domingo, 3 de novembro de 2013

Vinicius Torres Freire

folha de são paulo

Dilma e a malhação de Eike

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É fácil esculhambar o governo. Tão fácil quanto implicar com Dilma Rousseff. Motivos não faltam, do seu método antissintático de discursar às suas ideias econômicas. Desovar o cadáver empresarial de Eike Batista na cozinha da presidente, porém, parece mais difícil.
Essa é uma das ficções mais ou menos sórdidas que a gente ouve a propósito da ruína espalhafatosa das empresas de Batista. Muitos "ricos & famosos" que bajulavam o empresário agora chutam o seu corpo estendido no chão.
A história ao mesmo tempo mais divertida e mais revoltante é a de que a bolha de Batista foi inflada pelo governo e que o empresário "enganou o mercado". Enganou o Pimco? O BlackRock? Ah, coitado desse pessoalzinho, que senta sobre os maiores potes de dinheiro da galáxia.
Sim, quando Batista ainda parecia um tipo belo e faceiro, Dilma Rousseff dizia mimos dele, tais como "nosso padrão, nossa expectativa e orgulho do Brasil quando se trata de um empresário do setor privado", "um tipo especial de empreendedor, que delimita o seu sonho de forma ambiciosa" (sim, rir, rir, rir). A presidente pegava então, abril de 2012, uma carona tardia na adulação de Batista.
O problema sério mesmo, dizem, porém, seria o BNDES, que ajudou a erguer a pirâmide de Batista. Francamente. O BNDES dá mãozinha e mãozona para 90% das cem maiores empresas do Brasil; para 78% das mil maiores. Faz coisa pior. Por exemplo, barateou o capital de fusão & aquisição das empresas quebradas na bandalheira dos derivativos cambiais de 2008, por exemplo.
Não se viu o comentarismo econômico e turma chutando a cabeça dos empresários desses casos.
"Ah, o BNDES emprestou dinheiro para negócio que não deu certo, de risco." Rir, rir, rir. O dia em que o BNDES souber de todos os negócios que darão certo, é melhor fechar o mercado e nomear o banco como gestor perpétuo da perfeita alocação de capital.
"Ah, mas o BNDES é público." Ok. Fechem o banco, então, mas para todo mundo. E proíbam-se quaisquer garantias públicas a negócios privados, "empréstimos de última instância" etc.
Para ser sarcástico, mas não muito, privatizem-se de resto todos os grupos industriais brasileiros, beneficiários de décadas de subsídio (desde os anos 1940, vá lá), os bens dos herdeiros do café, cujo preço desde o começo do século 20 foi bancado por subsídio estatal.
Não pode é ficar com conversinha, indignação seletiva e "escolha dos amigos campeões" no mercado e no empresariado.
De resto, por falar em "risco", o bancão estatal não é criticado por ajudar negócios já por demais estabelecidos? Enfim, a propósito de avaliação de risco, note-se que no mesmo barco do BNDES estavam o BTG, o Itaú e o pessoal animado que comprou US$ 3,6 bilhões de títulos do "senhor X".
"Eike enganou o mercado." Poderia ser, em caso de fraude de balanço ou informações técnicas (embora fosse difícil Batista enganar os mamutes com quem negociava).
Mas não é disso que se trata.
Se o pessoal mercadista que ora samba sobre o caixão do Império X acha mesmo que seja culpa de um Eike "enganar" tantos, por tanto tempo, no topo da finança mundial, talvez seja melhor a gente esquecer essa coisa de mercado, certo?
vinicius torres freire
Vinicius Torres Freire está na Folha desde 1991. Foi Secretário de Redação, editor de 'Dinheiro', 'Opinião', 'Ciência', 'Educação' e correspondente em Paris. Em sua coluna, aborda temas políticos e econômicos. Escreve às terças, quintas e domingos, no caderno 'Mercado'.

Homofobia, até quando? - Moisés Guimarães

O GLOBO - 03/11
À época, os jovens que os atacaram justificaram sua ação dizendo tê-los confundido com um casal gay. A barbárie está para toda a gente

Recentemente aconteceu uma morte que chocou a cidade de Palmas, Tocantins. Um professor de português de 56 anos foi morto a pedradas na saída da escola onde trabalhava. A barbárie de sua morte teve motivação: o professor assumiu ser gay. Infelizmente, o crime ainda não foi esclarecido. Neste contexto, a demora na apresentação dos culpados acena para um problema ainda maior: o fracasso do poder público em garantir o pleno exercício dos direitos humanos no Brasil. A história da morte desse professor que era pai de três filhas nos faz pensar se o brasileiro está sabendo lidar com as questões ligadas à livre manifestação de afetos, também estas, um direito humano. Não é de hoje que o MEC vem tentando apresentar material didático que possa contemplar as carências de abordagem sobre o tema. Os parâmetros curriculares mencionam a necessidade de trabalhar a diversidade sexual nas unidades escolares como tema transversal, mas falta ainda capacitação adequada ao corpo docente.
Alguém ainda se lembra do pai que teve a orelha decepada num rodeio em São Paulo só porque estava abraçado ao seu filho? À época, os jovens que os atacaram justificaram sua ação dizendo tê-los confundido com um casal gay. A barbárie está para toda a gente e por todos os lados! Quem será a próxima vítima?
Vivemos em tempos nos quais a capacidade humana de racionalizar e reagir se mostra condicionada a uma matriz que nos estagna e corrompe. Num contexto onde a revolução digital proporciona ao homem avanços significativos, assistirmos ainda e de forma recorrente casos de homofobia e, muitos deles, sem que a vítima possa se defender; é um retrocesso.
O que falta para que o poder legislativo compreenda a emergência de atuar no combate às mortes por crime de ódio? Os jovens ou adultos que cometeram esse ato de crueldade com o professor tocantinense continuarão no anonimato e serão incentivados por nossa indiferença. Já é hora de o Brasil acordar!
Vergonhoso para um país como o nosso ter em sua gente alguém que julga ser legítimo decidir e executar a morte daqueles que se declaram gays. Já não basta a chacota diária que sofrem todos os efeminados? Faz décadas que Chico Buarque compôs “Geni e o Zepelim” e a pedra lançada contra Geni, destituída de sua força poética, ainda sustenta os que valem pela homofobia e por tantas outras ações preconceituosas. Enquanto negarmos direitos às mulheres, aos negros, aos portadores de necessidades especiais, reconhecer a diversidade sexual como uma questão legítima e humana será uma premissa sempre relegada a segundo plano. Enrijecemos muito nosso olhar e nossa sensibilidade com essa pseudotolerância. O comandante do Zepelim que o diga!
Espero ainda viver num país em que nossas escolas possam ter professores capazes de se assumirem sexualmente sem correrem o risco de serem apedrejados. Que nossas autoridades possam assegurar os direitos de todos, garantindo sua cidadania e dignidade.

