ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Mil vezes obrigado, Lou Reed
Rio de Janeiro, 1996
Nesse momento de absoluta tristeza (alguém tinha pensado que um cara como Lou Reed podia simplesmente morrer?), quando a parte da nossa vida trilhada por sua música passa acelerada diante dos nossos olhos marejados de blues, me parece oportuno, diria inescapável, revisitar esse encontro e, de algum jeito, promover uma espécie de acerto de contas.
Não me entenda mal, leitor: essa entrevista televisiva (para a MTV Brasil) com o músico nova-iorquino, que aconteceu em setembro de 1996, às vésperas de suas primeiras apresentações no Brasil (The Hooky Wooky Tour), não deu mesmo bom resultado jornalístico.
Imagino que nem o mais hábil dos editores teria sido capaz de salvar o material e se virar com a dinâmica trincada, com a eloquência quase sombria da nossa conversa. E é bom que tenha sido assim: o clima instável, as dificuldades específicas desse encontro acabam por validá-lo: não queria que tivesse sido de outro jeito.
Tudo ia bem no começo. Depois das rápidas formalidades de apresentação, nos instalamos no set armado à beira da piscina do hotel Sheraton, no Rio de Janeiro. Tudo testado e pronto para a ação.
Como eu tinha acabado de assistir a uma bela apresentação no festival suíço Paleo, em boa parte da área próxima ao palco reservada aos fotógrafos, arrisquei de cara umas considerações impressionistas sobre sua relação com o público, sobre a cumplicidade que ele conseguia estabelecer nessas ocasiões grandiosas. Pareceu agradar. Apesar da sisudez, pensei que tudo estava tranquilo e que teríamos uma boa conversa.
Mas aí veio a ruptura. Percebi na hora o vacilo que alterou inelutavelmente o andamento dos trabalhos: a pergunta sobre as biografias, ou melhor, a pergunta com referência pontual a uma biografia e ainda uma certa insistência no assunto das biografias e a ele, Lou Reed, como biografado. Mea culpa, mea velvetiana culpa!
Não tinha mais volta. Foi mínima a alteração em sua linguagem corporal: intensificou-se apenas o movimento sinistro de alisar o curativo que exibia sobre as veias do braço esquerdo. Mas o olhar"¦ O que era intenso e mirava bem no alvo dos meus olhos desde o início transformou-se num objeto perfurocortante e me atravessou como uma flecha. Ou, mais de acordo, como uma espada de samurai.
Fui em frente, deixando claro que acusara o golpe, reconhecia, e até falamos mais um tempinho: Zappa, guitarras, o legado. Mas realmente já era. Senhor do tempo, Lou Reed devolveu a cada duas perguntas um monossílabo --técnica para lá de pragmática de enxugamento das atividades, basicamente porque, para o entrevistador, cada segundo passa a valer por uma eternidade e meia e, nessas horas, o que você mais quer é que tudo acabe logo.
Encerramos com um forte aperto de mão e nos despedimos.
Passados alguns minutos, enquanto eu e a equipe nos preparávamos para bater em retirada, vi Lou caminhar em minha direção.
Com um leve cutucão no ombro e algo parecido com um sorriso, puxou conversa. Foi logo explicando, por linhas nada tortas, o motivo do mau humor: detestava biografias. Ironicamente, ele me fez perceber que eu devia saber da sua insatisfação pesada e declarada. Eu sabia e sei, Lou. Só pode ter sido o tal do "imponderável" das entrevistas que resolveu se meter no meu caminho.
Proseamos por mais alguns instantes e, antes de ir embora, Lou viu, entre as minhas coisas desarrumadas, um CD do maravilhoso "Berlin". O disco estava ali para o caso de surgir um clima bom para um autógrafo. Ele então pegou o CD, disse que era um de seus prediletos e escreveu uma dedicatória. Comentei algo sobre as criancinhas chorando no álbum, e ele sorriu antes de partir. Na capa, escreveu "thanks!". Eu respondo: mil vezes obrigado, Lou Reed.
P.S.: Em defesa da empreitada televisiva, registro que colocamos a entrevista no ar quase em estado bruto --a sabedoria minimalista do mestre e o sofrimento do entrevistador, sem maquiagem.
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