domingo, 10 de novembro de 2013

Viagens às terras do nunca mais China, 1966 - ANTONIO SILVIO LEFÈVRE

folha de sao paulo 
ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Viagens às terras do nunca mais
China, 1966
ANTONIO SILVIO LEFÈVRE
Em 1964, ano do golpe militar, levado pela generosidade e ingenuidade juvenis a fazer bobagens, eu, um estudante de medicina na USP, fui parar no Tiradentes --presídio por onde mais tarde passaria a futura presidente Dilma Rousseff-- e acabei exilado em Paris.
A experiência de estar ali naquele momento se revelaria extremamente enriquecedora. Não apenas por ter-me permitido estudar na Sorbonne e morar com o "pai adotivo" Antonio Candido (então lecionando lá), mas por ter vivido a revolta que partiu de Paris em maio de 68 para contaminar o mundo.
Nada, porém, foi mais enriquecedor do que as viagens que pude fazer, a partir de Paris, para destinos ao leste de Berlim, nada recomendados a qualquer brasileiro que temesse ficar com a "ficha suja".
A mais emocionante de todas foi a mais extrema: com jovens de vários países, sendo eu o único brasileiro, fui à China. Era agosto de 1966 quando deixamos Paris de trem e chegamos a Moscou.
O conflito sino-soviético estava no auge e, enquanto visitávamos a cidade, acreditamos ter sido seguidos por agentes da KGB, desconfiados de que fôssemos espiões a serviço dos chineses.
Ao longo de uma semana viajando de trem, vimos comboios militares repletos de armas, em plena guerra do Vietnã. Recebidos como heróis pelos chineses --afinal, poucos ocidentais iam até lá--, no primeiro dia fomos conhecer a Universidade de Pequim.
Qual não foi a nossa surpresa ao chegar lá e dar de cara com uma manifestação de estudantes, incompreensível para nós. Nossos guias, estupefatos, não conseguiam nos explicar o que acontecia.
À noite nos levaram para jantar num restaurante de especialidades do sul da China. Mal havíamos comido o primeiro prato quando uma multidão enfurecida começou a gritar na porta. Um dos guias foi conversar com eles e, ao voltar, nos explicou:
"São discípulos do presidente Mao Tse-tung e vieram aqui para fechar este restaurante, símbolo de privilégios burgueses. Em respeito aos camaradas estrangeiros, porém, esperarão que terminemos o jantar." Sem esquecer a sobremesa, saímos depressa de lá -- bem a tempo de vê-los entrar e quebrar tudo.
Nos dias seguintes, cenas estranhas se desenrolaram, tanto em Pequim quanto em Xangai: desfiles pelas ruas, com pessoas acorrentadas e com chapéus de bruxa, sendo insultadas e torturadas pelos jovens manifestantes de fitas vermelhas nos braços.
Eram os guardas da Grande Revolução Cultural Proletária, desencadeada então pelo presidente Mao, cujo livrinho vermelho de ensinamentos eles ostentavam como pequenas bíblias. "O presidente Mao vai lhes explicar tudo pessoalmente", nos anunciou com orgulho o guia-chefe, marcando nossa visita ao Grande Timoneiro para o dia seguinte.
Ao chegarmos à Cidade Proibida, que abrigava a sede do governo, nos informaram de que o encontro com Mao não seria possível. Fomos recebidos por Chen Yi, ministro do Exterior, intelectual que falava francês correntemente.
Chen Yi explicou-nos então que a Revolução Cultural havia sido posta em marcha por Mao para combater o perigo revisionista e o risco da restauração do capitalismo na China.
O ministro aproveitou para nos informar que havíamos sido convidados pelos camaradas vietnamitas a visitar os subterrâneos de sua guerra --assim poderíamos dar testemunho ao mundo de sua luta contra o imperialismo ianque.
Para nossa sorte, na véspera da visita programada, houve intensos bombardeios americanos nos locais aos quais nos destinávamos. Os chineses, por precaução, resolveram cancelar o "passeio".
Não fosse isso eu talvez não estivesse aqui para contar essa história, ou a história da deposição de Chen Yi, e depois a da prisão de Jiang Qing, mulher de Mao, e a do fim da Revolução Cultural, com a vitória do capitalismo (de Estado) na China.
Mas tudo isso aconteceria vários anos depois, quando nós, testemunhas do momento histórico, já tínhamos perdido, havia tempo, as nossas ilusões esquerdistas.
O que sobrou foi o relato das viagens de um estudante sonhador às terras do nunca mais.

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