Homem cordial assombra biografias - HELOISA STARLING e LILIA MORITZ SCHWARCZ

folha de são paulo
Medos privados em lugares públicos
Homem cordial assombra biografias
HELOISA STARLINGLILIA MORITZ SCHWARCZ
RESUMO "Raízes do Brasil", publicado por Sérgio Buarque de Holanda há quase 80 anos, diagnosticou na cordialidade a rede de relações privadas que comanda a cena pública do país. O homem cordial, símbolo da fluidez entre as duas esferas, reaparece no debate sobre as biografias ao reivindicar para seus desejos o amparo da lei.
No Brasil, a vida privada ocupa ainda hoje o papel de nossa principal referência. A interpretação mais frequente desse fenômeno aposta na ideia de que a ancoragem no privado é sinal de maturidade democrática. O suposto é que essa expansão democrática se sustenta em direitos e, uma vez que os direitos são respeitados, não há motivo para maior preocupação.
Tal abordagem converge com o fortalecimento da ideia do indivíduo como personagem de si mesmo e tem sido recorrente para explicar tanto a importância que atribuímos a certa escrita autorreferencial quanto para sustentar o argumento de que só quem viu, sentiu e experimentou pode registrar a verdade dos fatos vividos.
Visto pela perspectiva do mundo privado, cada um de nós seria, ao mesmo tempo, autor e editor de uma escrita de si: apenas o indivíduo --e sua memória-- seria capaz de ordenar, rearranjar e significar o trajeto de uma vida no suporte de um texto e disso criar uma narrativa; e apenas ele, que conhece a autenticidade de suas ações e emoções, estaria autorizado a expressá-las para si e para os demais.
Contudo entre as quatro paredes da vida privada se perde muito. Refugiados na intimidade, os indivíduos desfrutam o privilégio de ter seu pequeno mundo só para si; mas falta-lhes uma forma específica de convivência que se define pela presença do outro e pela possibilidade de ser confrontado com suas opiniões. E porque lhes falta, acima de tudo, a liberdade do falar uns com os outros e uns contra os outros, uma única versão acaba por servir como padrão de verdade, seja para medir a própria vida, seja para pensar a sociedade ou narrar a história do país.
Foi preciso um jovem modernista, indeciso entre a crítica literária e a historiografia, escrevendo sob o impacto das transformações da Era Vargas, para argumentar que, no Brasil, a complexa rede de relações pessoais e privadas comanda a sociabilidade dos brasileiros na cena pública. Mais do que isso: esse comando não traduz a potencialidade de uma esfera privada bem definida; ao contrário, torna evidente que, entre nós, público e privado nunca existiram plenamente; ou melhor, variam em função da situação, do contexto, do status e até do momento.
Em fins de 1930, esse jovem modernista, Sérgio Buarque de Holanda, então com 28 anos, voltou ao Brasil, depois de uma temporada na Alemanha enviando reportagens para "O Jornal".
Em Berlim, Sérgio acompanhou a agitação política da República de Weimar e o crescimento do partido nacional-socialista, assistiu sem nenhuma regularidade a aulas de história na universidade, traduziu legendas de filmes para ganhar uns trocados --entre eles "O Anjo Azul", de Sternberg, com Marlene Dietrich-- e caiu na farra. Não se sabe bem como, ainda arrumou tempo para escrever: trouxe, na mala, o esboço de um ensaio intitulado "Teoria da América", com cerca de 400 páginas manuscritas.
O ensaio sobreviveu, mas alterado pelo impacto da modernização do país nos anos 30, trocou de enfoque e foi publicado como livro, em 1936. "Raízes do Brasil", o livro, nasceu cercado de mal-entendidos e de muita polêmica e se transformou numa obra decisiva de interpretação histórica e de análise sobre os dilemas irresolutos da formação social brasileira.
CORDIALIDADE Quase 80 anos depois, "Raízes do Brasil" ainda oferece um instrumental crítico para entender o país. O livro diagnostica na cordialidade o traço definidor da nossa cultura e, no seu agente mais famoso --o homem cordial--, um risco para a construção da vida democrática.
Dominado pelo coração, mobilizado pelo fundo emotivo de seus afetos, o homem cordial é uma anomalia política por sua particular compreensão do mundo público, contaminada, desde o início, pela compulsão que ele sente de estender seus direitos individuais sobre esse mundo, fazendo dele um mero apêndice, o prolongamento de seus interesses particulares e de suas relações pessoais.
Habituado a transpor quase naturalmente a lógica do mundo privado à cena pública, o homem cordial é um personagem inquietante: ele só consegue viver em uma "pólis" caricata, que se coloca a serviço da proteção narcísica dos cidadãos e se mantém desperta por conta do imediatismo emocional de seus membros.
"Raízes do Brasil" traz um alerta contra o apego aos "valores da personalidade" cultivados pelo homem cordial e contra a maneira como esses valores incidem sobre as diversas instâncias do Estado, dos partidos políticos, das instituições do mundo público.
Essa insistência na manutenção de práticas próprias ao privado sobre o que é comum a todos quem sabe signifique dar continuidade a certa forma de sociabilidade da escravidão que sobreviveu alterada no clientelismo rural e resistiu à urbanização, quando a classificação hierárquica manteve-se sustentada por fortes laços pessoais. Seria a cordialidade, talvez, a singularidade da nossa colonização ibérica, marcada por vínculos pessoais, que tornam fluidas delimitações e diferenças entre esferas públicas e privadas de atuação.
