domingo, 3 de novembro de 2013

Cachorro também é ser humano - Gregory Berns

folha de são paulo
As emoções caninas postas em exame
GREGORY BERNSTRADUÇÃO CLARA ALLAINRESUMO Exames de ressonância magnética atestam semelhanças entre cães e humanos quanto ao funcionamento do caudado, região cerebral que reconhece o prazer. A constatação de emoções parecidas leva pesquisador a defender que animais têm uma "humanidade" limitada e que deveríamos rever o tratamento dado a eles.
Há dois anos meus colegas e eu treinamos cães para ficarem num aparelho de ressonância magnética --totalmente despertos e sem estarem amarrados ou presos de nenhuma forma. Nossa meta é determinar como funcionam os cérebros dos cães e, o que é ainda mais importante, o que eles pensam de nós, humanos.
Agora, depois de treinar e fazer exames de ressonância magnética em uma dúzia de cães, minha única conclusão inescapável é esta: os cães também são pessoas.
Como os cães não falam, os cientistas deduzem seus pensamentos a partir de observações comportamentais. É arriscado. Não é possível perguntar a um cão por que ele faz alguma coisa. E não é possível lhe perguntar como se sente.
A possibilidade de trazer à tona emoções animais assusta muitos cientistas. Afinal, a utilização de animais em pesquisas é um grande negócio. Era fácil evitar as perguntas difíceis sobre as percepções sensoriais e as emoções dos animais, porque essas perguntas não tinham resposta possível.
Até agora.
Com o exame direto dos cérebros dos animais, passando ao largo das limitações do behaviorismo, a ressonância magnética nos revela o estado interno dos cães. O exame é realizado em espaços confinados e ruidosos. As pessoas não gostam do procedimento, durante o qual é preciso ficar totalmente imóvel.
A prática veterinária convencional reza que é preciso anestesiar animais para que não se movam enquanto passam pela ressonância. Mas não é possível estudar a função cerebral de um animal anestesiado --ao menos não quanto a elementos interessantes como percepção ou emoção.
Desde o início, tratamos os cães como pessoas. O dono de cada cão assinava um termo de consentimento baseado no modelo usado para procedimentos em crianças. Ressaltávamos que a participação era voluntária e que o cão tinha o direito de abandonar o estudo.
Usamos apenas métodos de treinamento positivos. Nada de sedação ou cintos. Se o cachorro não quisesse ficar no aparelho de ressonância, podia sair, como qualquer voluntário humano.
Minha cadela Callie foi a primeira. Resgatada de um abrigo de animais, Callie era uma cadela magra, mista de terrier, uma raça conhecida como "feist" --independente, corajosa-- nos Apalaches, a região do leste dos EUA de onde ela vem.
Fiel às suas origens, Callie preferia caçar esquilos e coelhos no quintal a ficar aconchegada no meu colo. Sua curiosidade natural provavelmente foi o motivo para ela ter ido parar num abrigo, mas também o que fazia fácil treiná-la.
Com a ajuda de meu amigo Mark Spivak, treinador de cães, comecei a ensinar Callie a entrar num simulador de aparelho de ressonância magnética que construí na sala de minha casa. Callie aprendeu a subir degraus e a entrar num tubo, a colocar sua cabeça sobre um apoio de queixo e a ficar totalmente imóvel por períodos de até 30 segundos. Também precisou aprender a usar protetores de orelhas para resguardar sua audição dos ruídos de 95 decibéis feitos pelo aparelho.
Após meses de treinamento, algumas tentativas e erros no aparelho de ressonância real, fomos recompensados com os primeiros mapas de atividade cerebral.
Nos primeiros ensaios, medimos sua resposta cerebral a dois sinais feitos com as mãos no aparelho. Nos ensaios posteriores, ainda não publicados, determinamos que regiões do cérebro dela distinguem cheiros de cães e humanos conhecidos e desconhecidos.
Em pouco tempo a comunidade ficou sabendo de nosso esforço para determinar o que os cachorros pensam. Em um ano tínhamos reunido uma equipe de uma dúzia de cães preparados para fazer ressonância magnética.
SEMELHANÇA Estamos apenas começando a responder às perguntas básicas sobre o cérebro canino, mas não podemos ignorar a semelhança notável entre cães e humanos na estrutura e no funcionamento de uma região cerebral chave: o núcleo caudado.
