domingo, 1 de dezembro de 2013

Cristina Grillo

folha de são paulo
Padrão Brasil
RIO DE JANEIRO - O novíssimo estádio do Maracanã, aquele no qual se gastou quase R$ 1,2 bilhão em uma reforma e onde daqui a oito meses acontecerá a final da Copa do Mundo, não passou em seu primeiro teste de verdade.
Aqueles que chegaram quarta-feira ao estádio pouco antes do jogo entre Flamengo e Atlético Paranaense, final da Copa do Brasil, puderam ver o bom e velho Maracanã em todo o seu esplendor.
Houve empurra-empurra quando as novas catracas eletrônicas pararam de funcionar, barrando a entrada dos torcedores que ti- nham pago de R$ 250 a R$ 800 por seus ingressos.
Em determinado momento, os portões foram abertos para evitar que pessoas fossem espremidas contra as grades. Muita gente sem ingresso entrou. E muitos com ingresso ficaram do lado de fora.
Em nota, a concessionária que administra o Maracanã negou o problema com as catracas, testemunhado pela Folha, e atribuiu o tumulto a torcedores sem ingressos que tentavam invadir o estádio.
Alguns deles conseguiram entrar, de acordo com o relato da concessionária, depois de ultrapassar a barreira de policiais militares, escalar as catracas, que têm 2,2 m de altura, e passar pelo vão de 50 centímetros entre elas e o teto de concreto. Com tanta capacidade atlética, deveriam ser convocados e treinados para a Olimpíada de 2016.
Lá dentro, gente de pé nos corredores --parece que aquela história de que, depois da reforma, os lugares seriam marcados era só brincadeirinha-- e banheiros imundos, segundo o relato de amigos.
Para os saudosistas, queixosos de que a reforma "padrão Fifa" roubou a alma do Maracanã, os fatos de quarta-feira podem ser um alento. Ali, ao menos naquele dia, vigorou um "padrão Brasil" de final de campeonato.