Essa fluidez impede ao homem cordial adquirir a necessária condição de abstração para sustentar a ideia de que a democracia não é só um regime político mas uma forma de sociedade, cujo princípio normativo está na noção de que pessoas obrigadas a obedecer às leis devem ter igual direito, a despeito das diferenças entre elas.
A mesma fluidez o impede de aceitar o catálogo republicano das liberdades irredutíveis e o leva a relativizar as diferenças que separam sua cena privada e o mundo público, para assegurar seus interesses particulares, solicitar privilégios e prover a censura.
BIOGRAFIAS Com tudo isso, Sérgio Buarque talvez se espantasse com a maneira como o homem cordial reapareceu na agenda do dia, disposto a marcar o debate sobre o tema das biografias e a reivindicar para suas demandas e desejos individuais o amparo da lei.
Naturalmente, seus pontos de vista são emanados diretamente do mundo privado: o papel de vítima assumido pelo homem cordial no debate não deixa de ser uma escolha vantajosa. A perpetuação desse papel mantém os termos imaginários de uma injustiça cometida entre indivíduos; já o desejo de compensação, sobretudo monetária, não busca a transformação das condições que produziram o prejuízo, mas a garantia de que ele possa beneficiar-se dessas condições, sempre como vítima.
Com um ponto de vista vindo da privacidade, o homem cordial defende ser mais seguro para todos aceitar a premissa de que existe uma oposição entre o mundo público e a vida privada e que essa oposição equivale à diferença entre o que deve ser conhecido e o que deve ser ocultado. A premissa é mais do que duvidosa.
As duas esferas --o espaço íntimo, o mundo comum-- somente podem subsistir sob a forma de coexistência. Mais do que isso: a definição do público e do privado é, na verdade, o desenho de uma fronteira dentro da qual se abrigam, conectam e se desenrolam dimensões diferentes de nossas vidas. Privado e público só se definem um em relação ao outro.
Não é difícil perceber, dentro dessa fronteira, os modos como se flexiona o privado. Historiadoras que somos, vamos a um exemplo retirado da nossa história.
Um rei sabidamente, e até hoje, não tem escapatória: sabe que é sempre, e desde que nasce, figura pública. Seu casamento é um contrato de Estado; sua morte é sempre anunciada por uma nova vida; os filhos são antes de mais nada herdeiros; e seus diários íntimos não passam de peças públicas.
Pedro 2º, por exemplo, ciente de sua condição, guardou para si o que queria preservar e permitiu a exposição, e até utilizou-se dela, quando devia e queria. Ele era visto por todos, todos falavam dele e nem sempre falavam bem. A sátira da época fez de Pedro 2º objeto permanente: suas pernas finas, sua voz estridente, aguda demais para sua altura, maior do que a da média dos brasileiros, tudo foi motivo para chacota de cartunistas como Angelo Agostini.
E o que dizer do chargista Raphael Bordallo Pinheiro? O português, pouco após a espinhosa promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, publicou uma brochura em que ridicularizava a mania de movimento do imperador (que não parava de viajar) e debochava da lei polêmica: "No Razilb, seu rei é tão bom que libertou os filhos na barriga (mas não as mães, que por certo não ficaram nada satisfeitas)".
Não se trata de apresentar um personagem excepcional; d. Pedro apenas sabia que algumas pessoas --como os monarcas, os artistas, os cientistas, as celebridades, os políticos-- têm um pacto com o público. Só é rei quem não perde a realeza; sejam reis monarcas, reis do futebol, reis momos do Carnaval e reis da canção.
Uma biografia é a evidência mais elementar da profunda conexão entre as esferas pública e privada --somente quando estão articuladas essas esferas conseguem compor o tecido de uma vida, tornando-a real para sempre.
Escrever sobre uma vida implica interrogar o que os episódios de um destino pessoal têm a dizer sobre as coisas públicas, sobre o mundo e o tempo em que vivemos. E a tarefa de julgar, dizia Hannah Arendt, não é prerrogativa do biógrafo nem do biografado: é privilégio dos outros. Na composição da biografia cabem os grandes tipos, os homens públicos, as celebridades; cabem igualmente personagens miúdos, quase anônimos. Em todos os casos, porém, não cabe tarefa fácil: é muito difícil reconstituir o tempo que inspirou o gesto.
É preciso calçar os sapatos do morto, na definição preciosa de Evaldo Cabral, para penetrar num tempo que não é o seu, abrir portas que não lhe pertencem, sentir com sentimentos de outras pessoas e tentar compreender a trajetória de uma vida no tempo que lhe foi dado viver; as intervenções que protagonizou no mundo público de sua época com os recursos de que dispunha; a disposição de viver segundo as exigências desse tempo, e não de acordo com as exigências do nosso tempo.
O historiador anda sempre às voltas com a linha difusa entre resgatar a experiência dos que viveram os fatos, reconhecer nessa experiência seu caráter quebradiço e inconcluso, interpelar seu sentido. Por isso, a biografia é um gênero da historiografia e é essencial para compreendermos os brasileiros que fomos e os que deveríamos ou poderíamos ser. Essa história é pública e ao público pertence.

