domingo, 29 de setembro de 2013

Mauricio Stycer

Um rosto comum
Estrelato tardio de Bryan Cranston, protagonista de 'Breaking Bad', pode servir de lição no Brasil
No site da revista "New Yorker" está disponível um vídeo de pouco mais de dois minutos, intitulado "A evolução de Bryan Cranston", com um resumo da carreira do ator. A primeira cena o mostra como garoto-propaganda de um remédio para hemorróidas, nos anos 80, e a última no papel de Walter White, o protagonista de "Breaking Bad".
Nos 25 anos que separam as duas imagens, Cranston fez de tudo um pouco, faturando algum dinheiro com publicidade, mas sem conseguir emplacar um único papel significativo, entre as dezenas que fez na televisão e no cinema.
Não fosse a fama atual, poucos lembrariam que viveu, em participações especiais, um conselheiro sentimental em "Matlock" (1991), um dentista que se converte ao judaísmo para contar piadas de judeu em "Seinfeld" (1997) ou um neurótico enrascado em "Arquivo X" (1998).
A primeira boa oportunidade só veio em 2000, quando interpretou o pai do protagonista na sitcom "Malcolm in the Middle". Foram seis temporadas, que renderam três indicações ao Emmy. Em 2007, finalmente, foi escalado para viver Walter White --"o papel que sem dúvida será a primeira linha do meu obituário", como diz à "New Yorker", no perfil de dez páginas que ganhou na edição de 16 de setembro.
Agora requisitado para o cinema (fez "Argo" e vai ganhar um bom dinheiro por sua participação no próximo "Godzilla"), Cranston está muito longe de ser um galã. Ao contrário, é um rosto comum.
Em um momento em que a legislação no Brasil estimula a produção de séries e programas de ficção para a TV paga, o estrelato tardio do protagonista de "Breaking Bad" é um caso interessante e mostra como é difícil encaixar o ator certo no papel justo para ele.
Para quem está escrevendo e dirigindo programas com produção independente, a escalação de elenco tem sido um tema complexo. Em primeiro lugar, existe uma restrição importante: atores vinculados à Globo por contrato não podem participar. Isso exclui do raio de ação não apenas os nomes mais famosos, mas também profissionais mal aproveitados pela emissora.
Essa dificuldade aparece em alguns bons projetos exibidos recentemente. Penso, por exemplo, em "O Negócio", que tem o selo de qualidade da HBO. A série, sobre o mundo da prostituição de luxo, tem ótima produção, bom roteiro, grandes personagens, e um elenco competente, mas sem brilho. O quadro é semelhante em "Beleza S/A", produção da O2, exibida pelo GNT, cuja história, ambientada em uma clínica estética, poderia ir mais longe com a ajuda de atores mais fortes.
Uma escalação que resultou perfeita foi a de Zé Carlos Machado para viver o protagonista da série "Sessão de Terapia", cuja segunda temporada começa no dia 7 de outubro, no GNT. Um "rosto comum", como Bryan Cranston, Machado tem sólida carreira no teatro, em São Paulo. Também fez alguns bons papéis no cinema, como em "Ação Entre Amigos", de Beto Brant, e "Casa de Alice", de Chico Teixeira.
O acerto da escalação de Machado mostra que é possível, ainda que possa parecer difícil, encontrar grandes atores para viver bons personagens na TV, ainda que não tenham feito nenhum papel relevante em novelas da Globo.

