A utopia respira, embora em coma
Saíram os dados do terceiro trimestre na Europa.
Comentário do economista José Carlos Díez em "El País": "A eurozona cresceu 0,1% trimestral, o que foi surpresa negativa. França e Itália continuam com leves quedas do PIB. E o consumo privado de França e Alemanha está estancado. Mais preocupante é que as exportações da área, incluindo Alemanha, se estancaram no trimestre passado".
Agora, foco na Itália, quarta economia da área, conforme relato de "La Repubblica" na sexta-feira:
"O número de desempregados cresceu 9,9% em relação ao ano passado e chega a 3,189 milhões de pessoas [ou 12,5%, o mais alto índice desde 1977]. Entre os jovens, vai a 41,2%, máximo histórico".
Quem lê essas notícias --e são apenas a ponta de um gigantesco iceberg-- fica achando que ninguém mais vai querer chegar nem perto da União Europeia, o conglomerado de 28 países, certo?
Errado, muito errado. Primeiro, o próprio número 28 denuncia o erro: eram 27 até o ano passado, mas a Croácia fez questão de aderir ao clube e agora faz parte dele.
Segundo, há um levante popular na Ucrânia, porque seu presidente, Viktor Yanukovich, desistiu na última hora de assinar neste fim de semana um acordo de associação com a UE. Nem era um acordo de adesão, que esse leva um tempão para ser processado.
Manifestações capazes de fazer as de junho no Brasil parecerem esquálidas ocorreram durante a semana, não só na capital, Kiev, mas em várias outras cidades, todas elas comandadas por e com maciça presença de jovens.
Posto de outra forma: o futuro da Ucrânia crê que o seu próprio futuro e o do país estejam na Europa.
Até Yanukovich acredita nisso. Só pediu um adiamento na assinatura do acordo porque foi pressionado pela Rússia, que ameaçou com represálias no fornecimento de gás e na redução das importações (é o maior mercado para a Ucrânia).
Mas, após os primeiros protestos, disse: "não há alternativa à construção de uma sociedade de padrões europeus na Ucrânia. (...) Nada nos roubará uma Ucrânia em que haja igualdade de oportunidades, uma Ucrânia europeia".
Pois é. Continua viva a utopia do Estado de Bem-Estar Social, de que a Europa é o modelo menos imperfeito que o ser humano construiu até hoje.
Pode estar em estado comatoso, até porque seus líderes têm se mostrado incapazes de sair da crise sem jogar fora a criança (o modelo) junto com a água suja do banho (seus excessos). Mas respira.
A propósito, lembro uma frase de um certo Luiz Inácio Lula da Silva, no já remoto ano de 1994, quando ele ainda era de esquerda e disputava a Presidência.
Entrávamos na sede do SPD, o Partido Social-Democrata, então em Bonn, para um debate com líderes sindicais e políticos.
"Se a gente [o Brasil] chegasse perto do modelo deles, já estaria de muito bom tamanho", me disse.
Já presidente, aliás, Lula diria que a construção europeia era "uma conquista da civilização". O episódio da Ucrânia demonstra que a civilização ainda respira.
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo" e "O Que é Jornalismo". Escreve às terças, quintas e domingos na versão impressa de "Mundo e as sextas no site
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