Rico em receptores de dopamina, o caudado se localiza entre o tronco encefálico e o córtex. Nos humanos, desempenha papel crucial na antecipação de coisas que nos dão prazer, como comida, amor e dinheiro.
Mas será que podemos virar essa associação de trás para diante e deduzir o que uma pessoa está pensando pela simples medição da atividade do caudado?
Devido à enorme complexidade das interligações entre as diferentes partes do cérebro, geralmente não é possível associar uma função cognitiva ou emoção isolada a uma única região cerebral.
É possível, porém, que o caudado represente uma exceção. Partes específicas do caudado se destacam porque, diante de um grande número de coisas que dão prazer aos humanos, elas se ativam de forma consistente. A ativação do caudado, sob as circunstâncias apropriadas, é capaz de prever nossas preferências de comida, música e até mesmo beleza.
No caso dos cães, descobrimos que a atividade no caudado aumentava em resposta a sinais das mãos que indicavam comida. O caudado também se ativava diante do cheiro de humanos conhecidos.
Em ensaios preliminares, ele se ativava diante do retorno do dono que tivesse momentaneamente saído das vistas do animal. Essas descobertas provam que os cachorros nos amam?
Não exatamente, mas muitas das mesmas coisas que ativam o caudado humano, coisas associadas a emoções positivas, também ativam o caudado canino. Os neurocientistas chamam a isso homologia funcional, e pode constituir um indicativo de emoções caninas.
A capacidade de sentir emoções positivas, como amor e apego, significaria que os cães possuem um nível de percepção sensorial comparável ao de uma criança.
Por muito tempo, cães foram tratados como propriedade humana. Embora leis estaduais e a Lei do Bem-Estar Animal, de 1966, tenham exigido que se destine um tratamento melhor aos bichos, elas consolidaram a visão de que os animais são coisas --objetos dos quais se poderia dispor, desde que tomado o cuidado razoável para minimizar seu sofrimento.
Mas agora, ao usar a ressonância magnética para afastar as limitações do behaviorismo, não podemos mais fazer vista grossa para as evidências. Os cães, e provavelmente muitos outros animais também (especialmente os primatas com parentesco mais estreito conosco), parecem ter emoções, exatamente como nós temos. Isso significa que precisamos rever o tratamento que damos a eles.
HUMANIDADE Uma opção é reconhecer uma espécie de "humanidade" limitada dos animais que demonstram evidências neurobiológicas de emoções positivas. Muitos grupos de resgate já usam esse rótulo de "guardião" para descrever os humanos que cuidam de animais, vinculando o humano a seu protegido por meio da responsabilidade implícita de cuidar dele.
Aquele que deixe de atuar como bom guardião corre o risco de ter seu cão encaminhado para outro protetor. Mas não existem leis que tratem animais como pupilos ou protegidos, de modo que os diferentes grupos de resgate que operam segundo o modelo da guarda carecem de bases legais para proteger os interesses dos animais.
Se déssemos mais um passo adiante e concedêssemos aos cães os direitos que acompanham a condição humana, eles ganhariam proteção adicional contra a exploração.
A criação de cães sob condições desumanas para finalidade de lucro rápido, o uso de cães em laboratórios e as corridas de cães seriam proibidos, pois violariam os direitos básicos de autodeterminação de uma pessoa.
Creio que a sociedade ainda está a muitos anos de distância de considerar cães como pessoas. Contudo decisões recentes da Suprema Corte levaram em conta descobertas da ciência neurológica que abrem essa possibilidade.
Em dois casos, o tribunal decidiu que infratores menores de idade não poderiam ser sentenciados à prisão perpétua sem a possibilidade de liberdade condicional. Em suas decisões, a corte citou evidências obtidas em exames de imagem cerebral a fim de atestar que o cérebro humano não está maduro na adolescência.
Embora esses exemplos não guardem relação com a percepção sensorial dos cães, os juízes abriram a porta para o recurso à neurociência nos tribunais. Quem sabe um dia vejamos um caso judicial em que os direitos de um cão sejam defendidos com base em exames de imagem cerebral.

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