Marcelo Gleiser

A ciência, o bem e o mal
Cientistas podem ter liberdade total em suas atividades ou certos temas deveriam ser bloqueados?
Em 1818, com apenas 21 anos, Mary Shelley publicou o grande clássico da literatura gótica, "Frankenstein ou o Prometeu Moderno". O romance conta a história de um doutor genial e enlouquecido, que queria usar a ciência de ponta de sua época, a relação entre a eletricidade e a atividade muscular, para trazer mortos de volta à vida.
Duas décadas antes, Luigi Galvani havia demonstrado que a eletricidade produzia movimentos em músculos mortos, no caso em pernas de rãs. Se vida é movimento, e se eletricidade pode causá-lo, por que não juntar os dois e tentar a ressuscitação por meio da ciência e não da religião, transformando a implausibilidade do sobrenatural em um mero fato científico?
Todos sabem como termina a história, tragicamente. A "criatura" exige uma companheira de seu criador, espelhando Adão pedindo uma companheira a Deus. Horrorizado com sua própria criação, Victor Frankenstein recusou. Não queria iniciar uma raça de monstros, mais poderosos do que os humanos, que pudesse nos extinguir.
O romance examina a questão dos limites éticos da ciência: será que cientistas podem ter liberdade total em suas atividades? Ou será que existem certos temas que são tabu, que devem ser bloqueados, limitando as pesquisas dos cientistas? Em caso afirmativo, que limites são esses? Quem os determina?
Essas são questões centrais da relação entre a ética e a ciência. Existem inúmeras complicações: como definir quais assuntos não devem ser alvo de pesquisa? Dou um exemplo: será que devemos tratar a velhice como doença? Se sim, e se conseguíssemos uma "cura" ou, ao menos, um prolongamento substancial da longevidade, quem teria direito a tal? Se a "cura" fosse cara, apenas uma pequena fração da sociedade teria acesso a ela. Nesse caso, criaríamos uma divisão artificial, na qual os que pudessem viveriam mais. E como lidar com a perda? Se uns vivem mais que outros, os que vivem mais veriam seus amigos e familiares perecerem. Será que isso é uma melhoria na qualidade de vida? Talvez, mas só se fosse igualmente distribuída pela população, e não apenas a parte dela.
Outro exemplo é a clonagem humana. Qual o propósito de tal feito? Se um casal não pode ter filhos, existem outros métodos bem mais razoáveis. Por outro lado, a clonagem pode estar relacionada com a questão da longevidade e, em princípio ao menos, até da imortalidade. Imagine que nosso corpo e nossa memória possam ser reproduzidos indefinidamente; com isso, poderíamos viver por um tempo indefinido. No momento, não sabemos se isso é possível, pois não temos ideia de como armazenar memórias e passá-las adiante. Mas a ciência cria caminhos inesperados, e dizer "nunca" é arriscado.
Toquei apenas em dois exemplos, mas o ponto é óbvio: existem áreas de atuação científica que estão diretamente relacionadas com escolhas éticas. O impulso inicial da maioria das pessoas é apoiar algum tipo de censura ou restrição, achando que esse tipo de ciência é feito a caixa de Pandora.
Mas essa atitude é ingênua. Não é a ciência que cria o bem ou o mal. A ciência cria conhecimento. Quem cria o bem ou o mal somos nós, a partir das escolhas que fazemos.

