Odorico Paraguaçu vestia o paletó às pressas quando recebia um telefonema do governador.
Mas, se a novela "O Bem-Amado" (1973) se passasse hoje, o prefeito de Sucupira talvez não se mostrasse tão reverente: estaria acostumado a tratar diretamente com a Presidência da República de assuntos relativos a creches, postos de saúde e Bolsa Família. Até o célebre cemitério que pretendia inaugurar poderia receber verbas de algum convênio com o governo federal.
Prefeitos com mais verbas e poderes são a mais recente inovação do federalismo brasileiro, cuja história se confunde com a da República. Em contrapartida, os Estados se encontram enfraquecidos.
"As Províncias do Brasil, reunidas pelo laço da Federação, ficam constituindo os Estados Unidos do Brasil", estabelecia o segundo artigo do decreto número 1 de 1889, o inaugural da era republicana.
Sob óbvia inspiração da bem-sucedida experiência norte-americana, procurava-se levar a sério a ideia de Estados autônomos para formular as próprias leis e cuidar de sua administração, a ponto de seus governantes serem chamados inicialmente de presidentes.
Um século depois, o Brasil seria mais original, ao decidir alçar também os municípios à categoria de entes federativos, em um modelo inédito de autonomia local. Na prática, as cidades ganharam um Executivo, um Legislativo e o fim da tutela dos Estados. Em termos ainda mais concretos, houve uma multiplicação do número de prefeituras e câmaras municipais, mais atribuições e mais recursos.
Segundo levantamento do economista José Roberto Afonso, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas, desde a Constituição de 1988, os municípios elevaram de 13,3% para 18,5% sua participação nas receitas públicas do país --via arrecadação própria e repasses obrigatórios feitos pelas instâncias estadual e federal. No mesmo período, a fatia dos Estados no bolo tributário caiu de 26,6% para 24,6%.
Nessas contas não entram as crescentes verbas transferidas voluntariamente da União e dos Estados para os municípios. "Cada vez mais há uma ponte direta entre governo federal e governos locais, sem envolver os Estados; em federações tradicionais, isso é impossível ou proibido", observa Afonso.
GUERRA Se a lógica federativa supõe a cooperação entre seus entes para promover políticas públicas e desenvolvimento econômico, há algo de anormal na experiência brasileira. Basta dizer que o principal tema de discussão entre os governadores do país é a guerra fiscal: a disputa entre os Estados pela atração de investimentos por meio de incentivos tributários.
Sem conseguir chegar a um acordo em torno de uma política que deprime sua capacidade de arrecadar, os Estados acumulam outros contenciosos, como a repartição dos tributos arrecadados pela União e das receitas esperadas com o petróleo do pré-sal.
"O que quebrou os Estados foi a crise dos anos 1990", diz o cientista político Antonio Lassance, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Naquela década, o endividamento excessivo dos governos estaduais foi solucionado por um socorro financeiro federal. Desde então, os Estados são devedores da União e precisam se submeter às exigências da credora. Novas dívidas, por exemplo, com o sinal verde do Tesouro Nacional.
O poder e a autonomia dos Estados oscilaram ao longo da história republicana. O papel centralizador da União foi exercido de maneira mais notória em dois períodos autoritários, o Estado Novo de Getúlio Vargas e a ditadura militar.
Para Fernando Rezende, pesquisador da FGV, vive-se hoje no Brasil, pela primeira vez, um momento de centralização com democracia, ainda que o espírito da Constituição tenha sido o de radicalizar a descentralização.
Segundo seu raciocínio, a mesma crise orçamentária dos anos 90 forçou o governo federal a reforçar suas receitas a fim de cumprir as metas fiscais impostas pelo Fundo Monetário Internacional.
Para tanto, os tributos escolhidos foram aqueles que não são repartidos com os Estados e municípios, em especial as contribuições destinadas a sustentar a rede de programas de proteção social.
Enquanto interrompia o espalhamento de receitas, a União passou também a encabeçar a definição de políticas públicas --"uma série de decisões que vão amarrando as mãos dos administradores estaduais e municipais", nas palavras de Rezende.
O Bolsa Família, por exemplo, tem gestão compartilhada, na teoria, pelas três esferas de governo; todas as regras do programa, no entanto, são definidas em Brasília. Mais recentemente, a presidente Dilma Rousseff tratou de definir como Estados e municípios vão aplicar as receitas do petróleo.
Para Antonio Lassance, isso não é necessariamente um problema. "A União virou uma excelente máquina de arrecadação", argumenta, "e as regras das políticas públicas são pactuadas [com governadores e prefeitos]".
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