domingo, 17 de novembro de 2013

No último Kubrick, não leve as crianças - Contardo Calligaris

folha de são paulo 
Quinta-feira,02 de setembro de 1999 daqui

Estréia amanhã o último filme de Kubrick, "De Olhos Bem Fechados". O título original, "Eyes Wide Shut", é um trocadilho. Sua tradução literal seria: "De Olhos Arregaladamente Fechados". Como se, de tanto arregalar os olhos, não desse para ver mais nada.
Não sei por que Kubrick inventou esse título. Mas ele é, de qualquer forma, emblema do que vem acontecendo com a representação do sexo no cinema: ganhamos, enfim, livre acesso aos vestiários masculinos e femininos, escutamos as conversas e vemos livremente os corpos. É engraçado, pode até ser excitante, mas ficamos por conta. Pois o sexo, de fato, não é feito nem de piadas nem de bundas. Sexo é um jogo de fantasias, nem sempre claras, cômodas ou confessáveis.
Ora, o filme de Kubrick é um filme sobre sexo. Por isso, aliás, não está garantido que encontre seu público. Parece que nos acostumamos à simplificação infantil da sexualidade: piadas e bundas. Há, para tal, uma explicação de marketing. Nos anos 90, os adolescentes e pré-adolescentes se tornaram público-alvo de um número cada vez maior de filmes. Hollywood aprendeu que os jovens têm mais dinheiro no bolso, gostam de ir ao cinema e levam os adultos consigo, estabelecendo e promovendo modas.
Os adultos adoram pegar onda com a rapaziada. Portanto, a representação do sexo no cinema se aproximou da que os adolescentes conseguem tolerar: barulhenta, mas fundamentalmente reprimida. Os palavrões, a vulgaridade (em breve, o barulho), servem para silenciar desejos e fantasias.
Este infantilismo sexual não é só efeito da chegada dos adolescentes no mercado da cultura. É também o refluxo dos anos 60. No burburejar da revolução sexual, parece que o cinema conseguiu encarar milagrosamente a complexidade do sexo. E isso para platéias que de alguma forma se reconheciam nele.
Entre 67 e 73, foram filmados, por exemplo, "A Primeira Noite de um Homem", "Perdidos na Noite" e "Último Tango em Paris". Desde então, os filmes sobre sexo se tornaram mais raros. Com a exceção (notável) da obra de Almodóvar e de alguns filmes em que o sexo aparece, mas com a desculpa de ser uma obsessão patológica (tipo "9 Semanas e 1/2 de Amor"), o cinema de grande público oferece desbunde, nudez e vulgaridade, mas não sexo.
O que aconteceu? Deveria se esperar que a revolução sexual permitisse olhar para o sexo em sua complexidade, às vezes soturna. Ora, parece que, em vez de abrir os olhos, nós os arregalamos, o que pode ser uma maneira de fechá-los. O sexo sumiu por baixo de uma caricatura festiva. A liberação sexual veio junto com uma recrudescência da ideologia higienista da vida: querem seus corpos para com eles livremente explorar prazeres? Podem, mas que sejam corpos saudáveis. Ou seja, querem gozar? Aqui está: cooper, aeróbica, muito sol (agora com protetor) e abaixo o colesterol.
O sexo liberado projetava uma orgia e acabou se parecendo com uma festa de cruzeiro durante as férias obrigatórias. A manteiga do "Último Tango em Paris" se tornou margarina dietética.
No filme de Kubrick há justamente uma cena de orgia que foi muito discutida. Por um lado, críticos e intelectuais (até no Brasil) se indignaram porque, a fim de evitar que o filme fosse classificado pornográfico, 65 segundos de película foram manejados eletronicamente para esconder órgãos sexuais copulando. Gritos de horror contra a censura. Os brasileiros podem ficar sossegados: no Brasil o filme será exibido na íntegra.
Mas vale lembrar que uma verdadeira censura sobre o sexo começa a funcionar quando pensamos que o sexo seja isso: pênis e vaginas expostos. Quem se preocupou com a ausência de órgãos eretos ou ficou esperando para ver se Cruise e Kidman transariam, pois bem: ficou de olhos arregaladamente fechados. De tanto querer ver, não viu nada.
Por outro lado, há a crítica frequente de que a cena da orgia seria triste, ritualizada. Caramba! Parece que a idéia mais comum de orgia é a caricatura do set de um filme pornográfico onde todos transam "legal", com muita luz e bom humor. Ou então, pior ainda, um clube de troca de casais, no qual um organizador do Club Mediterranée anima um bingo para quebrar o gelo.
Será que ainda há público para um filme adulto sobre sexo? Espero que sim. Deixe as crianças em casa. Deixe em casa também a criancice. E curta um filme que tenta levar o sexo a sério.