Mil vezes obrigado, Lou Reed - Fabio Massari

folha de são paulo
ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Mil vezes obrigado, Lou Reed
Rio de Janeiro, 1996
FABIO MASSARIÉ bem possível que, de muitas entrevistas difíceis que tive, a que tentei fazer com Lou Reed seja a pior e a mais famosa.
Nesse momento de absoluta tristeza (alguém tinha pensado que um cara como Lou Reed podia simplesmente morrer?), quando a parte da nossa vida trilhada por sua música passa acelerada diante dos nossos olhos marejados de blues, me parece oportuno, diria inescapável, revisitar esse encontro e, de algum jeito, promover uma espécie de acerto de contas.
Não me entenda mal, leitor: essa entrevista televisiva (para a MTV Brasil) com o músico nova-iorquino, que aconteceu em setembro de 1996, às vésperas de suas primeiras apresentações no Brasil (The Hooky Wooky Tour), não deu mesmo bom resultado jornalístico.
Imagino que nem o mais hábil dos editores teria sido capaz de salvar o material e se virar com a dinâmica trincada, com a eloquência quase sombria da nossa conversa. E é bom que tenha sido assim: o clima instável, as dificuldades específicas desse encontro acabam por validá-lo: não queria que tivesse sido de outro jeito.
Tudo ia bem no começo. Depois das rápidas formalidades de apresentação, nos instalamos no set armado à beira da piscina do hotel Sheraton, no Rio de Janeiro. Tudo testado e pronto para a ação.
Como eu tinha acabado de assistir a uma bela apresentação no festival suíço Paleo, em boa parte da área próxima ao palco reservada aos fotógrafos, arrisquei de cara umas considerações impressionistas sobre sua relação com o público, sobre a cumplicidade que ele conseguia estabelecer nessas ocasiões grandiosas. Pareceu agradar. Apesar da sisudez, pensei que tudo estava tranquilo e que teríamos uma boa conversa.
Mas aí veio a ruptura. Percebi na hora o vacilo que alterou inelutavelmente o andamento dos trabalhos: a pergunta sobre as biografias, ou melhor, a pergunta com referência pontual a uma biografia e ainda uma certa insistência no assunto das biografias e a ele, Lou Reed, como biografado. Mea culpa, mea velvetiana culpa!
Não tinha mais volta. Foi mínima a alteração em sua linguagem corporal: intensificou-se apenas o movimento sinistro de alisar o curativo que exibia sobre as veias do braço esquerdo. Mas o olhar"¦ O que era intenso e mirava bem no alvo dos meus olhos desde o início transformou-se num objeto perfurocortante e me atravessou como uma flecha. Ou, mais de acordo, como uma espada de samurai.
Fui em frente, deixando claro que acusara o golpe, reconhecia, e até falamos mais um tempinho: Zappa, guitarras, o legado. Mas realmente já era. Senhor do tempo, Lou Reed devolveu a cada duas perguntas um monossílabo --técnica para lá de pragmática de enxugamento das atividades, basicamente porque, para o entrevistador, cada segundo passa a valer por uma eternidade e meia e, nessas horas, o que você mais quer é que tudo acabe logo.
Encerramos com um forte aperto de mão e nos despedimos.
Passados alguns minutos, enquanto eu e a equipe nos preparávamos para bater em retirada, vi Lou caminhar em minha direção.
Com um leve cutucão no ombro e algo parecido com um sorriso, puxou conversa. Foi logo explicando, por linhas nada tortas, o motivo do mau humor: detestava biografias. Ironicamente, ele me fez perceber que eu devia saber da sua insatisfação pesada e declarada. Eu sabia e sei, Lou. Só pode ter sido o tal do "imponderável" das entrevistas que resolveu se meter no meu caminho.
Proseamos por mais alguns instantes e, antes de ir embora, Lou viu, entre as minhas coisas desarrumadas, um CD do maravilhoso "Berlin". O disco estava ali para o caso de surgir um clima bom para um autógrafo. Ele então pegou o CD, disse que era um de seus prediletos e escreveu uma dedicatória. Comentei algo sobre as criancinhas chorando no álbum, e ele sorriu antes de partir. Na capa, escreveu "thanks!". Eu respondo: mil vezes obrigado, Lou Reed.
P.S.: Em defesa da empreitada televisiva, registro que colocamos a entrevista no ar quase em estado bruto --a sabedoria minimalista do mestre e o sofrimento do entrevistador, sem maquiagem.

