Falta contar vida de Mário de Andrade, dizem biógrafos; opção sexual seria obstáculo
Quais vidas brasileiras dariam um livro que ainda não foi escrito? Alguns dos principais biógrafos do país reunidos num festival encerrado no domingo em Fortaleza consideram que a de Mário de Andrade certamente daria.
O escritor modernista nascido em 1893 e morto em 1945 foi, entre 31 figuras públicas nacionais, o mais citado no levantamento como merecedor de uma biografia.
Quatro biógrafos (Ruy Castro, Lira Neto, Humberto Werneck e Paulo César de Araújo) mencionaram a lacuna quanto ao autor de "Macunaíma".
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Logo atrás, com três citações, aparece o poeta Manuel Bandeira (veja lista ao lado).
Há uma biografia de Mário a caminho. Diante do impasse quanto à lei que permite veto a biografias não autorizadas não se sabe se o trabalho, do jornalista Jason Tércio, será publicado.
Nesta quinta (21) uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal começa a debater o tema.
Os herdeiros do escritor afirmam achar desnecessária uma biografia. O jornalista diz que pode publicá-la no exterior.
Pesquisadores comentam que a suposta homossexualidade de Mário de Andrade é o entrave ao aval da família. O sobrinho dele desconversa.
A tese voltou a ser levantada durante o festival de biografias realizado na semana passada em Fortaleza por autores como Humberto Werneck e Lira Neto.
"Eu sempre quis fazer um livro sobre Mário de Andrade, acho que ele é a figura mais importante da cultura brasileira no século 20. Não se pode fazer isso porque ele era veado e porque a memória dele, o acervo, tem proprietários", disse Werneck durante um debate.
O jornalista Jason Tercio diz que tratará do assunto em sua biografia, mas sem ênfase. "Apesar de alguns teóricos, como João Luiz Lafetá, terem visto reflexos de homossexualismo em textos do Mário, esse aspecto da vida dele é o menos importante."
"Minha conclusão até agora é que ele era pansexual. Aliás, uma vez ele disse ao Rosário Fusco que seria capaz de ter relação sexual com uma árvore", relata Tercio.
A suposta homossexualidade do autor de "Pauliceia Desvairada" é apontada como gota d'água no rompimento dele com outro modernista, Oswald de Andrade.
Tercio lembra que Oswald escreveu que Mário de Andrade era "o nosso Miss São Paulo traduzido em masculino".
Werneck, citando o historiador modernista Mário da Silva Brito, lembrou que Oswald se referiu em texto a Mário como "boneca de piche".
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O escritor Mário de Andrade (sentado ao centro) com alunos do Conservatório Dramático e Musical de SP |
Professora titular do IEB (Instituto de Estudos Brasileiros) da USP e curadora do Arquivo Mário de Andrade, Telê Ancona Lopez refuta a tese de que a sexualidade é o motivo de a família resistir a biografias. "É absurdo. A família do Mário não é burra. Isso é preconceito de quem pergunta."
Apontada à boca miúda por pesquisadores como uma guardiã rígida do acervo de Mário de Andrade no IEB, Lopez disse que a biografia dele "está disseminada por aí", em artigos e salas de aula.
Mas ela declarou não se opor à biografia de Tercio. "Eu o conheço. Acredito que venha a ser um bom trabalho, porque ele é um biógrafo conceituado."
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SETE ANOS
Assim como outros biógrafos brasileiros, Tércio aguarda o desfecho do impasse sobre as biografias não autorizadas para definir como fará com a sua obra sobre Mário.
Ações no Supremo Tribunal Federal e no Congresso tentam alterar artigos do Código Civil que permitem o veto a biografias não autorizadas.
Tercio mergulhou há sete anos na pesquisa sobre o modernista e começou a escrever o livro há três anos. Planeja concluir o trabalho no primeiro semestre de 2014.
Autor de uma biografia do jornalista Carlinhos de Oliveira ("Órfão da Tempestade") e de livros sobre o deputado Rubens Paiva, Tercio diz já ter sondado editoras, mas aposta que qualquer negociação só seguirá após a resolução do imbróglio jurídico.
O biógrafo procurou os herdeiros de Mário e expôs a importância de uma biografia. "As cartas têm informações biográficas, mas passageiras e incompletas" e, "mesmo se já houvesse uma biografia, poderia haver outras, pela grandeza de sua vida e obra". Não convenceu.
"A posição é a mais absurda entre todas as de herdeiros, não teria amparo legal, mesmo no Código Civil atual", diz Tercio, que já tem plano B caso surja impedimento jurídico.
"Publico o livro em outro país e apresento denúncia em órgãos internacionais, como o PEN International e Index on Censorship", diz, aludindo à associação de escritores e à ONG que denuncia violações da liberdade de expressão pelo mundo.
OUTRO LADO
Escritor já deixou sua biografia em cartas, diz herdeiro
DO EDITOR-ADJUNTO DA "ILUSTRADA"Sobrinho de Mário de Andrade (filho da irmã mais nova do escritor, Maria de Lourdes), o engenheiro e empresário Carlos Augusto de Andrade Camargo, 74, afirma não considerar necessária uma biografia sobre o tio."Através das milhares de cartas que escreveu e foram publicadas, Mário deixou sua própria biografia", disse, em entrevista por email.
"Quem se interessar por Mário tem ao seu dispor dezenas de livros de correspondência, em que ele se coloca desinteressadamente, com a maior espontaneidade e sinceridade, própria de uma troca entre amigos."
Indagado se recorreria à Justiça para impedir uma biografia do tio, afirmou: "Não raciocino sobre hipóteses".Camargo diz saber do trabalho de Jason Tércio e que trocou com o biógrafo e-mails, cujo teor não quis revelar.
Segundo Tércio, o sobrinho de Mário lhe escreveu que ele não contaria "com a concordância, o apoio ou colaboração" da família.
Questionado sobre o relato do biógrafo, Camargo respondeu: "Conversas com meus interlocutores não são de interesse público".
Ele tampouco quis comentar a versão de que a sexualidade de Mário seria entrave à publicação de uma biografia.
"Moacir Werneck de Castro, José Bento Faria Ferraz (só para citar dois que conviveram com Mário) já escreveram a respeito. Não tenho nada a acrescentar", disse, citando o jornalista fluminense e o secretário pessoal de Mário.
Em seu livro "Exílio no Rio", Werneck de Castro escreveu que Mário tinha uma "sexualidade reprimida, irrealizada ou mal realizada".
"Nada havia em seu comportamento conosco, nem mesmo na desinibição ao fim de grandes chopadas, que o denotasse. (...) Parecia natural, próprio de sua personalidade, um certo dengo, a maneira engraçada de dizer, por exemplo, "Ah, que gostosura!', ou escandindo as sílabas, uma de-lí-cia!' Era o jeito dele."
Numa entrevista à Folha em 1997, Ferraz disse: "Soube que na estadia de Mário no Rio ele usava tóxicos, cocaína, sei lá o quê. Agora, se ele era homossexual, não sei".
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