P.S. 1 - A escolha de Cruise e Kidman não é erro: eles são perfeitos por serem a imagem de um casal água-com-açúcar. Não transpiram sexo, não são Bruce Willis e Kim Basinger. Mas é esse o ponto: eles são um casal "copo-de-leite-bom-pra-saúde" e vão encontrar, de repente, dentro de si, alguns sonhos mais cabeludos.
2. Por favor: o filme não é uma história de ciúme. Salvo no sentido em que o ciúme é um vasto repertório de fantasias eróticas.

Email: ccalligari@uol.com.br

Marcelino Freire

folha de são paulo

50 letras, sem tirar nem pôr


 
MARCELINO FREIRE
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Dalton Trevisan não poderia faltar. Pus no juízo: vou atrás, insisto, me rastejo, ínfimo. Uma antologia de microcontos não ficaria completa sem ele. Mestre da concisão. Alto Dalton. Máximo, grande.
Mas ele vive recluso, não dá as caras. Eu não desisto.
O ano era de 2004. Muito antes do Twitter. Resolvi criar a antologia "Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século" (Ateliê Editorial). Uma referência à organizada pelo Italo Moriconi, "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século". Ao Italo, pedi a assinatura de um microprefácio. Que ele generosamente fez. Em 50 palavras.
Os contos, esses não, teriam de ter até 50 letras. Sem contar o título. Isso, inspirado que fui pelo microconto mais famoso do mundo, o do guatemalteco Augusto Monterroso. Uma história de 37 letrinhas, a saber: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá".
Toparam participar Sérgio Sant'Anna, Adriana Falcão, João Gilberto Noll, Manoel de Barros, Modesto Carone, Andréa Del Fuego, Glauco Mattoso...
Lygia Fagundes Telles escreveu um, genial, só em diálogos: "- Fui me confessar ao mar. / - E o que ele disse? / - Nada.".
Maravilha!
Mas faltava o Dalton.
Fabio Braga/Folhapress
Exemplar de "O Anão e a Ninfeta" autografado por Dalton Trevisan
Exemplar de "O Anão e a Ninfeta" autografado por Dalton Trevisan
Até o Millôr Fernandes topou -esse, antigo seguidor dos microformatos. Com Millôr foi relativamente fácil. Eu já tinha estado com ele no Rio para um papo raro. Cheio de humor e irreverência. Ligou-me para se certificar: "Até 50 letras, sem contar o título, é isto?". É isto, Millôr.
E não é que ele me mandou um conto em contadinhas 50 letras? No entanto, o título era imenso. "Fiz o que você me pediu, não fiz?"
Fez, sim, fez.
Mas repito: faltava a presença do Vampiro de Curitiba. Eu havia mandado uma carta para ele. Havia mais de um mês.
Esperei, esperei. Noventa e nove escritores já reunidos. O livro todo diagramado. Organizado por ordem alfabética. Na letra "D", antes de Daniel Galera, deixei o espaço vago.
Qualquer coisa, se o Dalton não me responder, eu invento um autor: Dalvan Trigueiro. Faço uma homenagem, sei lá, à revelia. E mando o livro para a gráfica, entristecido.
O tempo ficando miúdo. A esperança é a última que chega. Em cima da hora. Eis que recebo um envelope. E, dentro, o conto, também em diálogos: "- Lá no caixão... / - Sim, paizinho. / -... não deixe essa aí me beijar".
E eu quase morro.
Dalton Trevisan é desses escritores que me deixam sem fôlego. É ele em que me espelho quando coloco minhas neuroses na página. Gosto de suas obsessões. Inquietações. A cada livro seu, uma surpresa. Dalton escreve na velocidade da luz.
Não se engane. Ele não é só o "dono" de um estilo rápido. Vupt, vapt. Dalton escreve à velocidade da sombra. Vai sempre longe.
E foi assim.
A antologia finalmente saiu. Até hoje é referência para quem quer estudar as narrativas curtas. Foi trabalho, fiquei sabendo, inédito no mundo, à época: esse de reunir tantos autores, de uma vez só, escrevendo "enormemente menor".
A todos, até hoje agradeço. Sobretudo aos que já se foram: Moacyr Scliar, Manoel Carlos Karam, Alberto Guzik, Wilson Bueno. E idem ao sempiterno Millôr.
E essa antologia também me deu, ave, a amizade do Dalton. De quando em quando, assim, a gente se fala. Via correios.
O contato mais surpreendente foi pouco antes de ele ganhar o Prêmio Camões, em maio de 2012. Enviei a ele o meu livro de contos "Amar É Crime" (Edith).
Recebi, em troca, "O Anão e a Ninfeta", com a seguinte dedicatória: "Ao Marcelino Freire, com a muita admiração do seu leitor fiel".
E eu quase morro. De novo. Em saber que ele se diz o meu "leitor". Eu que aprendi a ler com ele. Nas entrelinhas. E continuo a apreender. E a me surpreender.
A dedicatória do Dalton, por exemplo, tem exatas 50 letras. Sem tirar nem pôr. Pode crer.
MARCELINO FREIRE, 46, lança o romance "Nossos Ossos" (ed. Record). É criador da Balada Literária, que acontece de quarta a domingo (www.baladaliteraria.com.br).

