mais deslavada arrogância brasileira pode achar que o talento individual, sem nenhuma organização, é capaz de vencer uma boa equipe treinada. (Muito menos uma boa equipe alemã treinada).
            Curioso é que, apesar do placar, do frio, das dores musculares e da sempiterna nódoa que carregarei em minh'alma, quando penso naqueles alemães, sinto-me grato. Organizaram um evento impecável, entramos em campo de mãos dadas com criancinhas uniformizadas, cantamos o hino e, durante o jogo, mesmo quando ficou claro que a Oktoberfest engoliria o Carnaval, não se viu um toque de calcanhar, não se ouviu um "Olé!". Dado o massacre, contudo, desconfio que minha gratidão tenha outro nome: síndrome de Estocolmo. Ou melhor: síndrome de Frankfurt.
            Seja o que for, é inútil chorar sobre o "liebfraumilch" derramado. Agora é bola pra frente. Ano que vem, o Autonama vem ao Brasil para a revanche: espero que saibamos recebê-los da mesma forma, de braços abertos e com os pés afinados.
            antonio prata
            Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34). Escreve aos domingos na versão impressa de "Cotidiano".