    Claudia Collucci

    folha de são paulo
    Transexualismo deve sair da lista de doenças mentais
    Rol de transtornos da Organização Mundial da Saúde será atualizado em 2015
    Mudança é vista como conquista mas também com receio de que isso leve a dificuldades de acesso a tratamentos
    CLÁUDIA COLLUCCIDE SÃO PAULOA advogada e empresária Márcia Rocha, 47, é travesti. Usa próteses de silicone, tem pênis e se autodefine como bissexual. Foi casada duas vezes com mulheres e tem uma filha de 18 anos.
    O webdesigner Leonardo Tenorio, 23, nasceu mulher, mas desde a adolescência se sente homem. Com o uso de hormônio masculino, ganhou barba e esconde os seios sob uma faixa apertada. Agora, ele briga com o plano de saúde pelo direito de fazer uma mastectomia.
    Ambos estão prestes a obter uma conquista histórica: deixar de serem classificados como doentes mentais. Hoje, o manual que orienta os psiquiatras considera transexualismo (que passou a se chamar incongruência de gênero) um transtorno.
    Mas a nova versão da lista de doenças que orienta a saúde em todo o mundo, a CID-11 (Classificação Internacional de Doenças), editada pela Organização Mundial da Saúde, deverá eliminar isso.
    Vários comportamentos tidos hoje como transtornos, como o sadomasoquismo e o travestismo fetichista, serão varridos da CID. Outros, como o transexualismo, vão mudar de categoria.
    Os trans, por exemplo, vão ganhar um novo capítulo, longe das doenças, que deve reunir outras "condições relativas à sexualidade", ainda a serem definidas.
    A ordem é "despatologizar" o sexo. "Comportamentos sexuais que são inteiramente privados ou consensuais e que não resultem em danos às outras pessoas não devem ser considerados uma condição de saúde. Não há razão para isso", disse à Folha Geoffrey Reed, diretor de saúde mental da OMS.
    Reed esteve em São Paulo em encontro para discutir pesquisas e análises que serão feitas no país sobre as novas propostas. No Brasil, a coordenação dos trabalhos é da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
    Segundo Reed, a ideia é reduzir preconceitos e facilitar o acesso a terapias a quem realmente precisa delas.
    "Por que nós, trans, precisamos de um diagnóstico? Por que precisa de um médico para dizer que a pessoa é o que ela é? Nosso direito de autonomia é totalmente ceifado com essa atual patologização", diz Tenorio, presidente da Associação Brasileira de Homens Trans.
    POLÊMICA
    A questão, porém, é complexa. Existe o temor que ao, perder a classificação de doença, esses comportamentos deixem de ser cobertos pelos sistemas de saúde. No Brasil, por exemplo, os transgêneros têm direito a cirurgias de mudança de sexo e outras terapias no SUS.
    "Estamos analisando o impacto nas leis da mudança de diagnóstico como um todo para evitar qualquer eventual prejuízo ao acesso aos serviços de saúde", afirma a psiquiatra Denise Vieira, uma das coordenadoras brasileiras da revisão da CID na área de saúde sexual.
    Para a cirurgia de troca de sexo no SUS, por exemplo, a pessoa precisa ser avaliada, dois anos antes, por uma equipe de psiquiatra, cirurgião, psicólogo, endocrinologista e assistente social.
    Segundo os médicos, o cuidado é porque, se feita em pacientes sem o diagnóstico de transexualismo, pode resultar em distúrbios psíquicos graves e até levar ao suicídio.
    Mas a burocracia só ocorre no SUS, segundo a advogada Márcia Rocha, que estampa em seu registro profissional o nome de Marcos Fazzini da Rocha.
    "Quem tem dinheiro consegue colocar ou tirar o que quiser", afirma ela, integrante da comissão de direitos da diversidade sexual e combate à homofobia da OAB/SP, citando os próprios seios.
    CRIANÇA TRANS
    Outra polêmica em curso é o diagnóstico da criança trans. Há grupos que defendem que elas não sejam rotuladas como tal na infância porque estudos mostram que, no futuro, muitas tendem a ser gays ou lésbicas, e não transexuais.
    Para o psiquiatra Jair de Jesus Mari, professor titular da Unifesp, ainda há várias questões no campo da sexualidade que devem ser levantadas até a conclusão da revisão da CID-11, prevista para ser publicada em 2015.
    "Não há um conceito biológico claro do que são transtornos mentais ou de sexualidade. Não vamos dar conta de toda a complexidade do comportamento humano."