Apanhar o autocarro ou pegar o ônibus? - ISABEL COUTINHO

folha de são paulo
DIÁRIO DE LISBOA
O MAPA DA CULTURA
Português a falar brasileiro
Apanhar o autocarro ou pegar o ônibus?
ISABEL COUTINHOEm todas as edições se fazem apostas para tentar adivinhar quem vai receber o Prêmio José Saramago. A honraria no valor de € 25 mil (cerca de R$ 78 mil) é atribuída de dois em dois anos a uma obra literária de ficção escrita em língua portuguesa (e publicada em qualquer país lusófono) por um autor de não mais de 35 anos.
Se em 2011 foi uma surpresa a vitória da brasileira Andréa del Fuego, por "Os Malaquias", o resultado deste ano, divulgado no dia 5 em Lisboa, confirmou o palpite de muitos.
O vencedor, o angolano Ondjaki, havia muito era favorito. A vez dele chegou com o romance "Os Transparentes" (Companhia das Letras). O prêmio instituído pela Fundação Círculo de Leitores escolheu o livro por unanimidade.
A escritora e imortal brasileira Nélida Piñon, parte do júri, disse que Ondjaki criou "uma galeria de grandes personagens, cada qual com suas idiossincrasias muito bem definidas, enlaçadas por um fio de solidariedade e de ironia".
Ondjaki dedicou o Prêmio José Saramago ao país onde nasceu. "Este é um livro sobre uma Angola que existe dentro de uma Luanda que eu procurei escrever e descrever. Fi-lo com o que tinha dentro de mim entre verdade, sentimento, imaginação. E amor. É uma leitura de carinho e de preocupação. É um abraço aos que não se acomodam mas antes se incomodam. É uma celebração da nossa festa interior, trazendo as makas, os mujimbos, algumas dores, alguns amores. Penso que todos queremos uma Angola melhor."

PAPÉIS DISPERSOS
De Agustina Bessa-Luís, escritora do Porto afastada da vida pública por motivos de doença, acaba de ser publicado em Portugal "Caderno de Significados" (Guimarães Editora; € 12,50; cerca de R$ 38), com seleção, organização e fixação de texto de Alberto Luís (seu marido) e da escritora Lourença Baldaque (sua neta).
Os escritos reunidos foram encontrados em "folhas soltas, em cadernos de notas, em espaços brancos de impressos, em margens de livros", explica Alberto Luís no prefácio. Há excertos de entrevistas, de conferências e alguns inéditos.
Um dos textos é dedicado a Lisboa, que a escritora descreve assim: "Descei do céu para Lisboa, vindos de Nova York, e vereis a torre de Belém como um castelo de areia. Se o rio crescesse como cresce o mar, arrancava-lhe os dentes um a um. E ficava desdentada a bela torre; a sua lendária face deixava de ser proa de Lisboa. E o velho do Restelo não sabia mais o que dizer nem onde se encostar".

