domingo, 17 de novembro de 2013

Marcelino Freire

folha de são paulo

50 letras, sem tirar nem pôr


 
MARCELINO FREIRE
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Dalton Trevisan não poderia faltar. Pus no juízo: vou atrás, insisto, me rastejo, ínfimo. Uma antologia de microcontos não ficaria completa sem ele. Mestre da concisão. Alto Dalton. Máximo, grande.
Mas ele vive recluso, não dá as caras. Eu não desisto.
O ano era de 2004. Muito antes do Twitter. Resolvi criar a antologia "Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século" (Ateliê Editorial). Uma referência à organizada pelo Italo Moriconi, "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século". Ao Italo, pedi a assinatura de um microprefácio. Que ele generosamente fez. Em 50 palavras.
Os contos, esses não, teriam de ter até 50 letras. Sem contar o título. Isso, inspirado que fui pelo microconto mais famoso do mundo, o do guatemalteco Augusto Monterroso. Uma história de 37 letrinhas, a saber: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá".
Toparam participar Sérgio Sant'Anna, Adriana Falcão, João Gilberto Noll, Manoel de Barros, Modesto Carone, Andréa Del Fuego, Glauco Mattoso...
Lygia Fagundes Telles escreveu um, genial, só em diálogos: "- Fui me confessar ao mar. / - E o que ele disse? / - Nada.".
Maravilha!
Mas faltava o Dalton.
Fabio Braga/Folhapress
Exemplar de "O Anão e a Ninfeta" autografado por Dalton Trevisan
Exemplar de "O Anão e a Ninfeta" autografado por Dalton Trevisan
Até o Millôr Fernandes topou -esse, antigo seguidor dos microformatos. Com Millôr foi relativamente fácil. Eu já tinha estado com ele no Rio para um papo raro. Cheio de humor e irreverência. Ligou-me para se certificar: "Até 50 letras, sem contar o título, é isto?". É isto, Millôr.
E não é que ele me mandou um conto em contadinhas 50 letras? No entanto, o título era imenso. "Fiz o que você me pediu, não fiz?"
Fez, sim, fez.
Mas repito: faltava a presença do Vampiro de Curitiba. Eu havia mandado uma carta para ele. Havia mais de um mês.
Esperei, esperei. Noventa e nove escritores já reunidos. O livro todo diagramado. Organizado por ordem alfabética. Na letra "D", antes de Daniel Galera, deixei o espaço vago.
Qualquer coisa, se o Dalton não me responder, eu invento um autor: Dalvan Trigueiro. Faço uma homenagem, sei lá, à revelia. E mando o livro para a gráfica, entristecido.
O tempo ficando miúdo. A esperança é a última que chega. Em cima da hora. Eis que recebo um envelope. E, dentro, o conto, também em diálogos: "- Lá no caixão... / - Sim, paizinho. / -... não deixe essa aí me beijar".
E eu quase morro.
Dalton Trevisan é desses escritores que me deixam sem fôlego. É ele em que me espelho quando coloco minhas neuroses na página. Gosto de suas obsessões. Inquietações. A cada livro seu, uma surpresa. Dalton escreve na velocidade da luz.
Não se engane. Ele não é só o "dono" de um estilo rápido. Vupt, vapt. Dalton escreve à velocidade da sombra. Vai sempre longe.
E foi assim.
A antologia finalmente saiu. Até hoje é referência para quem quer estudar as narrativas curtas. Foi trabalho, fiquei sabendo, inédito no mundo, à época: esse de reunir tantos autores, de uma vez só, escrevendo "enormemente menor".
A todos, até hoje agradeço. Sobretudo aos que já se foram: Moacyr Scliar, Manoel Carlos Karam, Alberto Guzik, Wilson Bueno. E idem ao sempiterno Millôr.
E essa antologia também me deu, ave, a amizade do Dalton. De quando em quando, assim, a gente se fala. Via correios.
O contato mais surpreendente foi pouco antes de ele ganhar o Prêmio Camões, em maio de 2012. Enviei a ele o meu livro de contos "Amar É Crime" (Edith).
Recebi, em troca, "O Anão e a Ninfeta", com a seguinte dedicatória: "Ao Marcelino Freire, com a muita admiração do seu leitor fiel".
E eu quase morro. De novo. Em saber que ele se diz o meu "leitor". Eu que aprendi a ler com ele. Nas entrelinhas. E continuo a apreender. E a me surpreender.
A dedicatória do Dalton, por exemplo, tem exatas 50 letras. Sem tirar nem pôr. Pode crer.
MARCELINO FREIRE, 46, lança o romance "Nossos Ossos" (ed. Record). É criador da Balada Literária, que acontece de quarta a domingo (www.baladaliteraria.com.br).

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