Fazer graça com a fé - Suzana Singer - Ombudsman

Pouco profissional
Caderno especial "Guia das Profissões" chega tarde e adota critérios obscuros na indicação das faculdades
Atrair para o jornal os jovens criados com um olho no computador e um celular na orelha é missão ingrata, quase impossível. Uma das poucas janelas de oportunidade é a fase do vestibular, quando eles são obrigados, por causa dos exames, a se interessar pelo noticiário.
O caderno "Guia das Profissões" desperdiçou uma dessas janelas. Feito para ajudar o jovem a escolher uma carreira, o suplemento chegou atrasado, com textos óbvios e critérios obscuros.
Entregue na quinta-feira passada, ele já não servia a boa parte dos vestibulandos, porque as inscrições para algumas das mais importantes universidades, como a USP, a Unicamp e o ITA, estavam encerradas. "O caderno tem que sair em junho ou logo depois das férias, em agosto", aconselha Vera Lúcia da Costa Antunes, 65, coordenadora pedagógica do Objetivo.
A Redação defende a data e diz que o público-alvo são "todos os alunos do ensino médio".
O Guia abordou dez profissões, pinçadas entre as mais bem colocadas em uma pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que levou em conta salário, carga de trabalho, taxa de ocupação e cobertura previdenciária.
Os textos eram quase infantis: "Dedicação é a palavra-chave para aqueles que optam pelo curso de medicina", "O dentista com seu motorzinho pode ser um pesadelo para muita gente, mas ele é um profissional fundamental", "Não tem outro jeito: para fazer graduação em estatística, tem que gostar de lidar com números". O de engenharia daria inveja ao Primo Carbonari: "O avanço brasileiro na área de infraestrutura nos últimos anos não esgotou as frentes de atuação para o seu grande projetista e construtor: o engenheiro civil".
Subestimaram a inteligência dos jovens leitores, mas isso não foi o mais grave. Para cada profissão, havia um quadro "onde estudar", com indicação de algumas instituições. Em direito, estavam PUC-SP, FGV e Mackenzie. Nada da USP.
Apesar de o Estado de São Paulo ter 49 cursos de odontologia, só três foram citados (Unesp, São Leopoldo Mandic e Unip). Em medicina, aparece a Uninove, mas não duas concorrentes (Unicid e Anhembi Morumbi). "A impressão que fica é que colocaram USP, Unicamp e completaram com as que pagaram por anúncios", alerta Alberto Francisco do Nascimento, 73, coordenador de vestibulares do Anglo.
Segundo a Redação, a ideia era citar as instituições mais bem colocadas no ranking universitário feito pela própria Folha, o RUF. "Em alguns casos, evitamos repetir USP e Unicamp, que estavam com inscrições encerradas. Em outros, houve erro na consulta ao RUF", explica a editoria de "Cotidiano".
No final, dos dez textos publicados, nenhum seguiu, nas indicações de faculdades, o critério do RUF.
O "Guia das Profissões" é um daqueles suplementos que são especialmente atraentes para os anunciantes --no caso, as faculdades particulares que ainda estão com inscrições abertas.
No processo de produção, o departamento comercial não intervém na parte editorial e a Redação não sabe quais propagandas vão entrar. A separação de áreas impede favorecimento aos anunciantes.
Para não dar a impressão de que o editorial está a soldo do comercial, a Redação precisa adotar critérios claros de seleção das empresas citadas nos cadernos especiais.
Como diz aquele ditado, não basta ser honesto, é preciso parecer honesto.
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FAZER GRAÇA COM A FÉ
A discussão começou no programa "Na Moral" (TV Globo), quando Renato Aragão criticou quem faz humor com religião. Gregorio Duvivier, do Porta dos Fundos, discordou, mas não se explicou.
Na segunda-feira passada, Duvivier respondeu com a sua coluna na "Ilustrada". Em "A religião dos outros", ele fazia graça com umbanda, islamismo, espiritismo...
As brincadeiras eram pesadas --"macumba é magia negra", "monges [budistas] são muito gordos pra quem é vegetariano", "mulheres de burca parecem um apicultor", "foram eles [os judeus] que mataram Jesus"--, mas eram uma ironia com o preconceito religioso.
Muita gente não digeriu bem o texto. "A Folha deveria impedir essa pessoa de sujar suas páginas outra vez", recomendou um leitor.
A indignação é compreensível, mas a coluna, obviamente de humor, elencava estereótipos para mostrar que se aceita piada sobre a religião dos outros, mas, quando é com a nossa, subitamente tudo perde a graça.

