Churrasco de aorta
Em luta contra o analfabetismo, vislumbro a placa salvadora em caracteres ocidentais: "Yakiniku". Isso eu conheço, é o churrasco coreano adaptado ao paladar japonês, com menos alho e (um pouco menos) pimenta. Perfeito. Até então, perdido entre neons e ideogramas, não sabia onde jantar.
Osaka, terceira cidade do Japão, 2,6 milhões de habitantes, é ainda menos ocidentalizada que Tóquio. Tem a atração turística mais visitada do país, um lindo castelo do século 16, e pouco além disso.
Sua maior atração é a comida. Gente de respeito, como o crítico inglês Michael Booth, a considera a principal cidade gastronômica do mundo. O lema local é "kuidaore": algo como "comer até cair".
No bairro de Namba, um beco chamado Hozen-ji Yokocho, tão estreito que por ele não passam carros, reúne por metro quadrado a maior concentração de restaurantes com estrelas Michelin da Terra (informação do "Wall Street Journal": http://kfc.io/i9).
Uma outra viela, essa ainda mais apertada, a ponto de mal caberem duas pessoas lado a lado, abriga o venerando Nakamura, expoente de uma especialidade local, a cozinha "kappo". A base é o frescor absoluto dos produtos de época, com leves toques ocidentais.
Osaka é uma cidade descontraída, e o desfrute da "kappo" se dá não em mesas com toalhas de linho branco, mas na informalidade de um balcão. Tudo preparado diante do cliente, uma tendência que se espalha pelo mundo.
O único problema é encontrar esses lugares tão especiais. Osaka quase só tem cartazes e letreiros que não facilitam para ninguém. Tudo está nos alfabetos nipônicos.
Daí o alívio ao achar um restaurante anunciado em letras latinas: "Yakiniku".
Como quase sempre no Japão, fica em um prédio onde parecem existir uns cem botecos e lugares de comer. Subo a escada até o primeiro andar, entro no restaurante. Ouço vozes, mas não vejo ninguém.
Demora um pouco, alguém me recebe. Indicador da mão esquerda para cima, aviso que estou sozinho.
A moça me leva por um corredor escuro. Não se ouve mais nada do burburinho das ruas. Só vozes abafadas de dentro do próprio restaurante.
Imagino que o corredor vá terminar em um salão, ou balcão, onde finalmente eu possa encontrar os outros fregueses. De repente, a jovem para. Desliza uma porta, manda que eu entre.
O que surge do outro lado desafia meu poder de descrição. É um híbrido de cubículo e buraco, com as dimensões de um confessionário.
Agora entendo de onde vinham as vozes abafadas. O restaurante não tinha um espaço comum. As pessoas jantavam dentro de salas. E para mim, viajante solitário, o pragmatismo nipo-coreano reservou aquele curioso muquifo: a sala para um.
Não posso dizer que tenha entrado no recinto e me acomodado. Eu, na verdade, mergulhei em pé. Sob a mesa, havia um buraco fundo, onde encaixei as pernas. Sentado,
minha cabeça ficava na altura do chão do corredor por onde vim.
minha cabeça ficava na altura do chão do corredor por onde vim.
A moça fechou a porta e atirou o cardápio, que felizmente, tinha uma versão (mais ou menos) em inglês.
Sozinho no cubículo, com uma parede branca a 30 centímetros do meu nariz, em um espaço total de não mais que um metro quadrado, tive certeza de que seria o jantar mais triste da minha vida --e olhe que a disputa, em se tratando deste colunista, é das mais acirradas.
As surpresas continuam. Vendo o menu, percebo que não é um restaurante de "yakiniku" qualquer. Pertence à variante mais extrema da modalidade, a "horumon-yaki", típica de Osaka. Se o "yakiniku" tradicional é o Fleetwood Mac, o "horumon-yaki" são os Sex Pistols. Aqui não existe lugar para sutilezas, e o esquema é "do it yourself".
Entre as iguarias bovinas, há base da língua, segundo e terceiro estômagos, cortes macios de altíssimo grau de gordura, entranhas de toda sorte e, "last but not least", aorta. Com um detalhe: tudo a ser preparado por mim mesmo, numa grelha embutida na mesa.
Posso garantir: nunca as tradições do "horumon-yaki" foram tão desrespeitadas. Não acertei a intensidade do fogo, deixei tudo passar do ponto e não fazia ideia de como usar as cinco variedades de sal disponíveis na minha frente.
Mas tenho o prazer de informar que aorta tem gosto e consistência de lula. Pelo menos a que preparei. Peço perdão a Osaka.
Álvaro Pereira Júnior é graduado em química e jornalismo pela USP, com especialização em jornalismo científico pelo MIT. Trabalha no programa "Fantástico", na TV Globo. Escreve aos sábados, a cada duas semanas, na versão impressa de "Ilustrada".
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