VAI, BRASIL
"Os cariocas têm de ganhar a vida como toda a gente, mas nunca a perdem por causa disso." Essa é uma das frases de "Vai, Brasil" (€ 18; R$ 55), novo livro de Alexandra Lucas Coelho, repórter e escritora portuguesa residente no Rio há alguns anos, que acaba de ser editado em Portugal na coleção de viagens da Tinta da China, dirigida por Carlos Vaz Marques.
O editor considera ser este "o melhor livro" da autora. "Ela consegue uma síntese da língua portuguesa, cruzando o modo de dizer de Portugal com o jeito do Brasil de uma forma tão feliz que nos dá a sensação, em certos momentos, de estar a proceder à refundação do idioma, como Caetano Veloso a roçar sua língua pela língua de Luís de Camões."
O livro, com prefácio de Francisco Bosco, colunista do jornal "O Globo", começa no final do governo Lula e termina nas gigantescas manifestações deste ano.
Um excerto: "Português a falar brasileiro não tem jeito, mesmo quando tem. Mas o que não tem jeito mesmo é perder tempo a não ser entendido. Não vou subir a favela e dizer sítio quando posso dizer lugar, ou apelido quando posso dizer sobrenome, ou alcunha quando posso dizer apelido, ou apanhar o autocarro quando posso pegar o ônibus. Português a falar brasileiro nem é jeito de dizer, porque português e brasileiro falam sempre português, em toda a sua mestiça extensão".

O RIO POR QUEM SABE
E se Alexandra Lucas Coelho é a estrangeira que olha para o Brasil e nos mostra coisas que quem lá vive nem sempre vê, Rita Sousa Tavares revela-nos o Rio de Janeiro pelos olhos de quem lá mora.
"Show Me Rio" (ed. Café Pessoa; R$ 109) é um livro de edição luxuosa, com fotografias belíssimas de José Pedro Monteiro e Márcio Mercante e textos, em "carioquês", da filha de Miguel Sousa Tavares.
É vendido acompanhado por um CD com um documentário homônimo. Livro e filme têm dicas de 19 personalidades que nos guiam pela cidade. Entre elas, Chico Buarque, cuja conversa serve de introdução ao que veremos e leremos a seguir, Vik Muniz (nos mostra o Jardim Botânico e o Instituto Moreira Salles), Maitê Proença (recomenda o Theatro Municipal), o prefeito Eduardo Paes (nos leva à Floresta da Tijuca de bicicleta) e Zuenir Ventura (visita o Real Gabinete Português de Leitura).
"Show Me Rio" é a primeira edição de um projeto intitulado "Show Me Cities" (www.showmecities.com), que nos levará para outras cidades vistas por quem lá vive.

