quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Anna Veronica Mautner

folha de são paulo
Entre o campo e a cidade
Urbanos comunicam-se com homens do campo sem se anularem. Curiosamente, as diferenças entre o moderno e o regional são mantidas
Ela me disse ao telefone: "O Félix está mamando com tanta força! Que gracinha meu neto! E que cara feliz a da minha filha!". Indago: "Mas ela não mora em Barcelona?". A resposta: "Ué, a gente se vê pelo Skype".
Nunca pensei que ouviria isso. Há menos de 50 anos, uma ligação telefônica para Barcelona não só não tinha imagem como obrigaria os interlocutores a gritar para se fazerem ouvir, após horas de espera até que a Companhia Telefônica completasse a conexão.
Há menos de 60, em Paraty (RJ), marcava-se encontro para falar dali a dez horas ou mais com São Paulo. Tinha fila de pedidos de ligações.
Hoje, tudo ficou instantâneo: o leite, o chocolate, a conexão.
Nos anos 1940, a conexão Brasil Europa --de navio-- levava 15 dias. Já existia avião, mas não para turismo. Quando uma pessoa emigrava de um continente para outro, ocorria uma ruptura séria. Para rever os que ficaram, muito tempo se passava. A Terra parecia enorme.
Existia o telégrafo, um cabo subterrâneo que ligava enormes distâncias. Só era usado para notas breves: nasceu, morreu, espere, chego. Não para romance, muito menos bate-papo. Telegrama era caro. Pagava-se por letra. Tinha de escolher entre sinônimos o mais curto.
As geladeiras eram raras. A alimentação era regional. Aqui não tinha cogumelos, não se fazia receitas com cogumelos. A cereja só vinha para o Natal. São Paulo era São Paulo. Bahia era Bahia. Belém do Pará era Belém do Pará.
Hoje, tudo mudou. Novas identidades regionais foram se formando. O homem da cidade é o homem do mundo moderno.
No interior, pelo campo afora, ainda temos muito do regionalismo. Núcleos com identidades quase puras persistem por ali em contato com o mundo todo, se o assim desejarem, ou só com seu vilarejo ou cidade de origem.
Algumas pessoas mantêm contato com seus antepassados, outras rompem e vão criando novas linhagens. No campo, hábitos e costumes demoram mais a mudar. O tempo é mais lento, apesar da TV, do rádio, dos jornais e revistas --no campo, encontramos pessoas que conservam. Preservam o contato com a natureza e com o que ela tem de regional e permanente.
O campo gaúcho tem pouco a ver com o sertão cearense, e ambos são interior. Vistos como movimentos de transformação, podem ser idênticos, ou pelo menos parecidos. Ambos são fiéis ao passado.
É cada vez maior a força da urbanização e, portanto, da presença do homem moderno. O homem do campo, contudo, resiste, mantendo o chimarrão, o óleo de dendê, o jambu e o doce de leite.
Que bom que essas duas forças coexistem, facilitando a manutenção da especificação das nações.
Gosto de ser brasileira e comer queijo com goiabada. Não que desgoste de "pancake" americano com "maple syrup" ou compota de lichia. Nem sei se prefiro um ao outro, mas não largo o que é meu.
Quem é o homem novo? Este homem moderno que vai surgir no coexistente dos dois universos? A diferença não é geográfica. Urbanos comunicam-se com os homens do campo sem se anularem. Curiosamente, as diferenças são mantidas.

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