      Exposição sexual na rede se alastra e causa vítimas

      folha de são paulo
      Casos de 'revenge porn' acabam em linchamento moral de mulheres no país
      Polícia investiga vazamento de imagens de duas adolescentes brasileiras, de 16 e 17 anos, que se suicidaram
      CIDA ALVESDE SÃO PAULOO "revenge porn" --vingança pornô, em inglês--, prática até então conhecida dos brasileiros por notícias de países como Estados Unidos, chegou de vez ao Brasil.
      E já pode ter feito vítimas.
      Vídeos e fotos sensuais gravados na intimidade do casal são compartilhados na internet para causar humilhação pública a uma das partes. Assim, as vítimas são expostas ao linchamento moral dentro e fora das redes, e os agressores ficam preservados pelo anonimato virtual.
      Pesquisa ainda inédita da ONG Safernet, realizada com quase 3.000 pessoas de 9 a 23 anos, mostra que 20% já receberam textos ou imagens eróticas de amigos e conhecidos e 6% já repassaram esse tipo de conteúdo --a maioria o fez mais de cinco vezes.
      Uma vez que ocorre o vazamento desse conteúdo, é quase impossível parar sua propagação, diz o presidente da Safernet Brasil, Thiago Tavares.
      "Quando cai na rede é impossível controlar. Há sites que são especializados em divulgar esse tipo de conteúdo. Em minutos, milhares de pessoas têm acesso, salvam e compartilham", explica.
      O "revenge porn" é um desdobramento de uma prática muito comum entre adolescentes e que também tem origem nos Estados Unidos --o "sexting". A troca de conteúdo erótico por celular ou na internet tem como principais vítimas mulheres jovens.
      VÍTIMAS
      A polícia ainda investiga quem vazou as imagens de duas meninas que se suicidaram recentemente após serem expostas na internet.
      Giana Fabi, 16, de Veranópolis (RS), teve uma foto sua seminua, tirada por um amigo, compartilhada nas redes sociais. Júlia dos Santos,17, de Parnaíba (PI), apareceu em um vídeo de sexo com outro casal que foi compartilhado pelo aplicativo Whatsapp.
      Não demorou para o conteúdo estar em sites especializados em divulgar vídeos íntimos que caíram na rede.
      Um deles, brasileiro, anunciava o vídeo de Júlia no Twitter até o dia 14 de novembro. Após as notícias do suicídio da garota, foi retirado.
      Mas já era tarde. A gravação ainda é encontrada na maior plataforma de vídeos eróticos caseiros do mundo, que figura entre os 20 sites mais acessados do país. Assim, o "revenge porn" acaba contribuindo para outro crime: a pornografia infantil.
      Na 4ª Delegacia de Repressão à Pedofilia de São Paulo, um em cada sete casos investigados envolvem a divulgação de fotos e vídeos de adolescentes nas redes sociais.
        Júlia, 17, e Giana, 16, tiveram imagens íntimas divulgadas
        As adolescentes, do Piauí e do Rio Grande do Sul, foram encontradas enforcadas dentro de suas casas neste mês
        Outra vítima, de Goiânia, conta que parou de trabalhar e estudar enquanto tenta tirar o vídeo da rede
