domingo, 1 de dezembro de 2013

Antonio Prata

folha de são paulo

Escorrendo

DE SÃO PAULO
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Você encara o infortúnio com valentia: uma caneca de chá numa mão, uma caixa de lenços na outra, paciência e fé que o paracetamol e a vitamina C te levarão, bem ou mal, até o fim daquela gripe. Os vírus, contudo, são criaturinhas insidiosas. Ressentidos por ocuparem o térreo na pirâmide da seleção natural, estão determinados a derrotar não só os glóbulos brancos do infeliz hospedeiro, mas a subjugar seu espírito, até que a última gota da dignidade escorra pelo nariz.
De manhã, você se assoa em lenços de papel -nada que fira teus brios. Há algo de austero naquelas caixas de lenço, algo de realeza inglesa ou, ao menos, de rico de novela. É essa austeridade, aliás, que me faz preferir as caixas de cor escura, pretas ou vinho, e jamais levar as coloridas, com florzinhas ou ilustrações do Romero Britto: não há graça nenhuma em assoar o nariz, e uma pessoa direita deve fazê-lo com a seriedade de quem dá uma má notícia. A má notícia, infelizmente, é que no ritmo de duas assoadas por minuto, antes do almoço sua caixa de lenços já era: agora você anda por aí com um rolo de papel higiênico a tiracolo, e os vírus, usando suas adenoides como cama elástica, dão piruetas de alegria.
O papel higiênico é uma afronta à dignidade humana, por três motivos. Em primeiro lugar, estamos levando a uma extremidade do corpo algo que é fundamentalmente destinado à outra. Segundo: papel higiênico esfarela. Uma assoada mais agressiva e parece que você tem caspa no queixo, que nevou na sua blusa ou que mergulhou de peixinho num galinheiro. Por último, mas não menos importante: aquele oco no meio do rolo é um convite à barbárie; você, que antes ia civilizadamente ao banheiro jogar os papéis usados no lixo, agora passa a mocozá-los no miolo.
Os vírus, nesta altura do campeonato, estão todos aglomerados nas bordas das suas narinas, como a torcida no alambrado aos 43 do segundo tempo: riem, gritam, cantam. Sabem que vencerão o jogo, mas vencer não basta, querem te ver no fundo do poço. O poço, no entanto, parece não ter fundo, assim como o oco no meio do rolo: você espreme o papel de um lado, o papel sai pelo outro. As primeiras bolotas amassadas a rolar pelo chão você até recolhe, mas o corpo dói, o entusiasmo falta e, além do mais, você está se habituando àquela porqueira, o que era repugnante às nove da manhã parece aceitável às quatro da tarde, de modo que a casa vai sendo polvilhada pelos pipocões de papel e muco.
Aqui, um vírus mais afoito poderia deixar o estádio. Os experientes, porém, sabem que o melhor está por vir -e vem. Em poucas horas, eles te assistem passar do papel higiênico pros guardanapos, dos guardanapos pro papel toalha, até que enfim contemplam sua derrocada final: você, no carro, a caminho da farmácia -onde comprará dúzias de caixas de lenço, sem se importar se trarão ilustrações do Romero Britto, da Turma da Mônica ou dos Cavaleiros do Zodíaco -assoando o nariz numa folha de Zona Azul. Usada. Não, nova.
Aí sim essas criaturinhas toscas, felizes por terem deixado de joelhos a máquina mais complexa do universo -você-, darão as mãos, cantarão "Ai, ai, ai, ai, tá chegando a hora..." e se atirarão de suas ventas em busca de novos desafios.
antonio prata
Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34). Escreve aos domingos na versão impressa de "Cotidiano".

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