    O autodidata que rasgava livros ruins - SILVIA BITTENCOURT

    folha de são paulo
    DIÁRIO DE BERLIM
    O MAPA DA CULTURA
    Adeus a um crítico furioso
    O autodidata que rasgava livros ruins
    SILVIA BITTENCOURTA ALEMANHA perdeu Marcel Reich-Ranicki, 93, o seu maior crítico literário. Ele foi chefe do caderno cultural do jornal "Frankfurter Allgemeine Zeitung" (FAZ), estrela do programa televisivo "Das Literarische Quartett" (quarteto literário) e editor do cânone da literatura alemã.
    Reich-Ranicki popularizou a crítica de livros na Alemanha com seu jeito claro e direto de falar e escrever. Seus textos eram oásis dentro do empolado jornal alemão. Dizia que a função da crítica era animar o público para a literatura.
    Judeu nascido na Polônia, passou sua juventude em Berlim, onde logo descobriu sua paixão pela literatura alemã. Frente à perseguição nazista, porém, foi obrigado a deixar a cidade em 1938. Passou cinco anos no gueto de Varsóvia --experiência narrada na autobiografia "Mein Leben" (minha vida, de 1999), que vendeu mais de 1 milhão de exemplares.
    Costumava lembrar que nunca fizera um curso universitário. Proibido pelos nazistas de estudar, foi um autodidata. Suas críticas eram afiadas e temidas. Entrou em conflito até mesmo com monstros sagrados da literatura alemã, como Martin Walser e Günter Grass.
    Famosa é a capa da revista "Spiegel", de agosto de 1995, na qual uma fotomontagem mostra um Reich-Ranicki colérico, rasgando ao meio o livro de Grass "Um Campo Vasto" (publicado no Brasil pela Record). Chamou-o na ocasião de "prosa sem valor, monótona e ilegível".
    JUBILEU
    A editora Steidl está comemorando os 50 anos de "Anos de Cão", de Günter Grass, Nobel em 1999. O livro faz parte da sua chamada "Trilogia de Danzig", que também reúne "O Tambor", publicado originalmente em 1959, e "Gato e Rato" (1961).
    "Anos de Cão" conta a história do século 20 a partir da perspectiva de três narradores. O "leitmotiv" é um cachorro, Pluto, o pastor alemão de Hitler. E o palco é Danzig, a cidade natal de Grass (hoje Gdansk, na Polônia).
    Grass diz considerar esta obra "mais rica" do ponto de vista estilístico e literário do que o romance "O Tambor", que acabou se tornando mais famoso por causa do filme de Volker Schlöndorff, premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1980.
    Além de lançar uma edição comemorativa de "Anos de Cão", encadernada em tecido e trazendo 130 gravuras feitas pelo próprio autor, a Steidl também está preparando uma exposição para o final de novembro, em Lübeck, cidade atual de Grass. Ali está localizada a Günter-Grass-Haus (www.grass-haus.de), um museu com seus desenhos, esculturas e os originais de sua obra literária.
    PRÊMIO
    A escritora húngaro-alemã Térezia Mora, de Berlim, acaba de ganhar o mais importante prêmio literário da Alemanha, o da Bolsa do Comércio de Livros. Sua obra "Das Ungeheuer" (O Monstro) foi considerada o melhor romance do ano.
    Parte do livro lembra um "road movie". Traz a história de Darius Kopp, que depois de meses trancafiado num apartamento sai à procura de um lugar para jogar as cinzas da mulher, Flora, que se suicidou.
    A narrativa tem uma forma original. Uma linha horizontal corre ao longo do romance de quase 700 páginas: acima da linha, um narrador conta a busca feita por Darius Kopp e como ele descobre o diário de Flora; embaixo estão as anotações de Flora, apontando para a depressão que devorava a mulher.
    GOETHE
    Um livro de 750 páginas está na lista de best-sellers na Alemanha: a biografia "Goethe "" Kunstwerk des Lebens" ( a vida como obra de arte), de Rüdiger Safranski.
    O título já indica que essa biografia se centra menos nos livros e mais na vida intensa de Goethe (1749-1832), autor de "Fausto" e "Os Sofrimentos do Jovem Werther", entre muitas outras obras: a infância em Frankfurt, os estudos em Leipzig e Estrasburgo, a ida para Weimar, a temporada na Itália.
    "Ele não foi apenas um grande escritor mas também um mestre da vida", diz Safranski, que vem apresentando sua obra pelo país.
    Queridinho das mulheres, Goethe vivia apaixonado. Circulava entre políticos, artistas e cientistas. Até Napoleão Bonaparte recebeu-o para um café da manhã, em outubro de 1808.
    Safranski é um dos maiores biógrafos da Alemanha. Também retratou Schopenhauer, Nietzsche, E.T.A. Hoffmann e Schiller.