        JULIANA COISSIDE SÃO PAULOJúlia, 17, era fã de rap e da cantora Miley Cyrus, frequentava o colégio e um curso técnico de enfermagem. Giana, 16, gostava de salto alto e cursava o ensino médio e um curso de secretariado.
        Júlia Rebeca dos Santos, de Parnaíba (PI), e Giana Laura Fabi, de Veranópolis (RS), tinham algo em comum: viviam conectadas à internet.
        Elas tiveram a intimidade devassada com a divulgação de fotos e vídeos íntimos. E, com uma diferença de quatro dias, foram achadas enforcadas em casa; Júlia, no dia 10, e Giana, no dia 14. As suspeitas são de suicídio.
        A polícia e familiares questionam: por que alguém espalhou essas imagens?
        O delegado Marcelo Ferrugem disse que um adolescente foi interrogado e admitiu o envio a quatro amigos de uma foto de Giana com os seios à mostra. A imagem foi gravada por ele em uma conversa com a garota pelo programa Skype, há seis meses.
        À polícia, ele nega ter vivido um relacionamento amoroso com Giana.
        No caso de Júlia, a Polícia Civil do Piauí analisa quem espalhou um vídeo no qual ela aparece mantendo relações sexuais com uma garota e um jovem, todos menores de idade.
        Segundo o delegado James Guerra Júnior, as imagens, a princípio, dão a entender que a própria Júlia filmou a cena.
        Os celulares dos três passam por perícia para checar se foi a partir de um deles que o vídeo foi compartilhado.
        CHOQUE
        Para as famílias, os últimos dias foram de assédio da mídia, comentários póstumos bons e ruins na internet, mas principalmente de choque.
        "Por que acabar assim com a própria vida? Por uma coisa tão pequena?", repete várias vezes à Folha o pai de Giana, o motorista Marcos Gilmar Fabi, 48. Ele não poupa elogios à filha caçula: uma menina simpática, "que não fazia distinção de ninguém".
        Daniel Aranha, 28, primo de Júlia, a descreve como uma menina "cercada do amor da família, que gostava de cantar alto músicas no meu carro".
        Mais velha de três filhos, a garota de Parnaíba costumava ir com a tia a uma igreja evangélica aos domingos.
        A família tenta se refazer do impacto da morte. "Ainda não caiu a ficha, sabe? Parece que daqui a pouco vamos buscá-la na escola ou ela vai chegar", afirma o primo.
        Ana Luiza Mano, do Núcleo de Pesquisa da Psicologia em Informática, explica que as vítimas se deixam filmar por acharem que estão num contexto de confiança e que aquele momento ficará só entre os envolvidos.
        Quando a confiança é quebrada, têm de enfrentar a pressão social.
        Foi o caso da estudante Fran Santos, 19, de Goiânia, que tenta reconstruir sua vida desde que foi exposta na internet, em outubro.
        "Parei de trabalhar e estudar. Na rua as pessoas ficam olhando e comentando. Já até tentaram tirar foto minha no ônibus", conta Fran, que teve um vídeo de sexo divulgado na internet por um rapaz com quem se relacionou.
        A jovem tenta retirar o conteúdo da rede --sem muita esperança de que vá conseguir. "Infelizmente está cada dia mais comum. Não fui a primeira e não serei a última".