Colar papel de parede é teste final do amor de verdade - Antonio Prata

Me dê motivos
Quando um casal começa a colar papel de parede, o Diabo senta em sua poltrona para assistir
Se você está bem com seu namorado, namorada, marido ou esposa, se acha que encontrou sua cara-metade e que nada pode abalar vossa paz, sugiro um teste: experimentem, juntos, forrar um quarto com papel de parede. Caso, meia hora após o início das hostilidades, digo, das atividades, ainda houver um vínculo afetivo entre os dois, pode crer: é amor de verdade, desses capazes de perdurar na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, de sobreviver a shoppings em véspera de Natal e até --Deus lhes poupe-- ao nascimento de trigêmeos.
Colar papel de parede, em casal, lembra muito estar perdido de carro, em casal: acusações mútuas, soluções antagônicas, ansiedade, desespero. A diferença é que, ao se perder de carro, você fareja o perigo, respira fundo e procura mentalmente as barras antipânico que os levarão para longe da escaldante tensão conjugal. Ao papel de parede, contudo, os amantes se entregam álacres, ternos e tenros como as criancinhas ao mar no filme "Tubarão". Afinal, trata-se de uma melhoria para a casa, um gesto em nome da beleza, um desses bucólicos projetos dominicais que parecem trazer consigo a confirmação de nossa felicidade, tipo fazer pão, tomar banho de banheira, ir à Pinacoteca. Como desconfiar que a meiga estampa colorida é o forro da tumba em que será sepultado o casamento?
Você se lembra da época não tão remota em que colávamos adesivos no carro durante as eleições? Então deve se recordar que, por mais cuidado que tomássemos, sempre ficava uma ou outra bolha de ar. Agora, imagine 18 rolos adesivos de 1,20 m x 2 m sendo aplicados a quatro mãos --é esse o tamanho da encrenca.
Subindo em duas cadeiras, você e sua cara-metade colam a pontinha do primeiro rolo, lá no alto. O desafio é os dois irem puxando o papel vegetal por trás, desenrolando e colando o troço de cima pra baixo, SIMULTANEAMENTE. Um milímetro que um lado (i.e., um cônjuge) vá mais rápido que o outro, o papel engrouvinha --e, acredite, a não ser que vocês tenham feito anos de nado sincronizado ou sido discípulos do sr. Miyagi, vai engrouvinhar.
Adiantando o lado retardatário, vocês tentam reparar o erro, mas só piora: estrias diagonais surgem de ponta a ponta. Aí, começam as acusações. Um diz que o outro foi lerdo, o outro diz que o um é que se apressou. (Toda essa discussão, lembre-se, está sendo travada em cima de cadeiras e com as mãos para cima, encostadas na parede.) O mais afoito dos dois (aquele acusado de acelerar) sugere descolarem a parte que engrouvinhou e colar de novo. O mais cauteloso (o acusado de atrasar) discorda. O afoito, contudo, não quer nem saber e puxa o papel: as bolhas e estrias somem, assim como uma faixa de 1,20 m x 10 cm de tinta e massa corrida, arrancada pelo adesivo.
O afoito tenta colar de novo, mas o volume das cascas de tinta e massa corrida fica evidente --parece um tapete estendido sobre a areia da praia. Vocês olham a parede. Só 30 cm do primeiro rolo foi aplicado. Ainda faltam 35,7 m. Vocês se olham. Estão juntos há seis anos. Pensavam em ter filhos, em fazer pão em casa aos domingos, tomar banhos de banheira, visitar a Pinacoteca e quem sabe até, um dia, forrar aquele quarto com um belo papel de parede.