      Cachorro também é ser humano - Gregory Berns

      folha de são paulo
      As emoções caninas postas em exame
      GREGORY BERNSTRADUÇÃO CLARA ALLAINRESUMO Exames de ressonância magnética atestam semelhanças entre cães e humanos quanto ao funcionamento do caudado, região cerebral que reconhece o prazer. A constatação de emoções parecidas leva pesquisador a defender que animais têm uma "humanidade" limitada e que deveríamos rever o tratamento dado a eles.
      Há dois anos meus colegas e eu treinamos cães para ficarem num aparelho de ressonância magnética --totalmente despertos e sem estarem amarrados ou presos de nenhuma forma. Nossa meta é determinar como funcionam os cérebros dos cães e, o que é ainda mais importante, o que eles pensam de nós, humanos.
      Agora, depois de treinar e fazer exames de ressonância magnética em uma dúzia de cães, minha única conclusão inescapável é esta: os cães também são pessoas.
      Como os cães não falam, os cientistas deduzem seus pensamentos a partir de observações comportamentais. É arriscado. Não é possível perguntar a um cão por que ele faz alguma coisa. E não é possível lhe perguntar como se sente.
      A possibilidade de trazer à tona emoções animais assusta muitos cientistas. Afinal, a utilização de animais em pesquisas é um grande negócio. Era fácil evitar as perguntas difíceis sobre as percepções sensoriais e as emoções dos animais, porque essas perguntas não tinham resposta possível.
      Até agora.
      Com o exame direto dos cérebros dos animais, passando ao largo das limitações do behaviorismo, a ressonância magnética nos revela o estado interno dos cães. O exame é realizado em espaços confinados e ruidosos. As pessoas não gostam do procedimento, durante o qual é preciso ficar totalmente imóvel.
      A prática veterinária convencional reza que é preciso anestesiar animais para que não se movam enquanto passam pela ressonância. Mas não é possível estudar a função cerebral de um animal anestesiado --ao menos não quanto a elementos interessantes como percepção ou emoção.
      Desde o início, tratamos os cães como pessoas. O dono de cada cão assinava um termo de consentimento baseado no modelo usado para procedimentos em crianças. Ressaltávamos que a participação era voluntária e que o cão tinha o direito de abandonar o estudo.
      Usamos apenas métodos de treinamento positivos. Nada de sedação ou cintos. Se o cachorro não quisesse ficar no aparelho de ressonância, podia sair, como qualquer voluntário humano.
      Minha cadela Callie foi a primeira. Resgatada de um abrigo de animais, Callie era uma cadela magra, mista de terrier, uma raça conhecida como "feist" --independente, corajosa-- nos Apalaches, a região do leste dos EUA de onde ela vem.
      Fiel às suas origens, Callie preferia caçar esquilos e coelhos no quintal a ficar aconchegada no meu colo. Sua curiosidade natural provavelmente foi o motivo para ela ter ido parar num abrigo, mas também o que fazia fácil treiná-la.
      Com a ajuda de meu amigo Mark Spivak, treinador de cães, comecei a ensinar Callie a entrar num simulador de aparelho de ressonância magnética que construí na sala de minha casa. Callie aprendeu a subir degraus e a entrar num tubo, a colocar sua cabeça sobre um apoio de queixo e a ficar totalmente imóvel por períodos de até 30 segundos. Também precisou aprender a usar protetores de orelhas para resguardar sua audição dos ruídos de 95 decibéis feitos pelo aparelho.
      Após meses de treinamento, algumas tentativas e erros no aparelho de ressonância real, fomos recompensados com os primeiros mapas de atividade cerebral.
      Nos primeiros ensaios, medimos sua resposta cerebral a dois sinais feitos com as mãos no aparelho. Nos ensaios posteriores, ainda não publicados, determinamos que regiões do cérebro dela distinguem cheiros de cães e humanos conhecidos e desconhecidos.
      Em pouco tempo a comunidade ficou sabendo de nosso esforço para determinar o que os cachorros pensam. Em um ano tínhamos reunido uma equipe de uma dúzia de cães preparados para fazer ressonância magnética.
      SEMELHANÇA Estamos apenas começando a responder às perguntas básicas sobre o cérebro canino, mas não podemos ignorar a semelhança notável entre cães e humanos na estrutura e no funcionamento de uma região cerebral chave: o núcleo caudado.
      Rico em receptores de dopamina, o caudado se localiza entre o tronco encefálico e o córtex. Nos humanos, desempenha papel crucial na antecipação de coisas que nos dão prazer, como comida, amor e dinheiro.
      Mas será que podemos virar essa associação de trás para diante e deduzir o que uma pessoa está pensando pela simples medição da atividade do caudado?
      Devido à enorme complexidade das interligações entre as diferentes partes do cérebro, geralmente não é possível associar uma função cognitiva ou emoção isolada a uma única região cerebral.
      É possível, porém, que o caudado represente uma exceção. Partes específicas do caudado se destacam porque, diante de um grande número de coisas que dão prazer aos humanos, elas se ativam de forma consistente. A ativação do caudado, sob as circunstâncias apropriadas, é capaz de prever nossas preferências de comida, música e até mesmo beleza.
      No caso dos cães, descobrimos que a atividade no caudado aumentava em resposta a sinais das mãos que indicavam comida. O caudado também se ativava diante do cheiro de humanos conhecidos.
      Em ensaios preliminares, ele se ativava diante do retorno do dono que tivesse momentaneamente saído das vistas do animal. Essas descobertas provam que os cachorros nos amam?
      Não exatamente, mas muitas das mesmas coisas que ativam o caudado humano, coisas associadas a emoções positivas, também ativam o caudado canino. Os neurocientistas chamam a isso homologia funcional, e pode constituir um indicativo de emoções caninas.
      A capacidade de sentir emoções positivas, como amor e apego, significaria que os cães possuem um nível de percepção sensorial comparável ao de uma criança.
      Por muito tempo, cães foram tratados como propriedade humana. Embora leis estaduais e a Lei do Bem-Estar Animal, de 1966, tenham exigido que se destine um tratamento melhor aos bichos, elas consolidaram a visão de que os animais são coisas --objetos dos quais se poderia dispor, desde que tomado o cuidado razoável para minimizar seu sofrimento.
      Mas agora, ao usar a ressonância magnética para afastar as limitações do behaviorismo, não podemos mais fazer vista grossa para as evidências. Os cães, e provavelmente muitos outros animais também (especialmente os primatas com parentesco mais estreito conosco), parecem ter emoções, exatamente como nós temos. Isso significa que precisamos rever o tratamento que damos a eles.
      HUMANIDADE Uma opção é reconhecer uma espécie de "humanidade" limitada dos animais que demonstram evidências neurobiológicas de emoções positivas. Muitos grupos de resgate já usam esse rótulo de "guardião" para descrever os humanos que cuidam de animais, vinculando o humano a seu protegido por meio da responsabilidade implícita de cuidar dele.
      Aquele que deixe de atuar como bom guardião corre o risco de ter seu cão encaminhado para outro protetor. Mas não existem leis que tratem animais como pupilos ou protegidos, de modo que os diferentes grupos de resgate que operam segundo o modelo da guarda carecem de bases legais para proteger os interesses dos animais.
      Se déssemos mais um passo adiante e concedêssemos aos cães os direitos que acompanham a condição humana, eles ganhariam proteção adicional contra a exploração.
      A criação de cães sob condições desumanas para finalidade de lucro rápido, o uso de cães em laboratórios e as corridas de cães seriam proibidos, pois violariam os direitos básicos de autodeterminação de uma pessoa.
      Creio que a sociedade ainda está a muitos anos de distância de considerar cães como pessoas. Contudo decisões recentes da Suprema Corte levaram em conta descobertas da ciência neurológica que abrem essa possibilidade.
      Em dois casos, o tribunal decidiu que infratores menores de idade não poderiam ser sentenciados à prisão perpétua sem a possibilidade de liberdade condicional. Em suas decisões, a corte citou evidências obtidas em exames de imagem cerebral a fim de atestar que o cérebro humano não está maduro na adolescência.
      Embora esses exemplos não guardem relação com a percepção sensorial dos cães, os juízes abriram a porta para o recurso à neurociência nos tribunais. Quem sabe um dia vejamos um caso judicial em que os direitos de um cão sejam defendidos com base em exames de imagem cerebral.