          Clube da bolinha - Cida Alves

          folha de são paulo
          Clube da bolinha
          Serviço Lulu, que permite que as mulheres avaliem os homens e permaneçam anônimas, foi um dos assuntos mais comentados nas redes sociais
          O serviço Lulu, em que mulheres avaliam homens anonimamente, passou os últimos dias entre os aplicativos mais baixados e os assuntos mais comentados nas redes sociais.
          Segundo a empresa responsável, a Luluvise, fundada em Londres e em processo de mudança para Nova York, o app já registrou mais de 5 milhões de visitas, 100 milhões de perfis visualizados e 1 milhão de avaliações.
          O Brasil foi o primeiro país a receber uma versão local. Em passagem por São Paulo, a executiva-chefe da companhia e criadora do Lulu, a jamaicana Alexandra Chong, 32, disse que permitir às mulheres se vingarem de seus ex-namorados não é o objetivo principal do app.
          "Nós desenhamos o produto para que ele seja uma experiência muito mais positiva do que negativa. O Lulu é um lugar seguro para que as mulheres compartilhem informações e usem-nas para tomar decisões melhores. Nós amamos os homens."
          As avaliações são feitas por meio de um questionário e pela adição de características positivas ou negativas predefinidas em forma de hashtags, como #RespeitaAsMulheres e #ApaixonadoPelaEx.
          Uma delas, que fazia referência a pênis pequeno, #NãoFazNemCócegas, foi retirada pela empresa após reclamações.
          "O Lulu não foi feito para ferir os sentimentos de ninguém. Contratamos revisores locais para a tradução, mas essa hashtag escapou", afirma Alexandra.
          A expressão que representa a condição oposta (#TrêsPernas), porém, segue no ar.
          AMEAÇAS DE PROCESSO
          O sucesso do Lulu motivou ameaças de processo, como a do estudante de direito Felippo de Almeida Scolari, 28. "Meu perfil tinha informações sobre a minha intimidade disponíveis para qualquer um. Não gostei porque eu não autorizei que minha conta do Facebook estivesse ali", diz.
          Alexandra afirma que a empresa ainda não recebeu nenhuma notificação oficial.
          "O Lulu é provocativo, diferente, nunca foi feito antes. Demora um pouco para as pessoas se acostumarem e entenderem como ele funciona. Nós passamos muito tempo nos certificando de que estamos de acordo com as leis locais", garante.
          Ela diz que nunca criaria um Lulu para homens, mas que não se incomoda se alguém o fizer.
          "Dou todo apoio a quem quiser inovar e criar. Quando apresentamos o Lulu nos EUA, imediatamente ouvimos caras dizendo que lançariam um Lulu para homens na semana seguinte, no mês seguinte, e eles nunca chegaram."
          Segundo Alexandra, a versão atual do Lulu é apenas a fase inicial de um produto maior dirigido às mulheres, que abrangerá temas como beleza, saúde e carreira.
            Legislação genérica favorece impunidade
            Projetos no Congresso propõem punições
            DE SÃO PAULO
            O "revenge porn" encontra na impunidade um estímulo para se propagar pelas redes.
            A falta de leis específicas e de delegacias especializadas faz com que o tempo de resposta da Justiça seja inversamente proporcional à rapidez com que um vídeo íntimo se espalha pela internet.
            "Buscar por justiça tem sido muito frustrante", afirma a estudante Thamiris Sato, 21, que teve fotos divulgadas na internet pelo ex-namorado.
            "O cara vai lá, posta, a menina fica com vergonha de denunciar e, mesmo quando denuncia, ele não vai ser preso, não vai acontecer nada."
            Ela diz que entrará com uma ordem de restrição contra o ex e que apresentará uma queixa-crime. Seu caso foi registrado na Delegacia de Defesa da Mulher.
            A Lei Maria da Penha é uma das alternativas para as mulheres vítimas dessa prática. "Pode ser caracterizada violência psicológica", explica Omar Kaminski, advogado especializado em novas tecnologias.
            Segundo Kaminski, casos de "revenge porn" também podem ser tipificados como crimes contra a honra -injúria e difamação-, previstos no Código Penal.
            "Porém, muitas vezes as penas não são condizentes com o mal causado", diz.
            Na esfera civil, a vítima pode tentar uma indenização por danos morais.
            PROPOSTAS
            No Congresso Nacional, pelo menos três projetos -todos apresentados neste ano- propõem punições para o
            "revenge porn".
            Proposta de outubro do deputado federal Romário (PSB-RJ) torna crime a divulgação indevida de material íntimo e prevê pena de um a três anos e prisão e multa, podendo haver aumento de um terço se o objetivo for vingança ou humilhação da vítima.
            O deputado Eliene Lima (PSD-MT) apresentou proposta para punir a vingança pornográfica com pena de um ano de reclusão mais multa de 20 salários mínimos.
            O projeto do deputado João Arruda (PMDB-PR), modifica a Lei Maria da Penha, tornando-a também "virtual" e abrangendo de forma mais específica esse tipo de ocorrência.