Janio de Freitas

Pressões e exceções
A objetividade possível do noticiário, que trouxe maior respeito ao leitor, sofre com a infiltração das opiniões
O desabafo do ministro Celso de Mello, acusando "inaceitáveis pressões" dos meios de comunicação sobre ele, e a reação da Folha, que se sentiu injustiçada na generalização, tocam em dois problemas importantes nas relações entre o jornalismo e os leitores/ouvintes. Um, problema atual. O outro, permanente.
A dura reação da Folha (27.set), que em editorial apoiou a decisão do ministro por um recurso para determinados réus do mensalão, não é incompatível com a verdade subjacente nas duras palavras do ministro. É fácil comprová-la a cada dia, para quem lê mais de um jornal, ou ouve rádio e TV.
O jornalismo brasileiro atual volta a uma prática, em graus diferenciados segundo as numerosas publicações, que exigiu muito esforço em meados da minha geração profissional para reduzi-la até o limite do invencível. A opinião está deixando de restringir-se aos editoriais e aos comentaristas autorizados a opinar, sejam profissionais ou colaboradores. A objetividade possível do noticiário, que, entre outros efeitos, trouxe aos meios de comunicação maior respeito ao leitor/ouvinte e maior fidelidade aos fatos, sofre crescente infiltração de meras opiniões. Muitos títulos são como editoriais sintetizados, parecem mesmo, por sua constância, contarem com o amparo ou indiferença das orientações de edição.
Nesse sentido, ainda se não houvesse comentários com cobranças, explícitas ou transversais, a Celso de Mello em seu voto decisivo, o fundo de mensagem imposto ao leitor/ouvinte, na quase totalidade dos meios de comunicação mais relevantes, de fato foi na linha da percepção do ministro. E ficou ainda mais perceptível com essa peculiaridade brasileira que são as cadeias multimídias, em que as mesmas pessoas dizem e escrevem as mesmas coisas várias vezes por dia, em jornal, em diversos horários de rádio, idem em televisão. Lembra o princípio da lavagem cerebral. E, de quebra, há os respectivos blogs.
Mesmo que em algumas ocasiões permitisse impressão contrária, a Folha distinguiu-se do panorama dos meios de comunicação. Além de preservar sua posição contrária a prisões de condenados que não representem perigo para a sociedade, concordou com a validade dos embargos infringentes defendidos por Celso de Mello, no desempate entre os ministros do Supremo. Mas reagiu, no tom em que costumam ser suas reações, ao que considerou como falta de necessária ressalva, por sua atitude, na generalização do desabafo de Celso de Mello.
Generalizações são um problema antigo, presente e suponho que futuro no jornalismo. Posso dizer que a mim incomodam muito, quando não há, ou não sei, como evitar mais uma. E muitas são inevitáveis mesmo. Todos os meios de comunicação usam expressões como "o repúdio dos manifestantes aos políticos", "a Justiça distingue ricos e pobres", e inumeráveis outras, nas quais é claro que não se incluem todos os políticos, nem significam que todos os juízes julgam diferentemente, e por aí em diante. Mas assim são e continuarão as generalizações neste e nos demais meios de comunicação, daqui e de toda parte.
Certas generalizações já pressupõem as exceções. Ainda bem. Mas não deixam de ser um problema no jornalismo --para quem pensa nos problemas-- porque não deixam de conter e transmitir alguma injustiça.