        Os mitos da caverna - Alexandre Rodriques

        folha de são paulo
        Os mitos da caverna
        Uma espiadinha na reclusão de Salinger & Co.
        ALEXANDRE RODRIGUES
        RESUMO A reclusão tem sido um estilo de vida abraçado ao longo do tempo por grandes escritores, do japonês Saigyo Hoshi, no século 12, ao brasileiro Rubem Fonseca. Biografia de J.D. Salinger e novo romance de Thomas Pynchon lançam luz na vida e obra dos escritores, dois dos mais folclóricos eremitas do mundo das letras.
        Recluso mesmo era Saigyo Hoshi (1118-90). Patriarca da literatura reclusa, movimento que prosperou no Japão medieval, o soldado que largou a farda aos 22 anos e foi escrever poemas no campo acreditava que o escritor devia viver em isolamento para refletir sobre as restrições da vida normal nas cidades e sobre a natureza.
        De maneira menos radical, a tradição sobreviveu como a opção de alguns gigantes da literatura depois da fama. A poeta americana Emily Dickinson (1830-86) passou seus últimos 20 anos em casa. O francês Marcel Proust (1871-1922) não só ficou 13 anos isolado, tempo em que escreveu "Em Busca do Tempo Perdido", como nos últimos três nem sequer saiu do quarto.
        Entre os brasileiros, Dalton Trevisan, Raduan Nassar e Rubem Fonseca --este prestes a pôr na praça seu 28º título, "Amálgama", pela Nova Fronteira-- vivem quase no anonimato. Mas é provavelmente na percepção da obra de dois norte-americanos que a imagem eremítica mais colou. Ao falar de J. D. Salinger (1919-2010) e Thomas Pynchon, parece quase impossível dispensar o aposto "recluso" e suas variantes.
        Os lançamentos de "Salinger" [Simon & Schuster, 720 págs., R$ 87], biografia do autor de "O Apanhador no Campo de Centeio", e "Bleeding Edge" [Penguin, 478 págs., R$ 88,10], novo romance de Pynchon, deixam em evidência os dois ermitões. Salinger viveu 55 anos isolado do mundo. Pynchon vai além: há 60 anos não é fotografado e por mais de uma década duvidou-se até de sua existência.
        Não é surpresa que o isolamento seja o fio condutor de "Salinger", biografia assinada pelo escritor David Shields e pelo roteirista Shane Salerno, diretor do documentário de mesmo nome que estreou nos EUA em setembro. Filme --que deve virar cinebiografia com atores-- e livro --a sair no Brasil em janeiro, pela Intrínseca-- se completam num conjunto multimídia que vem irritando fãs do autor pelo foco em sua vida pessoal.
        Nascido em 1919, filho de um judeu e de uma católica convertida ao judaísmo, criado na classe média de Nova York, Jerome David era mais um autor jovem e promissor quando os japoneses atacaram a base de Pearl Harbor, em 1941.
        Decidiu se alistar no Exército e acabou na linha de frente do desembarque das tropas aliadas na Normandia no Dia D, 6 de junho de 1944. Tomou parte de outras batalhas importantes e presenciou a libertação do campo de concentração de Dachau, na Alemanha. Terminou o conflito internado em um hospital psiquiátrico com transtorno de estresse pós-traumático.
        Seus contos, até então algo frívolos, passaram a refletir o vazio dos jovens que chegaram pós-Guerra. Publicada pela revista "New Yorker" em 1948, a história "Um Dia Ideal para os Peixes-Banana", cujo personagem principal, Seymour Glass, era um traumatizado de guerra, fez com que o escritor fosse visto como a voz de sua geração.
        Seu único romance, "O Apanhador no Campo de Centeio", o transformaria de autor "cult" em celebridade. Lançado em 1951, o livro, um libelo contra o sistema protagonizado pelo adolescente rebelde Holden Caulfield, já vendeu mais de 65 milhões de cópias e influenciou multidões: de escritores como Tom Wolfe, que dá depoimento no filme e no livro, a figuras como Mark Chapman, o assassino de John Lennon, preso na cena do crime com um exemplar do romance.
        PASSATEMPO O Brasil não ficou incólume à rebeldia de Holden. Fãs do livro, três jovens resolveram traduzi-lo como passatempo. A versão foi publicada em 1965 pela Editora do Autor, de Fernando Sabino, Rubem Braga e Walter Acosta, este ainda hoje à frente da casa.
        Por pouco, o livro não foi batizado "A Sentinela do Abismo". "Eu e meus cotradutores (Alvaro Alencar e Antonio Rocha) achamos que não ia funcionar no Brasil a tradução literal de The Catcher in the Rye'", recorda Jorio Dauster. Da agente de Salinger, porém, chegou a ordem: nada de mexer no título.
        "Como nessa época já era impossível ter contato direto com o eremita de New Hampshire, fomos obrigados a ceder. Anos mais tarde, descobri os desatinos que tinham sido cometidos com o título --por exemplo, Uma Agulha no Palheiro', em Portugal, e El Cazador Oculto', na Espanha-- e dei toda razão ao Salinger", diz.
        Mas, se a história de Holden Caulfield cativava leitores e fez do escritor um homem rico, a invasão de sua vida pessoal logo começou a perturbá-lo. Salinger ainda lançaria três livros, mas em 1955 deixou Nova York, iniciando seu exílio na pequena cidade de Cornish. A partir de 1965, quando publicou na "New Yorker" o conto "Hapworth 16, 1924", fez-se seu silêncio.