            Aids no Brasil: oportunidades perdidas - Caio Rosenthal e Mário Scheffer

            folha de são paulo
            CAIO ROSENTHAL E MÁRIO SCHEFFER
            Aids no Brasil: oportunidades perdidas
            Ao contrário das previsões oficiais, a epidemia da Aids ressurge com força total entre os homossexuais e as populações negligenciadas
            É bem possível que muitos de nós ainda estejamos vivos para assistir ao fim da epidemia da Aids. A ciência busca freneticamente uma vacina. Já em teste, drogas menos tóxicas e de efeito prolongado prometem substituir as doses diárias que pacientes tomam por toda a vida.
            Ganha força a ideia da cura funcional da Aids, a redução do HIV a um nível tão baixo no organismo ao ponto de o sistema imunitário assumir o controle da infecção, mesmo sem medicamentos.
            Hoje, quem faz o teste, descobre que tem HIV e recebe o tratamento pode também prevenir a transmissão a parceiros, assim como já é possível o uso controlado de antirretrovirais antes ou depois do sexo sem proteção, uma alternativa para pessoas soronegativas expostas. Se combinadas com a massificação do uso de preservativos, essas estratégias fariam cair drasticamente o número de infectados e de mortes.
            Nos últimos anos, no entanto, o Brasil não só perdeu essas oportunidades como imprimiu retrocessos no seu outrora respeitável programa de combate à Aids. Por falta de campanhas adequadas, o uso de preservativos só diminui. Desde 2006, as taxas de mortalidade voltam a crescer e, em algumas regiões, superam as da década de 1980. Trinta mortes e cem novos casos são registrados todos os dias no país.
            Por desconhecerem que estão infectados e por iniciarem tardiamente o tratamento, muitos morrem logo no primeiro ano do diagnóstico. Outros esperam meses entre o teste positivo e a primeira consulta em serviços lotados e sem médicos.
            Recente diretriz nacional que antecipa o começo do tratamento da Aids prevê o deslocamento de milhares de novos pacientes para as unidades básicas de saúde, que não estão preparadas para um atendimento que exige experiência e especialização. A oferta antecipada de medicamentos depende também do diagnóstico precoce. Infelizmente, as iniciativas de testagem do HIV buscam holofotes, do Carnaval ao Rock in Rio, mas deixam de identificar novos casos. Os mais atingidos pela epidemia seguem sem acesso ao teste.
            Trunfo do Brasil no passado, que chegou a quebrar a patente de um medicamento, a produção local de genéricos estagnou. Até hoje laboratórios nacionais não fabricaram a prometida dose fixa combinada, que junta três remédios antiaids em um único comprimido, o que facilita a adesão ao tratamento.
            No ritmo da incompetência, ministro e secretários da Saúde deveriam ser processados a cada caso de criança que nasce com HIV, um flagelo perfeitamente eliminável. Erráticos, os dados oficiais apostaram que a Aids avançaria em direção aos heterossexuais, às pessoas de baixa renda e ao interior do país. Concentrada nas áreas urbanas, a verdade é que a epidemia ressurge com força total entre os homossexuais e outras populações negligenciadas.
            Costuras eleitorais permitem o triunfo do moralismo e da religião sobre a saúde pública. Campanhas dirigidas aos mais vulneráveis são censuradas, afastando a ação governamental da epidemia real.
            Sem mais investimentos federais no SUS, sem liderança que retome o diálogo e a mobilização social, o Brasil ficará de fora da marcha mundial para o fim da Aids.