    Ensinando a ser rico - Henrique Meirelles

    folha de são paulo
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    O Brasil hoje é um país caro, que perde capacidade exportadora e eleva importações, uma conjuntura insustentável ao equilíbrio econômico do país. Por isso, é fundamental aprofundar a discussão e as medidas para elevar nossa produtividade.
    Estudo do Banco Mundial cobrindo 40 anos e 50 países mostrou, de forma inequívoca, a relação direta do nível de educação com a produtividade e o nível de renda de um país.
    O progresso da educação brasileira nos últimos anos é inegável. O aumento do número de estudantes em todos os níveis foi conquista de diversos programas, mas principalmente do crescimento do investimento em educação.
    Em 1995, o Brasil investia 3,7% do PIB em educação, bem abaixo da média da OCDE (grupo dos países mais desenvolvidos). Hoje, investe 5,2% do PIB, superior à média de 4,8% da OCDE. Mesmo assim, seguimos com níveis de aprendizado abaixo da média mundial e de países como México e Chile.
    Se o aumento do número de estudantes e do tempo de estudo é essencial, o que eleva efetivamente a produtividade é o crescimento do nível geral de aprendizado, isto é, o aumento do desempenho, medido por testes de padrão internacional.
    O estudo citado e a experiência internacional mostram que essa evolução requer maior foco e investimento no ensino fundamental, melhor capacitação dos professores, métodos de ensino diferentes e abandono de práticas excessivamente teóricas.
    Os países onde o professor tem o status mais elevado na cultura nacional, como Cingapura, Coreia do Sul e Finlândia, são os com maior nível de aprendizado e os que conseguem atrair os melhores alunos para essa carreira fundamental ao desenvolvimento.
    O ensino teórico, repetitivo e baseado na memória deve ser substituído pelo ensino interativo, em linha com os jovens de hoje, com uso de técnicas que favoreçam o entendimento sobretudo de matemática, ciências e língua portuguesa. Isso requer mais investimento em equipamentos como computadores, laboratórios, bibliotecas tradicionais e eletrônicas.
    É imprescindível aumentar o tempo no qual os estudantes estão efetivamente engajados no aprendizado na aula. Ele não passa de 65% do tempo total nas melhores regiões do Brasil, contra a média de 88% dos países da pesquisa. O estudo conclui que, se atingir o nível médio do desempenho educacional dos países pesquisados, o Brasil pode elevar o PIB em cerca de dois pontos percentuais.
    Em resumo, o grande salto de produtividade do Brasil, capaz de elevar de forma sustentável a geração de riqueza e reduzir a desigualdade, passa não só por investimentos em infraestrutura e reformas fundamentais, mas, principalmente, pelo aumento da eficácia do processo educacional.
    HENRIQUE MEIRELLES escreve aos domingos nesta coluna.
    henrique meirelles
    Henrique Meirelles é presidente do Conselho da J&F (holding brasileira que controla empresas como JBS, Flora e Eldorado) e chairman do Lazard Americas. Ele foi presidente do Banco Central do Brasil de 2003 a 2010 e, antes disso, presidente global do FleetBoston e do BankBoston.

    Manuel da Costa Pinto [revista são paulo]

    folha de são paulo

    Novo álbum resgata espírito original de Asterix como metáfora da Resistência francesa