        Shields e Salerno garantem ter as respostas para o que aconteceu.
        Mas boa parte das alegadas revelações não é propriamente novidade. Biografias como "Em Busca de J. D. Salinger", do inglês Ian Hamilton (processado pelo escritor), e os livros de Margaret Salinger, sua filha, e da romancista Joyce Maynard, sua ex-paquera, já diziam que ele se dedicara à filosofia religiosa vedanta, só comia alimentos crus e vivia amargurado pelas lembranças da guerra.
        O que "Salinger" conta de novo é que, ao contrário das lendas, ele não era propriamente um malucão solitário. Frequentava cafés, se relacionava com os vizinhos, ia ao cinema, tinha amigos. E escrevia. Uma "revelação" importante, ainda a confirmar, é de que ele teria deixado cinco livros prontos, a serem publicados entre 2015 e 2020.
        Em termos literários, pouco há a acrescentar. A preferência é por informações que beiram a fofoca, com espaço até para uma especulação sobre o fato de que o escritor teria apenas um testículo.
        Houve críticas e os autores responderam. "Meu objetivo não é derrubar Salinger, mas mostrar as fontes (de inspiração) horríveis da arte e os custos sem fim de uma guerra sem fim", defendeu-se Shane Salerno, em um artigo para a "Esquire". "Ele não era um deus. Era só um homem. Esse é o ponto."
        PSEUDÔNIMO Como Salinger, Thomas Pynchon evita a imprensa. Sabe-se que nasceu em 1937, serviu a Marinha e estudou na Universidade de Cornell. Suas poucas fotos conhecidas, mostrando um garoto dentuço, foram feitas há décadas. Por muito tempo não se sabia onde vivia e cogitou-se até que Thomas Pynchon seria um pseudônimo adotado por J. D. Salinger.
        Hoje sabe-se que ele mora em Nova York e é casado com a própria agente, Melanie Jackson, com quem tem um filho. À falta de detalhes pessoais, os livros têm sido a chave para sua visão do mundo.
        Sua obra pode ser dividida entre romances curtos com trama mais ou menos definida e protagonistas claros, caso de "V.", "Vineland" e "Vício Inerente", e os caudalosos e experimentais, cheios de camadas, como os catataus "O Arco-íris da Gravidade" e "Contra o Dia".
        "V." (1963), seu primeiro romance, trazia elementos que se tornariam sua marca: ironia, humor negro, sociedades secretas, enciclopedismo, citações obscuras e personagens de nomes esquisitos. Dez anos depois, com "O Arco-Íris da Gravidade", primeiro grande romance moderno sobre a paranoia, Pynchon foi reconhecido como um mestre.
        Apesar de ele ser considerado hermético, seus leitores respondem com adoração. Os mais dedicados criaram na internet um banco de dados(pynchonwiki.com).
        "Pynchon é um dos grandes nomes da ficção norte-americana do final do século 20", opina Paulo Henriques Britto, um de seus tradutores no Brasil. "A maneira como ele incorpora elementos da baixa cultura e os combina com uma técnica sofisticada permanece única."
        "Bleeding Edge", nono livro do autor, atualiza temas caros a ele, tendo ao fundo o mais importante evento do século até agora: o 11 de Setembro. A protagonista do romance, Maxine Tarnow, uma examinadora de fraudes, descobre, ao investigar o empresário de tecnologia Gabriel Ice, que o atentado às Torres Gêmeas não tem a ver com fundamentalismo, mas com uma conspiração envolvendo geeks, hackers e a máfia russa.
        As tramas paralelas típicas de Pynchon estão de volta. Seu temor quanto aos poderes da tecnologia também --aqui dirigido contra a internet. Lançado nos EUA em setembro e sem previsão de publicação no Brasil, "Bleeding Edge" tem sido saudado como um dos melhores livros do autor e foi indicado ao National Book Award.
        "O recluso tende a ser cada vez mais uma figura de exceção com a incorporação da literatura no circuito das celebridades, com os festivais literários e demais nexos com o mundo do entretenimento massivo", opina Luís Augusto Fischer, professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A internet, porém, embaralhou o conceito de recolhimento: "O autor pode viver num isolamento físico e manter-se conectado".
        Nos últimos anos, Pynchon tem se tornado mais visível.
        Rompeu o silêncio em 2006 com uma carta de apoio ao inglês Ian McEwan, acusado de plágio no romance "Reparação". Chegou a fazer duas "aparições" na série de TV "Os Simpsons", ambas com um saco de papel na cabeça, gravou sua voz num filmete para promover "Vício Inerente" --que ganhará no ano que vem versão cinematográfica por Paul Thomas Anderson-- e até deu uma breve declaração à CNN (não levada ao ar, mas lida por um narrador). Nela, ironizou: "Recluso' é um código usado por jornalistas que significa: Não gosta de falar com repórteres'".
        Uma peça publicitária feita pela editora para "Bleeding Edge" debocha da sua lenda. Nela, um jovem de óculos escuros vaga por Nova York vestindo uma camiseta com os dizeres: "Olá, eu sou Tom Pynchon".