            'Uruguai não terá fumo livre', diz Mujica - Lucas Ferraz

            folha de são paulo
            'Uruguai não terá fumo livre', diz Mujica
            Presidente pede ao mundo que deixe seu país fazer uma 'experiência' de regulamentação da produção e venda da droga
            Projeto está prestes a ser votado no Senado; compra de cigarros de maconha passará a ser controlada pelo Estado
            LUCAS FERRAZENVIADO ESPECIAL A MONTEVIDÉUSentado na chácara onde vive, nos arredores de Montevidéu, José Alberto Mujica Cordano filosofa: "As pessoas, nas suas condutas, não dão bola para a razão".
            E não há nenhuma que explique o fato de esse senhor de 78 anos entrar para a história como o responsável por transformar o Uruguai no primeiro país a regulamentar produção e venda da maconha, algo inédito no mundo.
            Baseado ele afirma que nunca fumou.
            "Não defendo a maconha, gostaria que ela não existisse. Nenhum vício é bom. Vamos é regular um mercado que já existe. Não podemos fechar os olhos para isso. A via repressiva fracassou."
            Em entrevista à Folha na zona rural de Rincón del Cerro, na chácara onde vive com a mulher, a senadora Lucía Topolansky, o presidente ressalta que o Uruguai vai regulamentar, e não legalizar a maconha. A venda será controlada pelo Estado.
            Simulando de forma caricatural quem está sob efeito da droga, garante que o país não se transformará na terra do "fumo livre".
            "Pedimos ao mundo que nos ajude a fazer essa experiência, que nos permita adotar um experimento sócio-político diante de um problema grave que é o narcotráfico", disse. "O efeito do narcotráfico é pior que o da droga."
            Já aprovado na Câmara, o projeto de lei que regulamenta a droga permite ainda que os usuários, mediante licença, plantem a erva em casa.
            De acordo com o governo, se quiserem sair da clandestinidade, os cerca de 200 mil usuários de maconha no país deverão se cadastrar para ter acesso limitado à droga.
            A votação do projeto pode ser concluída nesta semana pelo Senado, último estágio antes da sanção presidencial. Na prática, a experiência começará no ano que vem.
            Ainda será preciso regulamentar a medida, estabelecendo limite de cigarros que podem ser comprados --um número citado é 40 por mês.
            A prerrogativa será restrita a uruguaios e residentes no país, uma forma de inibir o turismo da droga.
            Como o governo Mujica tem maioria no Senado, espera-se que o projeto seja aprovado com folga.
            REVOLUÇÕES
            Será mais uma medida revolucionária do governo do ex-guerrilheiro, que já aprovou o casamento gay e legalizou o aborto.
            País de tradição liberal, onde fumar maconha não é crime (ao contrário do Brasil), o Uruguai começou a discutir a regulação da droga há pelo menos dez anos.
            "Propusemos a lei por causa das tradições do Uruguai. De 1914, 1915, até os anos 60, o álcool era monopólio do Estado. Por mais de 50 anos produzimos e vendemos nossa própria grapa, cachaça, rum. Por um valor maior, que era para direcionar recursos para a saúde pública. É o que vamos fazer agora".
            O presidente cita outros vanguardismos do país de pouco mais de 3 milhões de habitantes, como a regulamentação da prostituição, o direito de divórcio pela vontade da mulher e a opção do Uruguai de ser um Estado laico. Todos esses pontos foram estabelecidos nas primeiras décadas do século passado.
            Usando metáforas da vida no campo, Mujica lembra que mudar a sociedade é como plantar oliva, "não se pode esperar uma grande colheita logo de cara". "As causas humanas são de longo prazo."
            Ele afirma que, se houver equívoco ou resultado negativo no processo de regulação da maconha, o governo voltará atrás. "Mas, se descobrimos coisas que podem servir como ferramenta para a humanidade, e se esse experimento na vida real valer a pena, poderemos ser um exemplo. Mas também a conclusão pode ser a de que não temos solução para isso, e assistiremos a uma humanidade cada vez mais doente."
            Ele contou à Folha que uma das medidas para tentar restringir a circulação da maconha no Uruguai é a adoção de um código genético único nas plantas. "Molecularmente, será possível identificar a nossa maconha", disse.
            Ele admite que seu governo está sendo pressionado pela comunidade internacional, sobretudo por países vizinhos, como o Brasil, temerosos de que a maconha uruguaia transborde as fronteiras. "Sempre vai haver pressão. Há um aparato no mundo que vive em reprimir e custa muito."
            A resistência também vem de dentro. Pesquisas mostram que parte da população uruguaia é contrária à lei. "Há um custo político alto, ninguém quer pagar por isso. Ex-presidentes como Ricardo Lagos [Chile] e FHC defendem, mas o curioso é que fazem isso quando não são mais presidentes. Por que não defenderam quando eram presidentes?".
              'O dogmatismo é uma doença da esquerda'
              DO ENVIADO A MONTEVIDÉUBadalado internacionalmente como o "presidente mais pobre do mundo", "o melhor presidente do mundo" e "o herói não reconhecido da América Latina", José Mujica diz achar graça dos clichês.
              Na entrevista à Folha, ele também abordou temas como Mercosul e a esquerda latino-americana.
              Mercosul
              Está travado. As classes dirigentes, como a burguesia paulista e argentina, não entendem que estamos na época da integração. O Mercosul não vai caminhar se, de boa fé, não houver entendimento entre Brasil e Argentina.
              Esquerda
              O dogmatismo é uma doença crônica da esquerda latino-americana. Acreditamos que somos possuidores de uma verdade absoluta. A esquerda tem a doença de sempre ser apaixonada pelos modelos em que acredita. Mas se penso que meu vizinho deve pensar como eu, estamos fritos.
              Estilo de vida
              Há senhores acostumados com o poder, que se consideram representantes naturais dele e se sentem agredidos quando veem alguém que não pertence a essa classe e não renuncia a sua forma de viver. Eles não toleram. Tenho um respeito de pertencimento que não abandono, e isso dói em alguns. Essa luta tem diversas características. O Lula sofreu com isso por ser torneiro mecânico, gente do povo.
              Acho graça desses estereótipos. Pobre é quem precisa de muito. Tenho um tipo de riqueza que muitos não ambicionam. Desprezo a acumulação de dinheiro. Tenho 78 anos e estou por um passo [da morte], vou acumular dinheiro?