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    O novo álbum de Asterix é duplamente histórico. É a primeira vez que uma HQ da série não é escrita e desenhada pelos criadores do pequeno gaulês e de seu inseparável companheiro Obelix. Além disso, "Asterix Entre os Pictos" reconduz as aventuras a seu espírito original.
    Comecemos por aí. Poucos leitores mirins percebem que a aldeia litorânea idealizada pelo roteirista Goscinny e imortalizada pelo traço de Uderzo é uma metáfora da França à época da ocupação nazista.
    Mas a página inicial, que se repete em todos os álbuns, com o mapa da Gália (território da atual França à época da expansão de Roma), não deixa dúvidas. Um pequeno quadro informa: "Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor". Eis a chave de leitura: numa França que estendeu o tapete vermelho para as tropas de Hitler, uns minguados resistentes infernizam a vida do inimigo.
    Reprodução
    Imagem do livro "Asterix entre os Pictos", desenhado por Didier Conrad
    Imagem do livro "Asterix entre os Pictos", desenhado por Didier Conrad
    Com a morte de Goscinny em 1977, porém, Uderzo acumulou a função de roteirista e acabou desfigurando a série. Começou com "O Grande Fosso", paródia de "Romeu e Julieta" distante da tradicional sátira ao chauvinismo francês, culminou em "O Dia em que o Céu Caiu", com a constrangedora inserção de extraterráqueos calcados em mangás japoneses.
    Tapetes voadores ("As 1.001 Horas de Asterix") e "gadgets" típicos de 007 ("A Odisseia de Asterix") quebraram o caráter naturalista da aventura --cujo único elemento mágico era a poção do druida Panoramix, que dava força sobre-humana aos gauleses e que na verdade era um placebo, uma metáfora da vontade --conforme se vira em "Asterix entre os Bretões".
    Agora, Jean-Yves Ferri e Didier Conrad (respectivamente, roteirista e desenhista da nova aventura) restauram a ideia de que os irredutíveis gauleses são expressão de uma Europa profunda dividida em tribalismos.
    Em "Asterix entre os Pictos", os heróis ajudam um escocês, que chega à praia da aldeia envolto numa redoma de gelo, a voltar a sua terra natal --onde se digladiam diferentes grupos (cada qual com a pele tingida de uma cor, derivando daí o epíteto latino de "pictos", "homens pintados").
    Por trás das rivalidades pessoais, estão os oportunismos daqueles que se alinham ao invasor --numa história com direito a monstro do lago Ness e ao tradicional banquete final regado a uísque escocês, enquanto um patético recenseador romano tenta entender os movimentos dessa turma ingovernável, que resiste aos imperialismos que volta e meia assolam o Velho Continente.
    LIVRO
    ASTERIX ENTRE OS PICTOS ***
    AUTORES: Jean-Yves Ferri e Didier Conrad
    TRADUÇÃO: Gilson Dimenstein Koatz
    EDITORA: Record (48 págs., R$ 28)
    *
    LIVRO
    ASTERIX E O ESCUDO ARVERNO ****
    Asterix e Obelix escoltam o chefe Abracurcix à região de Auvergne, que foi cenário da derrota dos gauleses diante de Roma e, ironicamente, sediou o governo colaboracionista de Vichy na Segunda Guerra.
    AUTORES: René Goscinny e Albert Uderzo
    TRADUÇÃO: Cláudio Varga
    EDITORA: Record (48 págs., R$ 30)
    *
    FILME
    A TRISTEZA E A PIEDADE ****
    Documentário de 1969 sobre a Resistência e, sobretudo, o colaboracionismo durante a ocupação nazista da França --eterna mancha na autoestima do país.
    DIREÇÃO: Marcel Ophüls
    DISTRIBUIDORA: Videofilmes (locação)
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    LIVRO
    ENTRE A LITERATURA E A HISTÓRIA
    Alfredo Bosi (Editora 34, 480 págs., R$ 65)
    Reúne ensaios, entrevistas e "intervenções" (aulas, conferências) do professor de literatura e um dos críticos mais importantes da história do país. Sob a diversidade temática (poesia brasileira e pensamento político; Machado de Assis e Graciliano Ramos; Vico e Leopardi) revela-se, mais do que a erudição, a amarração rigorosa de questões estéticas e ideológicas.
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    DISCO
    BACH TRANSCRIBED
    Alessio Bax (Signum, importado)
    É comum que peças escritas para cravo por Bach sejam interpretadas ao piano (instrumento posterior à época do compositor alemão). As transcrições interpretadas pelo italiano Bax, porém, vão além desse repertório e incluem arranjos de autores como Busoni e Saint-Saëns para obras com outras formações originais --resultando num Bach noturno e romântico.
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    FILME
    O MOINHO E A CRUZ ***
    Lech Majewski (Lume, R$ 37,90)
    Nesta produção polonesa (falada em inglês), o pintor Bruegel (Rutger Hauer) concebe a tela "Procissão para o Calvário" durante a ocupação espanhola dos Países Baixos. E, se a tela funde passado e presente, a Paixão de Cristo e o cotidiano camponês do século 16, o cenário do filme é o quadro, mimetizado com fotografia deslumbrante, mas torna esquemática uma narrativa quase toda visual, que espelha a tensão entre Reforma e Contra-Reforma.
    Divulgação
    Hauer como Bruegel em "O Moinho e a Cruz"
    Hauer como Bruegel em "O Moinho e a Cruz"
    Manuel da Costa Pinto
    Manuel da Costa Pinto é jornalista e mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Colunista da revista "sãopaulo" e editor do "Guia Folha - Livros, Discos, Filmes", é também editor do programa "Entrelinhas", da TV Cultura. Escreve aos domingos.

