Veni, vidi, perdidi
Enquanto perdurarem meus dias sobre a terra, trarei no peito a cicatriz do Massacre de Frankfurt; batalha inglória em que 11 galhardos e desentrosados escritores brasileiros foram trucidados pelo azeitado escrete de escribas alemães. Mesmo no silêncio da alcova, recostado nos braços da madrugada, buscando na breve morte do sono o consolo para as tormentas da vigília, visitar-me-ão em pesadelo os três atacantes teutões que, por 90 minutos, esbaforido, tentei marcar -o altão, o gigante e o Golias-, embalde.
Quem sabe, até, ao fechar os olhos, no apito derradeiro de meu tempo regulamentar, verei as três bestas loiras galopando, bufando, passando por mim como se eu fosse um campônio ignaro ou um cone de treino e marcando não uma nem duas nem cinco, mas nove vezes, como fizeram na noite infame daquela sexta-feira, 11 de outubro do ano da (des)graça de 2013.
Ora, pra que tanto drama? O que eu esperava? O Autonama (Autorennationalmannschaft), time de escritores germânicos que enfrentamos (sic) durante a feira de Frankfurt, joga desde 2005, com técnico, uniforme, juiz e bandeirinha. Já nós, o Pindorama FC, tínhamos apenas dois meses e o sentimento do mundo; no currículo, somente um par de treinos, sete contra sete no Playball da Barra Funda -os 11 nunca haviam estado do mesmo lado num campo oficial.
Dadas as circunstâncias, 9 x 1 (o nosso saiu aos 40 do segundo tempo, num pênalti pra lá de duvidoso) nem foi tão mau assim. Veja o Taiti, por exemplo, é uma seleção profissional e tomou de 10 x 0 da Espanha, na Copa das Confederações. Bem pior, não?
Devo dizer, ainda, em defesa da nossa honra -se é que restou alguma a ser defendida-, que nem todos no Pindorama eram pernas de pau, como eu: Rogério Pereira, o Pelé Polaco, Marcelo Moutinho, o Canhão de Madureira, Zé Luis Tahan, o Trator da Baixada, Celso de Campos Jr., El Capitán, Vladir Lemos, a Estrela de Santos, e Flávio Carneiro, o melhor jogador goiano de Teresópolis, são craques que, entrosados, colocariam nosso time em condições de ganhar não só de escritores alemães, mas até de engenheiros ou, quem sabe, de um selecionado de imigrantes turcos e africanos.
Éramos, no entanto, 11 homens contra um time -e nem a mais deslavada arrogância brasileira pode achar que o talento individual, sem nenhuma organização, é capaz de vencer uma boa equipe treinada. (Muito menos uma boa equipe alemã treinada).
Curioso é que, apesar do placar, do frio, das dores musculares e da sempiterna nódoa que carregarei em minh'alma, quando penso naqueles alemães, sinto-me grato. Organizaram um evento impecável, entramos em campo de mãos dadas com criancinhas uniformizadas, cantamos o hino e, durante o jogo, mesmo quando ficou claro que a Oktoberfest engoliria o Carnaval, não se viu um toque de calcanhar, não se ouviu um "Olé!". Dado o massacre, contudo, desconfio que minha gratidão tenha outro nome: síndrome de Estocolmo. Ou melhor: síndrome de Frankfurt.
Seja o que for, é inútil chorar sobre o "liebfraumilch" derramado. Agora é bola pra frente. Ano que vem, o Autonama vem ao Brasil para a revanche: espero que saibamos recebê-los da mesma forma, de braços abertos e com os pés afinados.
Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34). Escreve aos domingos na versão impressa de "Cotidiano".
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