A história de uma orquestra sinfônica está ligada à criação de uma cultura interna, na qual músicos e maestros introduzem uma visão singular das obras do repertório.
A Osesp tentou por duas vezes parir sua cultura. A primeira com Eleazar de Carvalho, regente titular entre 1973 e 1996. Mas só o segundo parto, operado por John Neschling, foi bem-sucedido. Ao assumir e reformular a orquestra, em 1997, Neschling deu a ela um padrão até então desconhecido entre as sinfônicas brasileiras.
Pouco antes de morrer, em 1996, Eleazar disse à Folha que uma grande orquestra só era viável se os músicos recebessem o equivalente a US$ 5 .000 mensais. Mas o orçamento que Estado dava a ele naquela época só permitia salários de R$ 1.200 (um quarto do ideal).
A questão não é financeira. É sobretudo artística. Instrumentista mal pago precisa se desdobrar em aulas particulares, cachês em casamentos ou gravações de publicidade para reforçar o pagamento.
Eleazar foi um grande maestro. Assistente do russo Sergei Koussevitzky, na Sinfônica de Boston, foi titular da Sinfônica de Saint Louis (1963-68), colocando-a no mapa das grandes orquestras americanas.
Mas a Osesp que ele criou em 1973 -ainda chamada de "estadual", em oposição à doTheatro Municipal- teve muitos altos e baixos, sobretudo quando seus músicos, a exemplo do resto do funcionalismo público noregime militar, tinham salários achatados.
Apesar disso, Eleazar tinha uma visão primeiro-mundista do repertório. Fez a integral das nove sinfonias de Gustav Mahler, das nove de Beethoven, das nove de Bruckner e também das 41 de Mozart. Sem a possibilidade de longos períodos de ensaios, os resultados nem sempre eram brilhantes.
O melhor período de Eleazar foi por volta de 1975. A "estadual" se apresentava regularmente no Teatro de Cultura Artística e era honestamente remunerada.
As vacas magras vieram em seguida, quando ela passou a se apresentar no Cine Copan e a seguir no Auditório Simón Bolívar, do Memorial da América Latina. A questão não era apenas a arquitetura inadequada ou a acústica lastimável. A decadência orçamentária afetava o amor-próprio dos músicos.
Se a Osesp (o nome surgiu em 1978) não dava o melhor de si, é porque seus instrumentistas tinham nela apenas um "bico". O empobrecimento da sonoridade desencantava Eleazar e seu então assistente, Diogo Pacheco.
Pior do que aquilo só havia sido a crise de 1956, com o então maestro Souza Lima, quando o Estado fechou suas torneiras para os músicos. A orquestra hibernou e ressurgiria apenas depois de um período de inatividade de oito anos.
PENEIRA
Mas às vésperas da morte de Eleazar, a Osesp já seria potencialmente uma grande orquestra? A resposta é: não. Tanto que Neschling, ao assumir, demitiu coletivamente os músicos. Os que quisessem ficar precisariam passar pela peneira de audições (concursos). Apenas 44 deles foram reaproveitados.
A esse núcleo se agregaram instrumentistas contratados no exterior. Houve um salto de qualidade. Com novos salários (R$ 4.800 por mês), os ensaios para duas récitas semanais, às quintas e aos sábados, eram de oito horas. O atual padrão Osesp começou a emergir no Teatro São Pedro, com seus 636 lugares, de início ocupados pela metade. Hoje a Sala São Paulo, com seus 1.500, está sempre lotada.
O Brasil tinha finalmente uma grande orquestra. Não era mais preciso concentrar o vigor sinfônico nos conjuntos estrangeiros que chegavam pelo Mozarteum ou pelo Cultura Artística.
Neschling, por vezes autoritário, quase sempre ególatra, soube esculpir, com a Osesp, sua grande obra biográfica.
Neschling, por vezes autoritário, quase sempre ególatra, soube esculpir, com a Osesp, sua grande obra biográfica.
Diversificou de modo radical o repertório. Era preciso que Dutilleux, Britten, Gubaidulina, Hindemith ou Korngold se incorporassem ao "clube" de Beethoven, Schumann ou Chopin.
O mesmo aconteceu com os compositores brasileiros, como Camargo Guarnieri, Francisco Braga, Cláudio Santoro, Gilberto Mendes, Ronaldo Miranda, André Mehmari ou Ricardo Tacuchian, e não apenas Villa-Lobos.
Essa imersão numa maior diversidade, obviamente, ajudou a catapultar a Osesp para o padrão que ela ocupa hoje.
Os dois titulares que se seguiram a Neschling -Yan Pascal Tortelier (refinado no repertório francês), de 2009 até 2013, e a americana Marin Alsop (uma perfeccionista), de 2012 até hoje- não precisaram criar uma nova cultura para a orquestra. A Osesp já era dona de seu jeito superlativo de fazer música.
JOÃO BATISTA NATALI, 65, é professor de ética jornalística na Casper Líbero.
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