    Briga de peixes, com morte e aposta - Jaime Spitzcovsky

    folha de são paulo

    Briga de peixes, com morte e aposta

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    Converso muito com o Guerrero. Não me refiro ao Paolo, o autor de um dos gols mais importantes da história do Corinthians, o da final do Mundial de Clubes, em 2012. Meu interlocutor frequente é um peixe-beta, cujo aquário fica sobre minha escrivaninha, ao lado do computador.
    Enquanto trabalho, Guerrero, batizado em homenagem ao artilheiro, estica suas frondosas nadadeiras e cauda arroxeadas, num degradê bastante sutil. As cores contrastam com o verde-água das pedrinhas na base da beteira, como é conhecido o aquário construído para abrigar um dos peixes mais populares entre apaixonados pela fauna marinha.
    O contraste colorido fica mais gritante quando Guerrero repousa no fundo de sua casa. Quando me aproximo, ele majestosamente abre as nadadeiras, bate a cauda e irrompe numa acelerada movimentação para a superfície. Espera que eu polvilhe o alimento.
    Ilustração Tiago Elcerdo
    Guerrero é o segundo peixe-beta em casa. Tivemos antes o Nemo, que viveu cerca de três anos. Foi o primeiro bicho que a minha filha Silvia, então com três anos, pôde
    comprar e chamar de seu. Alimentar o peixe e vê-lo nadar com elegância, exibindo suas cores vivas, fascinavam a menina.
    Muito das cores dos peixes-beta à venda tem os dedos humano e da seleção genética. Na natureza, o animal costuma carregar coloração acastanhada, com leves pinceladas em azul e vermelho, num desenho para ajudar a escapar de predadores. Mas hoje alguns não escapam é da imbecilidade humana.
    O peixe-beta é territorialista, agressivo com machos da mesma espécie. Quando vislumbra um rival, eriça-se e pode partir para a briga. E, sobretudo no sudeste asiático, são promovidas lutas entre os peixes, com apostas e muitas vezes morte de um deles. Às vezes falo sobre isso ao meu Guerrero. E juro que ele parece fazer cara de quem não acredita que possa haver tal selvageria.
    jaime spitzcovsky
    Jaime Spitzcovsky, jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e em Pequim. Escreve sobre animais de estimação aos domingos, a cada duas semanas, na revista 'sãopaulo'.

    Museu cria festival de vídeos com gatos e diz que tem valor artístico

    folha de são paulo


    GUILHERME GENESTRETI
    DE SÃO PAULO
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    No rol de artistas já exibidos pelo museu Walker Art Center estão Andy Warhol (1928-1987), Mark Rothko (1903-1970) e Jasper Johns. Agora, há uma gata brava, um felino existencialista e outro louco por um aspirador de pó.
    Esse centro de arte contemporânea na cidade de Minneapolis (EUA) é sede do Internet Cat Video Festival.

    O evento anual reúne até 10 mil pessoas para assistir a uma sequência de 75 minutos de vídeos de gatos da web: há de flagrantes engraçados a produções requintadas, com diálogos e paródias de filmes.
    Gene Pittman/Divulgação
    Estádio em Minneapolis cerca de 10 mil pessoas reunidas no último Cat Video Festival, evento criado por museu de arte
    Estádio em Minneapolis cerca de 10 mil pessoas reunidas no último Cat Video Festival, evento criado por museu de arte
    Mas vídeo de gato é arte?
    "Se expomos o que é relevante à cultura popular contemporânea, por que ignorar esses vídeos?", diz o curador da mostra, Scott Stulen, 38.
    "Há uma tendência em se buscar uma 'internet real' e o festival cumpre a função: reúne pessoas para compartilhar experiências que antes tinham sozinhas. O fator artístico está na plataforma criada para a experiência social compartilhada, que une o mundo da arte à cultura popular."
    PERFORMANCE
    Com uma equipe de dez pessoas, Stulen faz a curadoria dos vídeos e escolhe os 80 melhores. Na edição deste ano foram enviadas 10 mil "obras".
    Para Bia Granja, criadora do youPIX, festival brasileiro de cultura digital, gato também pode ser arte. "O Andy Warhol fazia colagens. Por que não uma colagem de vídeos da internet?"
    "A curadoria torna esses produtos uma performance artística", diz André Sturm, diretor do MIS (Museu da Imagem e do Som), que não gosta de gatos. "Tem exibição, plateia relevante e reação do público? Então é arte."
    Ricardo Resende, diretor do Centro Cultural São Paulo, concorda. "A arte está na ação, e não no objeto."
    Solange Farkas, fundadora do festival Sesc_Videobrasil, questiona: "Não dá para fingir que o universo virtual não existe, e ele muda de fato a forma de fruir arte, mas não acho que isso seja arte, a não ser que seja feito por artistas".
    FÊMEA EMBURRADA
    Visto mais de 13 milhões de vezes no YouTube desde setembro de 2012, o vídeo "The Original Grumpy Cat" (a gata rabugenta original) ganhou o "gatinho de ouro" no festival por votos do público.
    A fêmea emburrada estava no evento, acompanhada de seus humanos, ao lado de outras celebridades: Lil Bub, que virou documentário (leia abaixo), e Pudge, o gato bicolor.
    Gatos como esses são a ponta de uma indústria que movimenta anúncios, merchandising e agentes especializados: a Grumpy Cat, por exemplo, tem o mesmo empresário que o Keyboard Cat, o bicho que toca teclado em um vídeo visto 33 milhões de vezes.
    No Brasil, o atual sucesso é o site "Cansei de Ser Gato", que em quatro meses ganhou 128 mil fãs no Facebook. Diariamente, as criadoras do projeto fotografam o gato Chico com uma fantasia diferente.
    As donas de Chico, Stefany Guimarães, 24, e Amanda Nori, 25, largaram o emprego na publicidade para tocar o site.
    Por que gatos são tão populares? "É o jeito blasé e caricato", diz Stefany. Para Stulen, é porque eles não querem ser filmados, o "que torna tudo mais engraçado."
    *
    CELEBRIDADES DE QUATRO PATAS
    Quem são os gatos mais famosos da internet e os destaques do Internet Cat Video Festival
    'Grumpy Cat' Vencedor da última edição do evento, o vídeo da gata que faz cara de mal-humorada enquanto é acariciada foi visto 13 milhões de vezes
    'The Two Talking Cats' Duas gatas ronronam uma para a outra por um minuto e se lambem em vídeo acessado 54 milhões de vezes
    'Cat Licking Vacuum Cleaner' Em um dos destaques do festival, um bichano faz cara de muito sério enquanto lambe um aspirador
    'Jedi Kittens' Nessa montagem com som e efeitos especiais, dois felinos travam um duelo de sabres de luz no estilo da saga "Star Wars"
    'Nyan Cat' Três minutos de musiquinha repetitiva e visual de videogame antigo resumem o vídeo de gato mais assistido da web: 103 milhões de vezes

