A pedra fundamental
Há cem anos, nascia a catedral de Proust
No próximo dia 14, será o centenário da chegada às livrarias parisienses de "Do Lado de Swann", o primeiro dos sete tomos de "À Procura do Tempo Perdido", de Marcel Proust. Multidões não sairão às ruas para, mascaradas com o bigodinho do romancista, fazer vigília no Ritz, onde ele pedia um frango inteiro, cerveja e inúmeras xícaras de café quando escrevia o seu livro.
Apenas alguns, em Londres, no Cairo, em Tóquio ou numa padaria nas Perdizes, brindarão à memória do grande artista. Foi ele quem aclarou as intermitências do coração, a mecânica dupla da memória, a força paralisante do hábito, a engrenagem da sociedade cujo fluido é medo e engano, a matéria dúctil do tempo que se perde e é dado aos seus leitores reencontrar.
Datado? Sem dúvida; vive-se na história. Mas, enquanto a enferrujada geringonça burguesa continuar a ranger e a moer mulheres e homens aos milhões, lá estará "À Procura do Tempo Perdido". Para compreender o que se nos passa nos dias de solidão de amor, o romance entre Swann e Odette.
Para analisar a política ao redor, a reação dos distintos ao caso Dreyfus. Para entrever o que de bom pode vir depois do ciclo do capital, uma sonata no salão da Duquesa de Guermantes. Com conhaque barato num copo ordinário: tim-tim, Marcel!
Quatro editores se recusaram a publicar "Do Lado de Swann". Havia motivos mundanos para tanto. Proust era tido como diletante. Não tinha profissão, nunca trabalhara, vivia em festas, herdara o equivalente a dezenas de milhões de reais com a morte dos pais. Publicara a suas custas um livro ilustrado, crônicas de jantares de grã-finos e traduções do caótico John Ruskin.
RITMO VEGETAL Houve também razões literárias. Ninguém entendeu o livro, a combinação de análise e narração, o desenvolvimento em ritmo vegetal, as mudanças cubistas de assunto de um capítulo para o outro, os hiatos abissais no enredo. Mas Proust sabia o que estava escrevendo. Quer dizer, tinha uma noção incerta do que fazia: imaginava que escrevia um romance em dois livros. Depois viraram três, foram para cinco e acabaram em sete.
O mais famoso dos vetos à publicação foi o de André Gide. Proust sempre se queixou de que a "Nouvelle Revue Française", onde o autor de "O Imoralista" era editor, nem abrira o pacote com o original datilografado de "Swann". Mas Gide leu, sim, trechos do livro e estranhou sobremaneira algumas imagens proustianas, como as "vértebras" que apareciam na testa de uma personagem, a tia Léonie.
Proust acabou pagando para que uma nova editora, a de Bernard Grasset, o publicasse. Lentamente, o livro seguiu seu curso, o de amealhar espanto e admiração até se tornar uma obra-prima do modernismo. Gide veio a ler "Swann" inteiro. Escreveu então uma carta a Proust dizendo que a sua recusa inicial fora um dos maiores erros que cometera na vida. O rascunho da carta será leiloado no próximo dia 26, e a Sotheby's avalia que ele será arrematado por 150 mil euros.
O trecho traduzido a seguir é o comecinho de "Do Lado de Swann".
Nele, o narrador descreve o lusco-fusco entre insônia e sono, entre sono e sonho, entre sonho e realidade. Ao mesmo tempo, vai relembrando diversos dos quartos onde dormiu ao longo dos anos. O passado e o presente se condensam naquilo que ele escreve: "Um homem que dorme mantém em círculo ao seu redor o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos".
Proust comparou "Tempo Perdido" a uma catedral e a uma sinfonia. É útil ter essas metáforas em mente ao iniciar a sua leitura. A estranheza que se experimenta não advém da dificuldade do estilo do escritor, perfeitamente compreensível. É que a leitura da abertura do romance corresponde a ver uma catedral bem de perto. Ou a ouvir apenas os primeiros acordes da protofonia de uma peça musical majestosa.
Só com o recuo em relação à igreja, só com o desenvolvimento da sinfonia --para que se possa contemplá-las na sua inteireza, do começo ao fim-- é possível captar a inteligência do romance em plenitude. O espaço e o tempo precisam agir para que Proust viva.
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