                Clovis Rossi

                folha de são paulo

                A utopia respira, embora em coma

                Ouvir o texto
                Saíram os dados do terceiro trimestre na Europa.
                Comentário do economista José Carlos Díez em "El País": "A eurozona cresceu 0,1% trimestral, o que foi surpresa negativa. França e Itália continuam com leves quedas do PIB. E o consumo privado de França e Alemanha está estancado. Mais preocupante é que as exportações da área, incluindo Alemanha, se estancaram no trimestre passado".
                Agora, foco na Itália, quarta economia da área, conforme relato de "La Repubblica" na sexta-feira:
                "O número de desempregados cresceu 9,9% em relação ao ano passado e chega a 3,189 milhões de pessoas [ou 12,5%, o mais alto índice desde 1977]. Entre os jovens, vai a 41,2%, máximo histórico".
                Quem lê essas notícias --e são apenas a ponta de um gigantesco iceberg-- fica achando que ninguém mais vai querer chegar nem perto da União Europeia, o conglomerado de 28 países, certo?
                Errado, muito errado. Primeiro, o próprio número 28 denuncia o erro: eram 27 até o ano passado, mas a Croácia fez questão de aderir ao clube e agora faz parte dele.
                Segundo, há um levante popular na Ucrânia, porque seu presidente, Viktor Yanukovich, desistiu na última hora de assinar neste fim de semana um acordo de associação com a UE. Nem era um acordo de adesão, que esse leva um tempão para ser processado.
                Manifestações capazes de fazer as de junho no Brasil parecerem esquálidas ocorreram durante a semana, não só na capital, Kiev, mas em várias outras cidades, todas elas comandadas por e com maciça presença de jovens.
                Posto de outra forma: o futuro da Ucrânia crê que o seu próprio futuro e o do país estejam na Europa.
                Até Yanukovich acredita nisso. Só pediu um adiamento na assinatura do acordo porque foi pressionado pela Rússia, que ameaçou com represálias no fornecimento de gás e na redução das importações (é o maior mercado para a Ucrânia).
                Mas, após os primeiros protestos, disse: "não há alternativa à construção de uma sociedade de padrões europeus na Ucrânia. (...) Nada nos roubará uma Ucrânia em que haja igualdade de oportunidades, uma Ucrânia europeia".
                Pois é. Continua viva a utopia do Estado de Bem-Estar Social, de que a Europa é o modelo menos imperfeito que o ser humano construiu até hoje.
                Pode estar em estado comatoso, até porque seus líderes têm se mostrado incapazes de sair da crise sem jogar fora a criança (o modelo) junto com a água suja do banho (seus excessos). Mas respira.
                A propósito, lembro uma frase de um certo Luiz Inácio Lula da Silva, no já remoto ano de 1994, quando ele ainda era de esquerda e disputava a Presidência.
                Entrávamos na sede do SPD, o Partido Social-Democrata, então em Bonn, para um debate com líderes sindicais e políticos.
                "Se a gente [o Brasil] chegasse perto do modelo deles, já estaria de muito bom tamanho", me disse.
                Já presidente, aliás, Lula diria que a construção europeia era "uma conquista da civilização". O episódio da Ucrânia demonstra que a civilização ainda respira.
                clóvis rossi
                Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo" e "O Que é Jornalismo". Escreve às terças, quintas e domingos na versão impressa de "Mundo e as sextas no site