    OPINIÃO
    Vídeos são fofos e criativos, mas apelar aos bichos é rebaixar o nível
    FABIO CYPRIANOCRÍTICO DA FOLHASão todos muito fofos, são todos uma graça, mas os clipes com os gatinhos exibidos no Internet Cat Video Festival --o nome até que é bom-- são mais um exemplo de eventos popularescos, que mais confundem a já confusa compreensão do que pode ser visto como arte contemporânea.
    Como estratégia para buscar novos públicos ao museu, o formato até poderia ser valido: retirar da internet conteúdo que chama a atenção, levando uma atividade que costuma ser individual a tornar-se um evento coletivo.
    Os vídeos são criativos e engraçados, já alcançaram milhões de observadores, mas não estão nada longe de outro besteirol recente, a dancinha do "Harlem Shake".
    E aí reside a questão essencial: será que é preciso rebaixar tanto o nível?
    Há um desespero, comum a muitos museus em todo mundo, em alcançar maiores bilheterias, legitimando-se pela quantidade de visitantes e não pela qualidade do que é exposto. É nesse contexto que se pode olhar para eventos como o Internet Cat Video Festival.
    Estratégias assim simplistas são pura jogada de marketing. Com tantas obras em vídeo polêmicas, divertidas e até sensacionalistas, que poderiam ajudar a atrair público, apelar para os gatinhos é uma opção fácil demais.
      Documentário analisa fenômeno da gataria
      ALINE PELLEGRINIDE SÃO PAULOO documentário "A Gatinha Lil Bub e Seus Amiguinhos", que passa hoje em São Paulo, dá aos gatos da web o status dos Beatles e analisa o fenômeno.
      "Gatos são admirados porque servem de veículo para tudo, tanto como piada quanto como fonte de conforto", diz a documentarista americana Juliette Eisner, que dirige o longa com Andy Capper.
      "Vídeos de gatos são considerados arte", diz Eisner, a artista. Seu filme é protagonizado por Lil Bub, gata famosa pela eterna aparência de filhote, decorrente de mutação genética.
      Para Chris Swanson, distribuidor dos produtos de Bub e dono de gravadora, os vídeos são sucesso porque gatos "são mais acessíveis do que indie rock".
      No filme, Ben Lashes, empresário da gata Grumpy, que também participa do elenco, se empolga ao descrever um passeio com ela em Nova York e o assédio de fãs: "É como se John Lennon tivesse voltado à vida".