    Ferreira Gullar

    folha de são paulo
    Punir é crime?
    Para nossos juízes, punir é coisa retrógrada, resquício de um tempo que a modernidade superou
    Evitei me manifestar de imediato sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a pertinência dos embargos infringentes.
    Evitei, primeiramente, porque, naquele momento, todo mundo tratou de dar sua opinião, fosse contra ou a favor daquela decisão. Como não sou jurista nem pretendo ser mais lúcido que os demais, preferi ler as entrevistas e artigos então publicados, para melhor avaliar não só o acerto da decisão adotada pelo STF, como as possíveis consequências que ela inevitavelmente provocaria no juízo da opinião pública em face de tão importante julgamento.
    Passada a onda, a sensação que me ficou foi a mesma que, de maneira geral, a nossa Justiça provoca nos cidadãos: a de que este é o país da impunidade. Trata-se de uma sensação hoje tão disseminada na opinião pública que se tornou lugar-comum. Apesar disso, diante desse novo fato que chocou a nação, me pergunto: de onde vem isso? O que conduz a Justiça brasileira a inviabilizar as punições?
    Não pretendo ter a última palavra nessa questão, mas a impressão que tenho é de que, para nossos juízes, punir é coisa retrógrada, resquício de um tempo que a modernidade superou. Em suma, punir é atraso --e o Brasil, como se sabe, é um país avançado, moderninho.
    Não foi por outro motivo, creio, que certa vez um advogado me disse o seguinte: quando a sociedade condena alguém, quase sempre quer se vingar dele. Essa visão aqui evocada levou um célebre advogado, dos mais prestigiados do país, a propor o fim das prisões.
    Pensei que ele estivesse maluco mas, ao falar do assunto com um outro causídico, ouvi dele, para minha surpresa, que aquela era uma questão a ser considerada seriamente. Só falta meter na cadeia os homens de bem e entregar a chave a Fernandinho Beira-Mar.
    Seja como for, a verdade é que há alguma coisa errada conosco. Punir não é vingança, mas a medida necessária para fazer valer as normas sociais. Comparei, certa vez, o ato de punir às decisões tomadas por um juiz de futebol. O jogo de futebol, como todo jogo, só existe se se obedecem as normas que o regem: gol com a mão não vale, chutar o adversário é falta e falta na área é pênalti. Se o juiz ignora essas regras e não pune quem as transgride, torna a partida inviável e será certamente vaiado pela torcida adversária. Pois bem, o convívio social, como o jogo de futebol, exige a obediência às regras da sociedade.
    Quem rouba, mata ou trafica, por exemplo, está fora das regras, isto é, fora da lei --e por isso tem que ser punido. Punir é condição essencial para tornar viável a vida em sociedade. Se quem viola as normas sociais não é punido, os demais se sentem à vontade para também violar aquelas normas.
    É o que, até certo ponto, já está acontecendo no Brasil, particularmente nos diferentes setores da máquina pública, tanto no plano federal, como estadual e municipal. E aí há os que praticam peculato como os que entopem os diferentes setores do governo com a nomeação de parentes e aderentes, sem falar no dinheiro que desviam para financiar o partido e, consequentemente, sua futura campanha eleitoral.
    Às vezes os escândalos vêm à tona, a imprensa denuncia as falcatruas, processos são abertos, mas só para constar, porque não dão em nada, já que, neste país avançado, punir é atraso.
    Mas um ânimo novo ganhamos todos com o julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal. Durante meses, todos assistimos pela televisão à exposição dos crimes praticados contra a democracia brasileira e, finalmente, à condenação dos réus. Enfim, ia se fazer justiça.
    Mera ilusão. Logo em seguida, passou-se a falar nos embargos declaratórios e nos embargos infringentes. Veja bem, durante a vida inteira ouvi dizer que das decisões do Supremo não cabem recursos.
    Ainda bem, pensava eu, pelo menos há um momento em que a condenação é irreversível. Sucede, porém, que com a validação dos embargos infringentes, isso acabou. Nem mesmo as decisões da Suprema Corte, agora, são para valer. Os beneficiados com os tais embargos, que no dia daquela decisão eram 12, já se anuncia que serão 84. Isso, por enquanto.

    Maria Rita Kehl e Davi Kopenawa: Não quero mais morrer outra vez


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    Tendências / DebatesEm agosto deste ano, visitei pela Comissão da Verdade uma aldeia ianomâmi, para investigar as violações sofridas pelos indígenas durante a abertura da estrada Perimetral Norte, a partir de 1974.
    Ao final do testemunho de quatro anciãos, Davi Kopenawa, um dos mais influentes pajés da aldeia, concedeu o depoimento que se segue.
    Os ianomâmis e irmãos indígenas irão a Brasília no dia 2 para protestar contra a proposta de emenda constitucional 215, que retira do Executivo o poder de demarcar terras indígenas, em favor dos congressistas.
    "Eu não sabia que existia governo. Veio chegando de longe até nossa terra: são pensamentos diferentes de nós. Pensamentos de tirar mercadoria da terra: ouro, diamantes, cassiterita, madeira, pedras preciosas. Matam árvores, destroem a terra mãe, como o povo indígena fala. Ela é que cuida de nós. Ela nasceu, a natureza grande, para a gente usar.
    Eu não sabia que o governo ia fazer estradas aqui. Autoridade não avisou antes de destruir nosso meio ambiente, antes de matar nosso povo. Não só os ianomâmi: o povo do Brasil. A estrada é um caminho de invasores, de garimpo, de agricultores, de pescadores. Tiram 'biopirataria' sem avisar nós. Estradas que o governo construiu começaram lá em Belém, depois Amapá, Manaus, Boa Vista. Mataram nossos parentes waimiri-atroari. É trabalho ilegal. O branco usa palavra ilegal.
    A Funai, que era pra nos proteger, não nos ajudou nem avisou dos perigos. Hoje estamos reclamando. Só agora está acontecendo, em 2013, que vocês vieram aqui pedir pra gente contar a história. Quero dizer: eu não quero mais morrer outra vez.
    O governo local e nacional, deputados, senadores, governadores, todos têm que pensar como o governo vai nos proteger e não deixar mais destruir matas e rios e fazer sofrer os ianomâmis e outros parentes, junto com a floresta. O ambiente sofre também, junto com o índio.
    Minha ideia: eu ando no meu país, o Brasil. Sou filho da Amazônia brasileira, conto para quem não sabe o sofrimento do meu povo. Não queremos que a autoridade deixe estragar outra vez. Se o governo quer fazer estrada na terra ianomâmi, tem que entrar e conversar com nós, junto com o Ibama. O governo Dilma está aprontando para estragar outra vez. Nosso povo não quer.
    A autoridade tem que respeitar a Constituinte que o governo passado criou. O que fala a OIT, no papel, não pode mudar, não. Tem que ser respeitado.
    Querem mudar o artigo 231. O projeto [de lei complementar] 227 vai permitir matar nós, não vai mais deixar demarcar terras de nossos parentes. O governo tem que completar o trabalho e demarcar as terras dos povos que ainda estão lutando. Demarcar as terras de quem ainda falta demarcar.
    Martin Kovensky
    Hoje em dia, nós, lideranças, sabemos reclamar! Também precisa falar com outros governos do mundo que mandam estrangeiros virem destruir a natureza de nosso país. Não queremos aprovação de projetos de mineração no Congresso. Vamos passar fome quando não tiver mais árvores, peixes, água limpa. Belo Monte é morte, não é uma palavra bonita. Vai matar árvores, rios, índios, vida da terra.
    Os brancos pensam que a floresta foi posta em cima do chão sem nenhum motivo. Pensam que a floresta é uma coisa morta. Isso não é verdade. Ela só fica lá, quieta no chão, porque os espíritos dos xapiripe tomam conta dos seres maléficos e seguram a raiva dos seres da tempestade. Sem a floresta, não teria água na terra. As árvores da floresta são boas porque estão vivas, só morrem quando são cortadas. Mas daí elas nascem de novo. É assim. Nossa floresta é viva, e se os brancos acabarem com nosso povo e com as matas, eles não vão saber orar em nosso lugar, vão ficar pobres e acabar sofrendo de fome e sede.
    Queremos que nossos filhos e netos possam crescer achando nela seus alimentos. Nossos antepassados foram cuidadosos com ela, por isso está até hoje com boa saúde. Foi o governo que tirou nossa floresta, nossos rios e a vida dos irmãos. Tem que pagar indenização. Porque nossa vida vale mais do que ouro."
    MARIA RITA KEHL, 61, psicanalista, é integrante da Comissão Nacional da Verdade
    DAVI KOPENAWA, 57, é pajé da aldeia ianomâmi Watoriki. Recebeu o prêmio Global 500 da ONU
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